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Michele da Silva Lima

 

Introdução

Este artigo é resultado das experiências obtidas durante o estágio composto por quarenta horas de observação de aulas e vinte horas de regência, realizado com duas turmas de 5ª. série do Ensino Fundamental II, em uma escola no centro de São Paulo.

Durante o estágio, a observação possibilitou enxergar a problemática que se tornou tema do meu trabalho para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I, ministrada pelo professor Valdir Heitor Barzotto no primeiro semestre de 2008. Atualmente, as salas de aula se tornaram um ambiente que não mais propicia a aprendizagem, mas sim a cópia, transformando os alunos em “alunos copistas”. No entanto, pouco se fala sobre as conseqüências de um ensino baseado na cópia e sem interação verbal. Dessa forma, este artigo contém um breve relato crítico sobre a falta de comunicação entre o professor e os alunos e suas conseqüências para o tema principal de análise, que é a coesão textual.

 

O estágio

Estágio de observação

Durante o estágio de observação pude constatar a ausência de comunicação entre o professor e os alunos e perceber que tal falta de comunicabilidade trazia conseqüências para a produção escrita. Não havia diálogo entre o docente e os estudantes, tudo era baseado na lousa e na cópia.

Para Bakhtin (1981), o diálogo é uma das formas mais importantes da interação verbal, podendo ser compreendido não só por meio da palavra dita em voz alta, como também em toda forma de comunicação verbal. No entanto, pude perceber que, no contexto aqui analisado, não havia nenhum estímulo e nenhuma forma de diálogo em sala de aula, nem falado e nem escrito, e nem mesmo a lousa era usada como forma de interação. As aulas inteiras eram de cópias e não havia qualquer explicação sobre a matéria, muito menos uma explicação sobre o quê deveria ser feito como lição de casa. Muitos alunos deixavam de entregar suas redações por não perceberem e não entenderem o que fora pedido na aula anterior, pois o docente apenas havia colocado a lição na lousa e não a havia explicado.

Quando havia exercícios com questões pessoais, o docente não chamava os alunos para darem as respostas que implicavam opinião; ele simplesmente colocava na lousa que as respostas eram individuais, não instigando em nenhum momento a discussão sobre qualquer tema em sala de aula. Segundo Bakhtin (1981), a enunciação é puro produto da interação social e, quando individual, por mais primitiva que seja, é representação do ponto de vista do seu conteúdo. Quando o professor negava o ponto de vista do aluno e impedia que este se posicionasse diante de uma resposta, diante de uma justificativa, mesmo que fosse uma justificativa oral, ele delimitava ainda mais o poder de argumentação de seus estudantes. Conforme aponta Dufour (2005:135): “A palavra e a escrita estão, pois, ligadas: falar nos provoca a escrever e escrever nos conduz à borda do centro enigmático da linguagem”.

Como conseqüência, os alunos não aprendiam nada sobre as matérias, ficando cada vez mais evidente suas dificuldades em se expressarem, tanto nas produções escritas quanto nas de forma oral. Apesar de o professor passar na lousa o modo como seus alunos deveriam escrever, ainda que produzindo o discurso de certo e errado, nada disso era suficiente, pois, para as duas turmas que acompanhei, ficou claro que a aula era apenas de cópia e não algo que se deveria compreender. Era como se aula fosse apenas um trabalho mecânico e braçal.

Mediante análise da produção escrita dos alunos, é possível perceber que os temas tratados em sala de aula pelo professor não foram absorvidos por eles, uma vez que, conforme já destaquei, não havia nenhuma forma de interação verbal, escrita ou falada. Cito, por exemplo, o fato de o professor passar na lousa quando se deve fazer o uso dos travessões, dos dois pontos, da vírgula e de determinadas conjunções, ou de o professor explicar as diferenças entre “mais” e “mas”, e nada disso ter sido entendido pelos alunos, estando esses “problemas” constantemente presentes em suas redações.

 

Estágio de regência

Meu propósito na regência era trabalhar a produção de texto, ajudando os alunos a manterem a coesão textual e ensiná-los a usar a pontuação, evitando as repetições desnecessárias. No entanto, como o professor achava essencial que os alunos copiassem toda a matéria, não pude fugir do seu sistema de cópia, uma vez que ele não o permitia. Além disso, tive que seguir o Caderno do professor ou o livro didático[1], utilizado nas aulas a pedido do docente.

Como foi impossível trabalhar com a produção de texto em sala de aula, aproveitei os conteúdos que havia para seguir e, aos poucos, ensinei os alunos a usarem a pontuação e a lerem com uma melhor entonação. Para isso, tive que instruir algumas regras básicas, como quando fazer parágrafo, quando e por quê se deve usar a norma culta, entre outras coisas. Além disso, pratiquei a leitura de diversos textos em sala.

Pude observar que o professor se encaixava perfeitamente no perfil do pedagogo pós-moderno descrito por Dufour (2005), pois algumas vezes o docente se negava a ensinar algumas matérias aos alunos, dizendo que estes não as entenderiam. Segundo o autor, quando o aluno não sabe fazer um exercício, é melhor pedir-lhe que não o faça: “(...) é assim que uma quantidade de pedagogos, armados das melhores intenções do mundo, progressivamente vieram a suprimir todos os exercícios que os novos alunos não sabem mais fazer” (2005:135). Portanto, como estes temas eram essenciais para que os estudantes pudessem compreender o que de fato é uma boa redação, dispus-me a ensiná-los a diferença entre a linguagem coloquial e a culta e a definição de coesão e coerência textuais.

As minhas últimas aulas foram dedicadas à análise, em sala de aula, de algumas redações. Constatei que a maioria sabia como deveriam ser escritas determinadas orações e palavras; no entanto, como não liam o que escreviam, entregavam as redações sem ter sido feita qualquer revisão. Dessa forma, tentei explicar que, dependendo de como eles escrevessem, o texto produzido poderia ficar mais claro e objetivo, pois as redações apresentavam um grande problema de coesão textual. Por outro lado, como as produções de textos apresentavam marcas de oralidade, os estudantes conseguiam manter, sem nenhum problema, a coesão oral, isto é, conseguiam fazer-se entender oralmente.

Também na regência percebi o quanto era difícil explicar a esses alunos que o que eles escreviam não estava errado e, ao mesmo tempo, ensiná-los o quanto era importante que escrevessem de acordo com a norma culta.

Como constatei no período de observação uma total ausência de comunicação entre o docente e os alunos, tentei sempre manter interação com estes, escutando suas opiniões e instaurando o diálogo em classe. Tentei , em minhas aulas, ir além da simples cópia e procurei fazer com que eles, de fato, pudessem absorver alguma coisa, mesmo quando era necessário usar a lousa.

 

Problemática: produção de texto - coesão textual

A ausência de comunicação entre o professor e os alunos não foi o único fator a chamar a atenção. A maneira como estes trabalhavam a coesão textual em suas produções também foi um aspecto relevante para análise, uma vez que muitos problemas encontrados se deviam à falta de compreensão de conteúdos, isto é, como conseqüências das aulas cópia, os alunos fingiam entender e acompanhar a matéria. Além disso, a partir da análise, é possível perceber que, apesar de não absorverem os conteúdos apresentados pelo professor em sala de aula, conseguiam, de alguma maneira ou de outra, fazerem-se entender.

O exemplo abaixo mostra uma situação em que o docente tenta passar algumas informações na lousa, mas, como sempre, sem interagir com os alunos:

Nunca escrevam do jeito que falam. Observe a norma culta.
Exemplos:
Ele pediu para fala comigo (errado)
Ele pediu para falar comigo
O que ele estava fazeno (errado)
O que ele estava fazendo (certo)

O professor, como muitos professores de Língua Portuguesa, considera os manuais de gramática como um modelo a ser seguido, não percebendo a mutilação que estes fazem da realidade da língua. Como é possível perceber pelo exemplo acima, o docente considerava um erro quando o aluno não seguia a norma padrão.

Assim, quando corrigi as redações, não considerei um erro o fato de não seguirem a norma culta, mas atribuí nota de acordo com a coesão, tendo como objeto de avaliação o texto, considerando-o como um ato de comunicação unificado, em que tudo deve se encontrar interligado, preservando, assim, a organização linear. Ao corrigir algumas redações, pude perceber que os alunos não sabiam fazer pontuação, faziam parágrafos de modo arbitrário, além de usarem a repetição desnecessariamente, uma vez que se importavam mais com o modo como o texto era coeso na língua oral, e não com a coesão do texto escrito.

Muitas vezes, os alunos se preocupavam tanto em contar como, de fato, as coisas aconteciam que não se davam conta da forma como escreviam. Era evidente que os estudantes queriam que o professor, ao ler suas redações, realmente entendesse o que eles queriam dizer.

Segue abaixo um fragmento de uma das redações dos alunos:

Na praia eu fui para dentro do Bar e ai começou a Chover Muito ai a Maré quase Chegou No Bar entre aspas né peguei Conjinha, eu não fiquei só lá! Não eu fui para o Restaurante e foi Muito gente, foi tomar Café da tarde e depois foi para praia e Me Bronzeei Mas nem tanto né e andamos muito de carro e lugares e Muitos Bonitos. (...) Mas a gente passou um dia só. Mais Esse dia Valeu apena, Eu Nunca Vou Esquecer e, Na Casa de praia tinha pisina, mas não deu para gente nadar um pouco.[2]

Nesse trecho, nota-se que o aluno usa a letra maiúscula de modo não-sistemático. Além disso, há vírgulas no lugar de pontos finais, o que mostra que ele não sabe quando se deve usar um ou outro. Também há marcas de oralidade em todo o texto. Quanto a isso, Bastos (2001:120) afirma que:

(....) devido a uma falta de familiaridade dos alunos com a escrita e à própria falsidade ou não-definição da situação escolar de escrita, os alunos lançam mão do que lhes é mais acessível. Dessa forma é que explicamos certos problemas de COESÃO, como a repetição excessiva de palavras e construções. Vemos a necessidade de se colocar na escolar a distinção língua oral/língua escrita, ou seja, coesão oral e coesão escrita, visto que esta é, muitas vezes, confundida com questões de formalidade e informalidade de língua, concluindo-se daí uma incapacidade generalizada dos alunos para o uso da língua-padrão.

Assim, “aí” e “né” são recursos utilizados para ajudar na compreensão oral do texto. Para se fazer entender, este aluno, assim como muitos outros, transpõe as marcas de oralidade à escrita, porque ainda não está imerso no mundo letrado, e as utiliza para enfatizar e fazer com que seu leitor o compreenda.

Percebe-se no texto que o aluno não é incapaz de usar a norma culta e que sabe utilizar determinadas palavras que o ajudariam na coerência e na coesão textuais, como “mas” ou “mais”. Essas conjunções permitem o estabelecimento de relações significativas entre os elementos do texto; em “Mas a gente passou um dia só. Mais Esse dia Valeu apena.” nota-se que o “mais” é uma adversativa usada para dizer que, apesar de ter passado um só dia na praia, ao final, o dia foi proveitoso. O “esse” dessa mesma frase, além de ser uma referência anafórica, segundo Koch (2007), é uma forma remissiva (ou referencial), ou seja, é um demonstrativo que indica apenas uma instrução de conexão. O aluno também lança mão daquilo que Halliday & Hasan (apud KOCH, 2007) chamam de conjunções continuativas, como “Depois” e “aí”, que servem para dar seqüência ao texto.

Quanto às repetições, que servem como reiteração, o aluno faz uso de repetições do mesmo item lexical, “No Bar”, que podem ser consideradas, conforme Koch (2007), como de co-referência.

Na verdade, o que prejudica a produção de texto, em geral, é a falta de clareza e de ordenação de idéias. Fica evidente, ao final, que o aluno quer terminar a redação, mas lembra-se de que a casa tinha piscina e, assim, encaixa essa informação de qualquer maneira. Além dessas ocorrências, o aluno apresenta problemas ortográficos, como em “Conjinha” e “pisina”. No primeiro caso, a troca ortográfica pode ter se dado pela aproximação sonora entre os fonemas "xê" e "jê", que são fricativas palatais.

Todas as redações produzidas pelos alunos das 5 as séries apresentam os mesmos tipos de ocorrências. Segue abaixo um trecho de outra redação:

Mas sempre que ia brincar gostava de brincar de bola, com seus amigos. Chico, Carlos, Fernando e Felipe.– Ele não gosta de ir para, a escola, mas ele gosta da cantina, sorte já está de férias.
– Sempre tem um amigo que, atrapalha que ser o comandante do grupo.
– Ele é o dono da bola, então ele que comanda.

Nesse trecho, nota-se novamente o problema com a pontuação. O aluno, assim como os demais, não deve ter relido o seu texto e não percebe a falta do verbo “querer” na oração “Sempre tem um amigo que, atrapalha que ser o comandante do grupo”, ou ainda pode ter escrito da maneira que ouve, uma vez que o som da letra “r” ao final de “quer”, muitas vezes não é bem pronunciado.

O aluno faz uso do travessão a cada parágrafo e a enumeração dos amigos na primeira linha poderia ter sido feita com o uso dos dois pontos, o que mostra que ele não sabe quando deve usá-los, apesar de o professor ter dado uma aula sobre o uso dessas pontuações. É importante ressaltar que essa aula foi uma aula de cópia, o que provavelmente fez com que o estudante não prestasse atenção na matéria e não absorvesse o conteúdo.

É possível perceber também que há em todo trecho a repetição do pronome “ele”. Segundo Koch (2007:39), esses pronomes “(...) fornecem ao leitor/ouvinte instruções de conexão a respeito do elemento de referência com o qual a conexão deve ser estabelecida”. O aluno também usa a adversativa “mas” e, logo na segunda linha, faz um paralelo entre a escola e o fato de o garoto, “ele”, estar de férias: “Ele não gosta de ir para, a escola, mas ele gosta da cantina, sorte já está de férias”. Por fim, nota-se que, no trecho acima, há uma progressão temática com um tema constante, ou seja, o aluno invariavelmente mantém o tema da redação, “a vida de um garoto”. Isso muitas vezes não acontecia com os demais textos, pois os alunos começavam a redação tratando de um tema e, de repente, o trocavam, não fazendo nenhuma ligação entre eles.

Segue abaixo outro trecho de outra redação:

Nunca vou esqueser o dia que minha mãe dise que ia ter uma irmã, figuei muimto feliz.
Mais eu sabia gue eu ia ter que amar muito ela ia vezes tinha que dar às vezes uma de irmão mais velho.
Quando ela naseu figuei muimto feliz. guando viela a chei ela muimto lida ela era fofa e tam pequenina.

No trecho acima são evidentes os problemas com a ortografia, pois o aluno troca constantemente as letras “g” e “q”, provavelmente por semelhança na grafia das letras. No início do terceiro parágrafo o aluno escreve “Quando”, mas logo após o ponto final escreve “guando” com letra minúscula, revelando que, de alguma maneira, ele sabe que a palavra é escrita com a letra “q”, ou, na dúvida, opta pelas duas formas. Isso também pode ser descrito como algo parecido com a assimilação fonológica. Nesse fenômeno, quando a língua “encontra dois sons que têm alguma ‘coisa' parecida, semelhante, ela faz de tudo para que eles se juntem, se fundam num só” (BAGNO, 2000:87). No caso apresentado, não há uma união e sim uma troca, provavelmente pelo fato de as consoantes “q” e “g” pertencerem ao mesmo ponto e modo de articulação: os fonemas / g / e / k / são velares oclusivas. A semelhança então, explicaria a dúvida do aluno entre uma consoante e outra.

Já o caso de “tam” é peculiar, a meu ver. O mais provável é que o aluno escreva a palavra com “m” por ter sido várias vezes corrigido quanto ao uso dessa consoante em tempos verbais. Pude constatar, na observação das aulas, que o professor escrevia constantemente na lousa que os alunos escreviam no futuro do presente, quando, na verdade, deveriam escrever no pretérito perfeito, provavelmente por causa da semelhança sonora entre “am” e “ão”.

Exemplo: As meninas virão ao museu (errado)
As meninas vieram ao museu (certo)
Ontem os alunos falarão o tempo todo (errado)
Ontem os alunos falaram o tempo todo (certo)

Dessa forma, como não houve explicação sobre o assunto, o aluno apenas gravou que deveria escrever com “am” e não com “ão”. Por associação, ele pode ter escrito “tam” e não “tão”, o que mostra mais uma vez que, apesar de o professor ter escrito o conteúdo na lousa, não houve interação com aluno e conseqüentemente nenhuma compreensão da matéria.

Como recurso para enfatizar, o aluno usa diversas vezes a palavra “muimto”. O “m” no meio da palavra pode ter sido escrito em razão da forma como o estudante a escuta, devido à nasalização do ditongo “ui” como uma forma de assimilação, por causa da ressonância da cavidade nasal anteriormente sentida com a consoante “m” que inicia a palavra.

Além disso, as marcas de oralidade também estão presentes no texto, como, por exemplo, em “viela”. O aluno escreve da maneira que escuta “vi ela”. No caso de “lida” é possível formular a hipótese de que o aluno não prestou atenção no que escreveu e, por isso, deixou passar o “lida”, em vez de “linda”, pois a maioria não relia o próprio texto.

No segundo parágrafo, o verbo “ter” está conjugado no pretérito imperfeito, quando, na verdade, deveria estar no futuro do pretérito. No entanto, segundo Weinrich (apud KOCH, 2007), os dois tempos verbais estão de acordo com o tempo do mundo narrado, uma vez que, para a narração, pode-se usar esses dois tempos ou, ainda, o pretérito mais-que-perfeito e o pretérito perfeito simples.

A repetição do mesmo item lexical, “vezes”, pode atrapalhar a compreensão do texto, mas não a ponto de fazê-lo ininteligível.

Por meio dos exemplos citados e das correções de outras redações, pude notar que, antes de exigirmos desses alunos o uso de uma língua-padrão, como tanto quer boa parte dos professores de Língua Portuguesa, deveríamos primeiro ensinar-los a ordenar as idéias, ensiná-los a usar a pontuação e a não repetirem diversas vezes a mesma palavra, desnecessariamente. Em suma, é preciso ensinar aquilo que consideramos de fundamental importância para a produção de um texto para que esses alunos possam escrever melhor.

 

Conclusão

O estágio de observação e, principalmente, a regência foram experiências gratificantes, uma vez que nunca havia entrado na sala de aula como professora. Pude preparar a matéria, embora não possa ter exercido muito a minha criatividade, e pude entrar em contato com alunos que estão iniciando o Ensino Fundamental II. Tudo isso foi de extrema importância, porque é nessa fase que o professor pode introduzir ou “eliminar' determinados conceitos da mente dos alunos, o que talvez mais tarde já não seja possível.

No entanto, tenho que admitir que nem tudo foi fácil. A escola não colaborava com a impressão dos materiais e, assim, o professor transformava suas aulas em aulas de cópia. Conseqüentemente, nada parecia sair do lugar, tudo era estático. Admito que, apesar da grande melhora dos alunos na leitura de textos, o resultado das produções não foi o suficiente. Ainda há muito que fazer e o que enfrentar, pois parece que o mais importante não é ensinar os alunos e sim entretê-los, ocupá-los de alguma maneira.

Como diz Bourdin (1996): “(...) na escola é permitido não estudar”. Pior que isso é vê-la se transformar em um deposito para guardar os jovens, ou melhor, como afirma Dufour (2005:147), “para guardar futuros desempregados pelo maior tempo possível e ao menor custo”. A instituição que deveria instruir, já não instrui, mente a seus alunos lhes dando notas fictícias, às vezes até para alunos fictícios, já que o ato de faltar sem motivo é bastante praticado. Conforme aponta Dufour (2005:141): “O aparelho escolar pós-moderno apresenta, pois, essa particularidade espantosa: agora que a obrigatoriedade é (pela primeira vez na história) quase que generalizada, há cada vez menos educação”. Apesar de não ter sido suficiente, fiz com que minhas aulas fossem proveitosas e que de fato ensinassem, porque, afinal, quem entretém é palhaço e não professor.

Durante a minha regência, tentei mostrar que o principal em uma redação é manter a ordem e a clareza das idéias. Tentei eliminar valores já estabelecidos, como a idéia de que a linguagem coloquial é a linguagem de “burros”. Também estabeleci a comunicação entre mim e os estudantes, pois, segundo Bakhtin (1981), só o caminho da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua significação. A partir disso, tentei de todas as formas instituir o diálogo com os alunos, fazendo com que trabalhassem de alguma maneira com a comunicação e a informação da mensagem. Tentando, assim, não ter em sala de aula “alunos copistas”, pois durante o estágio pude verificar e comprovar as conseqüências de uma aula de cópia na produção e na aprendizagem dos discentes.

Quanto à coesão textual, pode-se notar que, embora esses alunos não tenham uma completa idéia do que seja um texto coeso, ao menos utilizam recursos para que suas produções estejam de alguma forma coerentes. Há, de certa maneira, apesar de uma clara deficiência na pontuação e na ordenação de idéias, produções de texto em que as orações estão interligadas, seja pelo uso de referência, seja pelo uso de conjunções continuativas, de orações adversativas, ou até mesmo por um sistema temporal. Tudo isso deve ser levado em consideração na hora de corrigir suas redações, já que não se deve cobrar aquilo que eles ainda não sabem. Antes que os alunos estejam imersos em um mundo letrado, fica difícil exigir que eles escrevam utilizando o que desconhecem como, por exemplo, o uso de outras conjunções como porém, entretanto, no entanto, todavia etc.

Uma vez que o foco não estiver mais na cópia e sim na aprendizagem, antes mesmo de ensinar gramática ou norma culta, devemos ensinar que o mais importante em uma redação é passar informação e que esta deve aparecer de maneira clara e ordenada. Se há usos de oralidade ou se o texto não está escrito de acordo com a norma, tudo isso pode ser irrelevante no primeiro momento, se a redação mostrar coesão. À medida que os alunos se familiarizarem com a leitura e com a escrita, a cobrança de textos mais complexos e com um uso mais apurado da escrita pode se tornar possível e acessível a eles.

 

Notas

[1] BORGATTO, Ana; VERA, Terezinha. (2008). Tudo é Linguagem. Língua Portuguesa. 5ª. Série. 1º. edição. São Paulo: Ática.

[2] Todos os trechos são transcritos conforme o original.

 

Referências bibliográficas

BAGNO, Marcos (1997). A língua de Eulália: novela sociolingüística. São Paulo: Contexto. 5º. Ed. 2000.

BASTOS, Lúcia Kopschitz (2001). Coesão e coerência em narrativas escolares. São Paulo: Martins Fontes.

BOURDIN. Jean-Yves (1996). Violência e crise da escola dos pobres. Pré-publicação de artigo a ser publicado na ADAPT, revista pedagógica do SNES (Sindicato Nacional de Ensino Secundário, FSU), Paris. Trad. M. Joana D. Couto e M. Luiza D. Couto.

DUFOUR, Dany-Robert (2005). O homo zappiens na escola: a negação da diferença geracional. In: A arte de reduzir as cabeças – Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Trad. Sandra R. Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, pp. 117-149.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. (1989). A coesão textual. São Paulo: Contexto, 21º. Edição, 2007.

   

 

Marcelo Rodrigues de Moraes

 

Introdução

O presente artigo é um relato das atividades realizadas durante o período de estágio no Ensino Fundamental referente à disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I, da Faculdade de Educação da USP, ministrada pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto. Foram acompanhadas 40 horas de observação e 20 horas de regência em quatro oitavas séries de uma escola estadual na cidade de Jundiaí, focalizando as atividades de redação propostas pela professora e as dificuldades de escrita apresentadas pelos alunos.

Os obstáculos mais evidentes nas redações analisadas foram ortografia, sintaxe e níveis de coesão e coerência, “problemas” que se agravaram à medida que o tamanho do texto aumentava. A influência da oralidade na redação dos alunos também foi um tema de destaque, já que a grande maioria transcrevia as palavras da maneira como as falava. Uma possibilidade de intervenção foi a criação de uma atividade de “júri simulado” a partir de um conto de Machado de Assis, que não apenas propiciou um contato com o texto literário, mas também permitiu a criação de pequenas peças teatrais em grupos e um trabalho de escrita com texto argumentativo.

 

Estágio de observação (diagnóstico)

O período de observação na sala de aula das quatro oitavas séries foi bastante tranqüilo e proveitoso. Os alunos aceitaram minha presença e a professora constantemente pedia minha opinião e intervenção durante as atividades.

Percebi que quase todo o tempo das aulas era utilizado para explicação de conteúdo gramatical e que os alunos perdiam o interesse com freqüência; poucas vezes estiveram em contato com a leitura de textos literários. Questionada sobre o assunto, a professora respondeu que procurava fugir do tema “literatura” por não se sentir segura em ensiná-lo e por acreditar que os alunos não tinham condições de ler e compreender um texto elaborado; ou seja, ela subestimava sua própria capacidade pedagógica e a capacidade dos alunos de apreciarem a interação com a literatura e utilizarem esse tipo de texto para melhorar sua própria escritura. É inegável que a base para a valorização dos direitos humanos está na educação, e o direito à leitura não deve ser privilégio de um grupo favorecido. Nas palavras de Antonio Candido (2004:186) “negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”, pois é um importante instrumento que pode contribuir para a formação humana.

Depois de identificar que a leitura de textos se tornava um obstáculo em sala de aula e era evitada, a professora me entregou algumas produções escritas que os alunos haviam feito para eu corrigir e avaliar. A partir do primeiro contato com as redações, foi possível identificar várias ocorrências que não são esperadas para estudantes da oitava série do Ensino Fundamental, dentre as quais se destacaram problemas de traçado (os alunos não respeitavam margens e linhas), ortografia, sintaxe, concordância e níveis de coesão e coerência.

A gravidade da situação se intensifica com a dificuldade encontrada pela grande maioria dos alunos em escrever palavras e orações simples. O próximo parágrafo apresenta e comenta alguns dos problemas encontrados em resolução de exercícios sobre classificação de Orações Subordinadas e Coordenadas.

Os exemplos, retirados do caderno de um aluno, mostram erros de ortografia cometidos durante a cópia do enunciado do exercício, escrito de maneira correta na lousa. Em negrito, temos a forma como o aluno redigiu a palavra e entre parêntesis a forma como a professora a escreveu: rescebeu (recebeu) apartir (a partir), classificalo (classificá-lo), defendelo (defendê-lo), advinhou (adivinhou), márcia (Márcia), felipe (Felipe), sentil (sentiu), comsulta (consulta), centimento (sentimento), discubriram (descobriram), auguns (alguns). A partir dos exemplos, é possível concluir que a forma como a matéria era passada à classe não atraía a atenção dos alunos, que nem mesmo conseguiam se concentrar na cópia da lousae, pior que isso, copiavam de maneira equivocada sem perceber.

Preocupado com essas ocorrências, decidi aplicar uma atividade que fizesse com que os alunos treinassem leitura, interpretação e escrita. Durante o início do período de regência (que será descrito mais adiante), a professora pediu que eu aplicasse uma prova sobre o conto escolhido. Perguntei se não seria mais adequado aplicá-la depois que a atividade de “júri simulado” estivesse concluída, mas ela preferiu que a avaliação estivesse no começo, após a leitura do conto que sugeri. As transcrições que aparecem a seguir são trechos dos textos redigidos pelos alunos no início da atividade preparada para o período de regência, ou seja, representam ainda um momento inicial de contato com o conto e revelam problemas esperados, tendo em vista as produções anteriores.

Resposta da questão quatro da prova escrita sobre o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis.
“Sim, com o ódio que vilela (Vilela) sentiu do meu amigo Camilo deve ter anos e algum lugar porque antigamente eles eram amigo inseparavel (amigos inseparáveis) (ausência de pontuação) mais quando a Rita se apresentou ele deve ter tido siumes (ciúmes)”.

Resposta da questão um da mesma prova escrita.
“Prencentimento (pressentimento). Axo (acho) que ele teve um presentimento (pressentimento) por isso foi à cartomante”.

Resposta da questão três da mesma prova escrita
“Que li (ele) deijou (deixou) mês (mais) confiante feliz ló (ausência de pontuação) Tirou a angútia (angústia) do Peito (peito)? ela (Ela) errou pois Vilela já sabia de tudo? camilo (Camilo) (ilegível) Pronto Para (pronto para) [ilegível] Vilela mas ja (já) esteve longe o medo da descoberta”.

As expressões e palavras em negrito apontam as correções necessárias aos textos. A presença da oralidade na escrita desses alunos mostrou-se evidente nas reduções de vogais, como em “discubriram”, onde a vogal /e/ foi reduzida a /i/ e a vogal /o/ reduzida a /u/, fato muito comum na língua falada. A vocalização da consoante lateral /l/ também ocorreu com freqüência, como na palavra “auguns” presente na avaliação de um dos alunos. O caminho inverso também apareceu na troca da vogal /u/ pela lateral /l/ na palavra “sentil”. O uso de pronomes pessoais do caso reto na função de objeto direto, também típico da língua falada, mais próxima da linguagem usada pelos alunos no cotidiano, apareceu em “encontraram ela”.

Os problemas com a pontuação também foram evidentes; o último trecho transcrito acima foi retirado da avaliação de um dos alunos que escreveu todas as respostas sem um ponto final sequer. Esse trecho parece ser o que contém mais problemas e a influência da língua oral na redação do aluno é o traço que chama a atenção. A não-diferenciação entre os sistemas lingüísticos escrito e falado, que têm regras distintas, faz com que muitos dos alunos tentem transcrever aquilo que falam da maneira como falam. Entretanto, todos os trechos transcritos acima são passiveis de compreensão (com exceção do último), mesmo que em algumas passagens ocorra ambigüidade devido a desvios da norma padrão da língua.

Como observei, alguns alunos copiavam as palavras que não tinham relação entre si de maneira aleatória; algumas respostas dadas às questões evidenciam o fato de que vários alunos podem ser considerados “copistas” (copiam as palavras sem entender o que estão escrevendo). Outra situação que merece destaque é o fato de que os alunos se sentavam em duplas e emprestavam os cadernos para que os colegas que tinham mais dificuldade copiassem as respostas.

Os textos de dois alunos eram praticamente incompreensíveis e só mais tarde a professora revelou que eles eram ‘analfabetos' e apenas sabiam escrever o próprio nome. Segundo ela, os dois eram preguiçosos e não tinham vontade de fazer os exercícios dados em aula; concluí que, na verdade, eles não os faziam por uma razão óbvia – total impossibilidade – e até sentiam um certo preconceito por parte dos outros estudantes. Identifiquei que os dois conseguiam escrever e ler algumas palavras, mas dificilmente diferenciavam ‘-ss‘ de ‘-s' ou ‘-ç', não sabiam quando empregar ‘-r' ou ‘-rr', e tinham dificuldades de colocar as vogais ‘-e' e ‘-i', empregando-as de maneira aleatória. Ao perguntar para a coordenadora pedagógica sobre o caso dos dois alunos, ela afirmou ter conhecimento do assunto e também disse que eles não eram os únicos que não sabiam escrever. Em menores graus, havia vários estudantes com dificuldades, além de alguns que não admitiam o próprio problema (ou os pais não o queriam admitir), tornando a busca por uma solução um processo ainda mais complicado.

Para tentar minimizar a situação problemática encontrada no período de observação e também para inserir um conteúdo literário em sala de aula e trabalhar com leitura, interpretação e redação, desenvolvi a atividade de júri simulado no período de regência, que será descrita e explicada a seguir.

 

Estágio de regência (tratamento)

As atividades de regência foram desenvolvidas nas quatro salas de oitava série acompanhadas durante a observação; algumas das regências foram feitas de total improviso, já que uma simples intervenção se transformava em uma aula com explicações de conteúdo (gramatical, em grande parte); mas, na maioria das vezes, a aula da professora era interrompida nos primeiros minutos da aula para o início da minha regência programadas.

Na primeira aula em que atuei como professor, expliquei aos alunos as características principais da crônica, comentando que algumas das redações que eles haviam escrito no período de observação se encaixavam perfeitamente no gênero que é marcado por textos breves e de temas do cotidiano. Uma das primeiras explicações que fiz foi sobre a diferença entre linguagem formal e linguagem coloquial, que apareciam no livro didático como elementos da crônica. Os alunos faziam perguntas curiosas, como, por exemplo “a gente fala como escreve ou escreve como fala?”, e eu prontamente respondia que não. Os alunos confundiam os dois tipos de linguagem, identificando-as com dificuldade. A oportunidade de comentar as principais diferenças se deu com maior ênfase nas aulas dedicadas à atividade de “júri simulado” sobre o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis.

Uma dúvida constante dos alunos era se podiam escrever “tudo certinho” ou podiam escrever abreviado. Expliquei-lhes que cada texto tem as suas particularidades e características próprias e que cada linguagem era usada em um contexto diferente. Os marcadores conversacionais e a hesitação próprios do texto falado haviam sido identificados nas provas corrigidas. Porém não foram feitas grandes explicações teóricas sobre os conceitos que envolvem os dois tipos de linguagem, tampouco foram passados nomes como “marcadores conversacionais” ou “hesitação”, visto que a análise de textos orais não era o ponto principal da aula.

Na escrita das provas anteriormente comentadas, a grande maioria da sala utilizou a linguagem abreviada, típica das salas de bate-papo e dos programas de mensagens instantâneas da Internet. A recorrência de algumas palavras foi discutida com a classe e abreviações como, por exemplo, “tb”, “vc”, “hj”, foram escritas na lousa e desenvolvidas e comentadas pelos alunos. Quando perguntados sobre as ocasiões em que escreviam daquela maneira, a resposta foi unânime: na Internet. A finalidade de abreviar as palavras e omitir os acentos em muitos casos, segundo os alunos, é diminuir o tempo utilizado na digitação para que a conversa flua mais rápido. Perguntei a eles se as respostas que colocaram nas provas analisadas pareciam mais com a linguagem falada ou a escrita e a sala ficou em silêncio. Em seguida, de maneira muito tímida, os alunos disseram que várias “coisas” pareciam muito com a linguagem utilizada no computador.

O trabalho que desenvolvi na parte final da regência consistiu na criação de um “júri simulado”, feito em grupo de cinco alunos, para ser apresentado em sala, com a colaboração de todos. Consistiu basicamente na elaboração de uma breve peça de teatro, a partir da leitura e interpretação do conto “A Cartomante”, de Machado de Assis.

O trabalho, que durou aproximadamente sete aulas, teve início com a leitura do conto em voz alta. Para isso, vários alunos se alternaram nas funções de narrador e personagens. Em seguida, tirei as dúvidas de vocabulário que surgiram, fiz uma nova leitura em voz alta e pedi para que eles me contassem o que tinham entendido do conto. Passada essa fase inicial do primeiro contato com o enredo, os alunos se dividiram em grupos de cinco pessoas, cada um indicado para as seguintes funções: um advogado de defesa, um advogado de acusação, uma testemunha de defesa, uma testemunha de acusação e um juiz. Expliquei que eles deveriam criar um texto curto para apresentar em sala, com diálogos de todas as personagens, simulando a defesa/acusação da figura virtual de Vilela, personagem do conto que matou a esposa e o melhor amigo. Avisei-lhes que não deveriam se preocupar com detalhes técnicos, como, por exemplo, roupas e maquiagem, mas deveriam criar, tendo como base o texto de Machado de Assis e as informações do conto, uma simulação de um júri popular.

Expliquei-lhes, ainda, que em uma situação de júri há uma espécie de ritual que deve ser seguido. Os advogados têm, cada um, sua hora certa para falar e podem protestar ao juiz quando se sentem ofendidos com as acusações do adversário. Em determinado momento, os advogados podem pedir a entrada das testemunhas para dar veracidade aos argumentos que utilizam para a acusação ou a defesa do cliente. Reforcei que os alunos deveriam ter em mente a figura de Vilela, como se este estivesse presente perante o tribunal, e que deveriam criar o texto pensando nos argumentos que utilizariam; disse também que o resto da sala teria a função do júri popular e, dependendo das argumentações expostas, daria o veredicto final ao juiz.

Senti que os alunos e a professora aprovaram a idéia e fizeram várias perguntas. Respondi dizendo que eles podiam usar a criatividade e criar situações a partir de elementos do texto. Apenas enfatizei que a peça não deveria ser muito longa, já que as apresentações seriam na semana seguinte e vários grupos se apresentariam no mesmo dia.

O resultado superou as expectativas. Os estudantes se empenharam em criar os roteiros e fizeram excelentes apresentações, conquistando a atenção do resto da sala. Acompanhando o desenvolvimento dos textos, percebi que os problemas de redação apareciam novamente, mas, por se tratar de um trabalho em grupo, eles eram corrigidos, em grande parte, pelos próprios alunos. Reforcei que, por se tratar de um diálogo que acontecia perante um “juiz”, eles deveriam tomar cuidado com as palavras utilizadas, tentando ser sempre o mais respeitoso possível. O objetivo foi fazer com que percebessem que a linguagem usada no computador ou em uma conversa informal era diferente da linguagem necessária em um contexto de formalidade. Os alunos não apenas compreenderam a diferença, como também redigiram excelentes roteiros e fizeram ótimas apresentações.

A atividade de “júri simulado” permitiu que os estudantes saíssem da rotina a qual estavam acostumados, fazendo com que todos trabalhassem em favor do grupo. Mesmo no momento das apresentações, a atenção de toda a sala foi conquistada e o clima saudável de competição colaborou para que os alunos se aplicassem e conquistassem o júri.

 

Reflexões

O período de estágio realizado na escola foi, sem dúvida, responsável pela transformação da teoria vista em sala de aula numa realidade prática e sensível, sem a qual a experiência do universitário se mostra incompleta. Não há como imaginar o que de fato ocorre dentro de uma classe sem ter estado presente nela e não há como formar um professor de qualidade sem que ele passe por esse período de ensinamento e aprendizado. O contato com os corpos discente e docente das escolas leva o aluno-estagiário da universidade a refletir sobre a situação em que se encontra o ensino da rede pública de seu país, além de lhe dar a oportunidade de sentir, na prática, até que ponto seus conhecimentos teóricos são aplicáveis à rotina de uma sala de aula.

Aquele que nunca teve contato com o mundo da escola pública pode se surpreender com o que vai encontrar. Muitas são as criticas feitas à rede de ensino, e não há como negar o fundamento da grande maioria delas; entretanto, ao ver de perto como as coisas realmente acontecem, percebi que nem tudo são problemas, já que a própria crítica faz uso de si própria e “os trabalhos buscam sua inscrição numa tradição e não a investigação com vistas à compreensão do fenômeno estudado” (BARZOTTO, 2004:245). Pensamento semelhante encontra-se na tese de Fernández (1994:107) que destaca a queixa como “lubrificante da máquina inibitória do pensamento”. A autora mostra como muitos professores usam a queixa para descrever ou para fazer uma suposta análise de sua realidade, mas o problema “consiste na crença equivocada de que se está usando o juízo crítico, de que se está pensando ou analisando a situação, quando somente se está convalidando a situação”, ou seja, a crítica, ao invés de ajudar, imobiliza. É o que acontece com a professora observada no estágio, pois ela sabe identificar os problemas que aparecem em sala de aula (a produção escrita precária, dois alunos analfabetos, a aula fastidiosa sobre classificações gramaticais), mas não faz nada para mudar essa situação preocupante; pelo contrário, ela critica sua própria condição como docente despreparada e subestima a capacidade dos alunos, sem nem ao menos tentar ou dar-lhes a oportunidade da tentativa.

Dá a impressão de que, muitas vezes, o discurso de crítica à escola e ao ensino público é um enunciado vazio e pouco se faz em favor da educação; é como se a enunciação estivesse vazia, dissociada dos seus sistemas de enunciado – nas palavras de Certeau (1996:253) “é a voz que ela não pode ser, mas sem a qual, no entanto, ela também não pode ser”. Traduzindo para o termo lingüístico, seria como se a crítica se apoiasse no discurso de outrem –aproveitando a classificação de Bakhtin (1988) – dissociado do seu contexto narrativo e de atuação; repete-se ad nauseam um discurso do qual não se sabe ao certo sua origem e fim, tampouco o lugar em que cabe sua transmissão.

Cada aluno é um indivíduo e, como tal, tem suas particularidades e seus limites, os quais deveriam ser respeitados. Deveriam, mas não o são. Talvez não por falha do corpo docente, mas por falha do próprio sistema de ensino que acredita ser possível haver ensino e aprendizagem numa sala lotada por mais de quarenta e cinco estudantes parece claro o quão difícil é para um único professor dar conta dos problemas de cada um de seus alunos, que não aprendem na mesma velocidade nem da mesma maneira, fato comprovado pela discrepância e heterogeneidade dos estudantes observados no estágio. É claro que alguns têm sua parcela de culpa por não se comportarem como deveriam, mas ainda é preciso entender se esse comportamento é pura falta de interesse, ou se há razões mais profundas por trás das atitudes de uma sala de aula que não se comporta de maneira satisfatória. E a atitude da professora observada dá pistas de onde se encontra a raiz de tamanha dificuldade.

O problema da produção de texto, abordado nas duas partes anteriores deste artigo, é constante fonte de queixa dos professores: os alunos não sabem escrever. E, como foi comprovado pelos exemplos dados, muitos deles realmente não o sabem; entretanto, encontram-se na oitava série do ensino fundamental. O incentivo à leitura, fundamental para o aprendizado da escrita, não está presente na sala de aula; quadros nas paredes lembram os alunos da importância da leitura, mas atividades que implicam de fato a leitura (seja ela de gibis, jornais e livros) não são realizadas com freqüência, privando-os do contato rico com a literatura por um grave pré-conceito. A biblioteca escolar está aberta a eles diariamente e conta com um excelente acervo de enciclopédias, livros e dicionários, porém, não há incentivo por parte dos professores.

Logo, um problema que deveria ter sido resolvido durante os primeiros anos de alfabetização persiste até a última fase da etapa que precede o Ensino Médio, o que certamente prejudicará os alunos que chegarem e esse ciclo escolar. Tal fato mostra como a queixa dos professores é favorecida, às vezes, e até promovida pela própria instituição educativa. O sistema de progressão continuada, que permite a repetência dos alunos apenas na quarta e na oitava séries parece ter piorado a situação. O que surgiu como uma tentativa de diminuir a evasão escolar – assim dito por muitos governantes e educadores – serve de máscara para o fato de que muitos estudantes seguem à próxima série sem terem realmente aprendido os conteúdos básicos necessários.

A intenção de tornar menor o número de alunos que desistem de completar o ensino fundamental por repetências contínuas é de fato louvável. Contudo, o sistema educacional não sofreu as reformas necessárias para a adoção de tais medidas, o que tornou a impossibilidade de repetir o ano algo que incentiva muitos jovens a não se preocuparem com os estudos, já que a passagem à próxima série está garantida por lei. Assim, alunos saem despreparados dos primeiros quatro anos do Ensino Fundamental II e chegam, muitas vezes, como é o caso de alunos da oitava série da escola na qual o estágio foi realizado, sem saber ao menos ler ou escrever.

 

Conclusão

Durante o período que passei na escola, tive liberdade para atuar como estagiário e muitas das aulas foram conduzidas de maneira a incentivar a participação e o interesse dos alunos pelo que estavam aprendendo. A atividade de júri simulado é um exemplo de como unir a sala de aula nos trabalhos em grupo que relacionam vários aspectos de uma só vez, como a leitura, a interpretação e a produção textuais, além de abrir as portas da dramatização àqueles que se interessam por ela.

A receptividade e a colaboração do corpo discente para a realização do estágio também não podem deixar de ser mencionadas. A grande maioria dos estudantes mostrou-se interessada e atenta às explicações, interesse refletido também, mas não unicamente, nas muitas notas altas por eles alcançadas, já que a atividade de júri simulado foi avaliada como a nota do bimestre. Para concluir, só me resta acrescentar que a experiência relatada neste artigo e no relatório de estágio contribuiu enormemente para minha formação como professor e só fez crescer a certeza de que, apesar dos muitos problemas que certamente terão de ser enfrentados, desistir não é a melhor opção.

 

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail (1997). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª. ed. Trad. Michel Lahud et al . São Paulo: Hucitec.

BARZOTTO, Valdir Heitor (2004). Língua Portuguesa e prática docente: ouvindo vozes e tomando sustos. In: BASTOS, Neusa B. (org). Língua Portuguesa em calidoscópio. São Paulo: Educ/ Fapesp, pp. 239-245.

CANDIDO, Antonio (2004). Vários escritos. 4ª. ed. reorg. pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades.

CERTEAU, Michel de (1996). A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 2ª. ed. Trad. Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes.

FERNÁNDEZ, Alicia (2004). A mulher escondida na professora. Trad. Neusa Kern Hickel. Porto Alegre: Artes Médicas.

    

 

Josi Thomé Zerbinati

 

O presente artigo é o resultado de inúmeras reflexões que surgiram durante os estágios realizados no ano de 2008 para as disciplinas Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I e II da Faculdade de Educação da USP, ambas ministradas pela Profª. Drª. Idméa Semeghini-Siqueira, bem como durante a produção dos relatórios de conclusão dos estágios, de onde os dados que compõem este texto foram extraídos.

As escolas onde os estágios foram realizados são bastante diferentes, tanto na localização espacial, como no ambiente em que o processo de ensino/ aprendizagem acontece. Sendo assim, o estágio de observação e regência do 1º. semestre de 2008 ocorreu numa escola estadual da cidade de Santa Cruz das Palmeiras, interior do Estado de São Paulo, aqui denominada escola A, enquanto que, no 2º. Semestre, o estágio consistiu na realização de um projeto (Projeto CADIS, que será explicado mais adiante) com crianças da 5ª. série de uma escola municipal da cidade de São Paulo, aqui denominada escola B.

Além de discutir as diferenças instigantes que promovem a singularidade de cada escola, centrar-me-ei na questão da constituição das salas de aula e de suas “personagens”. As diferenças e semelhanças das escolas causam graves conseqüências, que são refletidas nos maiores interessados do processo em questão, ou seja, os alunos. A primeira escola (A) possui salas comuns, enquanto a segunda (B) possui salas-ambiente. A defasagem da escola A em relação à B já se evidencia nesse contraste da constituição das salas de aula, pois os alunos da última têm a chance de estar num ambiente propício para o aprendizado das diferentes disciplinas, já que o espaço está devidamente equipado para desenvolver as mais variadas atividades de cada uma.

Assim, a sala de Língua Portuguesa da escola B possui material de TV e vídeo; diversas produções que os alunos confeccionaram penduradas nas paredes, como adorno do ambiente; espelhos no fundo da sala para que o professor observe sua postura frente aos alunos a todo momento; e, também nesse lugar, há uma estante com livros e um armário para guardar os livros didáticos, para que os alunos não precisem carregá-los nas mochilas. Enquanto isso, na escola A, para assistir a um determinado vídeo, é necessário que se faça antecipadamente uma reserva da sala de vídeo, localizada no mesmo ambiente da Biblioteca Escolar. Dessa forma, os poucos alunos que freqüentam a biblioteca não têm o silêncio necessário para realizarem suas pesquisas e/ ou leituras.

Em comparação, na escola B, à medida que chegavam na sala de aula, os alunos se sentavam em suas carteiras, distribuídos de acordo com a seqüência do número que lhes correspondia na lista de chamada. Assim, evitava-se que os “bagunceiros” se concentrassem no “fundão” e os “bons alunos” ficassem na frente. A sala, portanto, por si só, possibilitava que eles se acomodassem de maneira heterogênea, o que permitia que alunos com diferentes graus de letramento pudessem interagir uns com os outros, sem a formação das chamadas “panelinhas”, que tendem a excluir os mais fracos.

Outro aspecto bastante positivo que foi observado foi o fato de a professora de língua portuguesa dessa escola fazer a chamada dos alunos durante a realização das atividades, fato que corroborava para não diminuir o pouco tempo que se tinha para o desenvolvimento de outras tarefas. Diferentemente desse modelo, na escola A, a professora insistia em conferir a presença de seus alunos no início das aulas, enquanto eles ainda estavam bastante agitados. Devido a essa agitação da troca das aulas, a professora se irritava e tentava conter as conversas, perdendo ainda mais tempo. Os alunos da escola B, no entanto, extravasavam a agitação das trocas de aulas enquanto tinham de se deslocar de sala, aproveitando o tempo também para conversar e, então, chegavam ao seu destino um pouco menos agitados, o que já se tornava extremamente positivo para o desenvolvimento da aula.

Logo, os dados colhidos durante os estágios ao longo do ano de 2008, nessas duas escolas, parecem indicar que a educação pública do Brasil não vai tão bem. O momento, no entanto, não deve ser reservado para que culpados sejam encontrados, mas sim, para que modos de solucionar os problemas e reverter estragos maiores sejam considerados. Por meio desses dados, a analogia entre os dois ambientes escolares observados não pôde deixar de ser realizada. Assim, aspectos como formação inicial e continuada de professores e formação de alunos como leitores eficientes, bem como o ambiente da escola e suas salas de aula, são fatores-chave para promover um melhor desempenho no processo de ensino/ aprendizagem da clientela escolar e devem ser revistos para que se possa dar início à empreitada de resolução de tais distúrbios, que parecem corromper toda a rede de ensino.

Além desses fatores, sabe-se que existe uma série de outros problemas recaindo sobre o sistema educacional. Como exemplo, tem-se a variação constante de programas, desenvolvidos pelo governo em “prol” da educação, cuja maior parte não possui uma sistematização nem uma regularidade. Cada novo governo quer partir quase do zero, sendo que grande parte das soluções se dá a longo prazo.

Como prova disso, tem-se o planejamento estadual para o ano de 2008: no 1º. bimestre, foi apresentado aos professores e alunos o Jornal/ Cartilha “São Paulo faz Escola”; por outro lado, para o 2º. bimestre, o material parecia uma espécie de “apostila”, que era entregue somente aos professores e, com uma certa constância, os alunos passavam a realizar cópias de conteúdo da lousa. Desse modo, nem professores, nem alunos tiveram o tempo necessário para a adaptação aos novos programas. Por sua vez, os dirigentes não se mostram interessados em saber a opinião daqueles que realmente usam os materiais propostos, ou seja, docentes e discentes. Em virtude disso, não se vê o propósito de tanta mudança, visto que a melhoria dos materiais de ensino não é uma das prioridades do governo.

Feitas essas considerações, passo, agora, para a análise da questão do ambiente onde professores e alunos atuam: a sala de aula. Pode ser que nesse local se concentre a solução que explica o desempenho satisfatório da escola municipal (B) em relação ao desempenho razoável dos alunos da escola estadual (A). A sala de aula comum, presente na escola estadual do interior de São Paulo, é um ambiente que não é capaz de se adequar aos gostos dos alunos, visto que ela já vem pré-formatada e imutável. Os alunos, de certa forma, são fixos em suas carteiras. Poucas foram as vezes em que se observou a professora dividindo seus alunos em grupos e realizando atividades uns em parceria dos outros, estimulando, assim, a interação. A justificativa é que muita bagunça se formava durante a realização das tarefas.

As salas de aula ambiente, por sua vez, organizam o espaço de ensino/ aprendizagem muito bem: cada disciplina usa da melhor forma o espaço que lhe pertence, com disposição de materiais instigantes, evidenciando uma espécie de “conforto” na sala, em detrimento de suas características tradicionais: um espaço cheio de carteiras, lousa e cortinas. As salas-ambiente possibilitam o desenvolvimento de diferentes estratégias, bem como seqüências didáticas[1] mais interessantes, enriquecendo o ambiente escolar e motivando o aluno a aprender mais e, além disso, ensinando-o a aprender como aprender, tornando-o sujeito autônomo para uma constante aprendizagem.

No entanto, como se sabe, a maior parte das escolas tradicionais ainda não implantou as salas de aula ambiente. O que acontece é um grande desperdício de interação que poderia ocorrer entre os alunos, sendo que, para Semeghini-Siqueira (2006a), a interação verbal é extremamente importante, visto que promove o verdadeiro objetivo da língua, que é a comunicação. Contudo, uma das docentes acompanhadas durante o estágio na escola A se preocupava com a desordem provocada pelo barulho nas salas de aula e, por isso, não trazia atividades mais motivantes e/ ou em grupo. Resta lembrar, no entanto, que silêncio não é sinônimo de aprendizagem.

Além disso, outra justificativa possível para que se explique a opção pelas salas de aula comum em detrimento das salas de aula ambiente é que se perde muito tempo durante a transferência dos alunos de uma sala para a outra. Contudo, essa perda de tempo também acontece nas salas comuns, onde é o professor quem se desloca até os alunos. Assim, como o quadro abaixo, referente à escola A, evidencia, é o professor quem perde bem mais tempo tentando controlar a “desordem”, isto é, as participações exuberantes durante a interação de seus alunos, chamando-lhes a atenção, inutilmente, pois não existe muita motivação em assistir à aula se todos os dias é a mesma rotina. Deve-se levar em consideração que foram observadas 30 aulas e a duração de cada uma era de 50 minutos, dando um total de 25 horas de observação.

Fala do professor referente ao clima relacional[2] entremeada por conversas paralelas dos alunos

2h

Fala dos alunos sobre questões da aula

35'

Fala dos alunos sobre questões fora da aula: o professor continua a aula

ou espera silêncio

28'


23'

Outra:

cópia de questões para interpretação

interpretação de texto

chamada

 

45'

44'

1h33'

 
 
De acordo com os dados, portanto, o tempo gasto pela professora para chamar a atenção de seus alunos para que, assim, eles fiquem em silêncio e ela possa explicar o conteúdo a ser ensinado (2h) é bem maior do que o tempo usado pelos alunos sobre questões da aula (35').
 
Os dados desse primeiro relatório foram coletados a partir de um “diário de campo” durante o estágio de observação. Nele foram registradas as descrições das atividades que ocorriam durante as aulas e, a cada troca de atividade, colocava-se o horário em que ela começava para que, no final, fossem somados os tempos de interação professor-aluno, aluno-aluno, bem como a duração da fala do professor sobre o conteúdo/ assunto da aula, da fala dos alunos sobre questões da aula, de leitura, escrita, dentre outras. No fim do diário, as reflexões sobre a aula eram registradas. Em relação ao tempo destinado aos diferentes tópicos durante as aulas, foi realizada uma contagem dos minutos correspondentes a cada item do roteiro pré-planejado pela Profª. Drª. Idméa Semeghini-Siqueira. A fim de possibilitar uma visão geral dos itens observados e, conseqüentemente, uma comparação entre eles, a tabela 1 apresenta sua contagem, em horas:

Tabela 1

Fala do professor sobre o assunto/ conteúdo da aula

4h45'

Fala do professor referente ao clima relacional entremeada por conversas paralelas dos alunos

2h

Fala dos alunos sobre questões da aula

35 '

Fala dos alunos sobre questões fora da aula: o professor continua a aula

espera silêncio

28 '


23 '

Leitura de livro didático [LD]:                                               

textos

exercícios

outro

 

19 '

10 '

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Leitura de livros de literatura [ ] Como?

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Leitura de:                                                                           

gibis;

jornal

revistas

outro

programa do governo “Apostila” (fábulas/ relato etc.

textos do Jornal / Cartilha

 

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1h14 '

19 '

Escrita(autoria):                                                           

individual

em dupla

em grupo

 

2h21 '

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27 '

Escrita (cópia):                                                              

LD =texto

LD = exercícios de gramática 3

Atividade extra-programa

 

14 '

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50 '

Escrita (cópia):                                                          

lousa = texto

lousa = exercícios de gramática 3

 

3h03 '

1h11 '

Gramática 3:                                                       

exercícios do LD

exercícios da lousa

Outro: análise

 

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37 '

Gramática 3: aula expositive

2h26 '

Gramática 2: reescrita (autoria):                                        

individual

em dupla

em grupo

 

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Outra:

cópia de questões para interpretação

interpretação de texto

chamada

 

45 '

44 '

1h33 '

 

Atentemo-nos para o fato de que, do total de 25 horas observadas e disponibilizadas para que se ensinasse o conteúdo necessário, a professora dessa escola utilizou apenas 4h45'. Em relação ao problema da cópia, por sua vez, os mesmos dados evidenciam quanto tempo os estudantes passam copiando textos da lousa: são mais de cinco horas desperdiçadas apenas para a cópia de textos e tarefas.

Diferentemente da escola A, o que se observa na escola B é um extremo interesse dos alunos. Eles correm, sim, pelos corredores, gritam e conversam até chegarem às salas de destino, mas talvez estas sejam atitudes normais e saudáveis de crianças e adolescentes, às quais não seria necessária tanta repressão, como acontecia nas aulas observadas da escola A.

Os alunos da escola B, então, parecem ser estimulados a buscar, sem a ajuda do professor, pelo conhecimento, diferentemente do que acontece na outra instituição, em que poucas são as tarefas realizadas em casa, o que não contribui para uma rotina de estudos fora da sala de aula, ou seja, o aluno não é acostumado a estudar em outro ambiente que não seja o da escola. Dessa forma, não há meios para que ele aprenda como estudar de forma autônoma e avance na aprendizagem, sendo que, segundo o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a criação da autonomia é um dos objetivos primeiros da escola, para que, assim, sejam formados indivíduos críticos e criativos para enfrentar as situações díspares do mundo atual.

Visto que “a linguagem tem papel decisivo na construção do conhecimento” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2006b:01), um dos deveres da escola, em comunhão com professores, é dar subsídio para que os alunos exerçam seus direitos como cidadãos, isto é, que sejam capazes de refletir sobre fatos e tomar decisões, usar a linguagem para clarificar suas idéias e atitudes. Resta, no entanto, a capacidade concreta desses professores para conceder esse letramento necessário. Ainda, segundo Semeghini-Siqueira (2006:03), cabem aos professores dois papéis: “o de gestor dos processos de ensino e aprendizagem e o de gestor do clima relacional existente na sala de aula”. Esses dois fatores são, portanto, essenciais para a melhor simbiose entre professor e aluno: eles formam uma unidade para que os melhores resultados, ou aqueles desejados, sejam obtidos.

Para o aluno, então, desenvolver o conhecimento, é necessário também que ele seja capaz de ler, interpretar, estudar de modo independente e pesquisar. Aprender a refletir sobre seus próprios erros é imprescindível para que as crianças avancem na formação. Mas, o que foi observado nas salas de aula da escola A foi exatamente o contrário: atividades de reescrita, por exemplo, não foram pedidas ou estimuladas pelas professoras, e as de leitura ficaram restritas somente ao material usado durante as atividades, como se nota no quadro abaixo:

Leitura de:

gibis

jornal

revistas

outro

programa do governo “Apostila” (fábulas/ relato etc)

textos do Jornal / Cartilha

 

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1h14 '

19 '

 
 
Além do perfil socioeconômico e da alfabetização dos pais dos alunos, que influenciam no letramento emergente das crianças, uma das maiores contribuições para a aprendizagem vem do clima presente na escola. Para tanto, é necessário que exista um comprometimento tanto por parte da direção escolar (diretor, vice-diretor e coordenador pedagógico), como por parte do corpo docente. De fato, o ambiente onde funciona uma sala de aula se mostrou extremamente importante para um desenvolvimento satisfatório do processo de ensino/ aprendizagem.
 
Cabe aqui, portanto, o relato do estágio do 2º. semestre de 2008, que ocorreu naquela que denominei escola B, para que a comparação entre as escolas seja estabelecida. Nessa escola municipal, cujas salas eram salas-ambiente, diferentemente do estágio de observação e regência de aulas realizado na escola estadual do interior do Estado (escola A), o estágio foi condensado num Projeto de acordo com as orientações da Profª. Drª. Idméa Semeghini-Siqueira, o chamado Projeto CADIS (Comunicação à distância entre alunos do ensino fundamental mediada por estagiários e professores).
 
O princípio básico do Projeto CADIS é a troca de cartas realizada por alunos do ensino fundamental com a supervisão das estagiárias e das professoras de Língua Portuguesa responsáveis pelas turmas. Assim, além de resgatar a figura do interlocutor e fazer o aluno assumir seu papel de sujeito na interação, a aplicação do Projeto CADIS tem como objetivos fazer o aluno descobrir o prazer de ler e escrever e sentir “a importância de estar bem instrumentalizado para se comunicar” (SEMEGHINI-SIQUEIRA; BEZERRA; GUAZZELLI, 2001), sendo que esses objetivos serão alcançados por meio de uma atividade de leitura e escrita que fará sentido a eles, ou seja, mediante um fator motivador.
 
Com a liberdade de falar sobre o que quisessem e tendo em vista um interlocutor real, a saber, os colegas de outra cidade (Jundiaí – SP), os alunos assumiram seu papel de sujeitos da interação. Fazendo isso, puderam escrever e ler com prazer e, o mais importante, produziram textos por meio dessa ludicidade, pois a tarefa de se comunicar com alguém com particularidades, expectativas e opiniões às vezes distintas das deles e, às vezes, semelhantes em nada se assimila com o formato de produção de texto com o qual os alunos estavam habituados na escola.
 
Os resultados obtidos por meio do desenvolvimento do Projeto CADIS foram excelentes no que tange ao desenvolvimento da linguagem e à ampliação do desejo de escrever e ler nos alunos. Em todas as aulas os discentes conversaram e houve barulho, porém, entende-se aqui que o “barulho produtivo” é melhor que a passividade, e que disciplina não é sinônimo de silêncio, mas é “sinônimo de trabalho, diálogo, camaradagem, afeto e respeito mútuo” (NIDELCOFF apud FRANCHI, 2002:08). Durante o desenvolvimento do projeto, todos esses itens estiveram presentes, o que faz concluir que os resultados foram muito satisfatórios também no âmbito da disciplina, pois os alunos conversavam sim, mas dialogando sobre o que escrever em suas cartas, sobre que ponto de vista deveria ser enfocado e o que não era suficientemente relevante para constar das interações com os colegas do outro município.
 
Segundo uma reportagem da revista Veja de junho de 2008, o nível do professor exerce grande influência sobre o desempenho dos alunos: “No Brasil, os estudantes mais talentosos fogem da carreira de professor por ser pouco atraente” (PEREIRA, 2008:168). Ainda, o padrão dos candidatos a concursos públicos para as redes de ensino vem decaindo cada vez mais. Isso se deve a um reflexo de vários fatores, entre eles, a qualidade dos cursos de formação de professores. É preciso entender que os cursos formadores de docentes precisam melhorar seus currículos e proporcionar aos aprendizes idas às salas de aula, uma vez que eles terão de lidar com alunos “reais” ao seguir da carreira. E, por isso, o estágio se faz tão necessário e importante.
 
Uma das prioridades para a Educação, portanto, seria valorizar a melhor preparação de seus professores. Essa questão se faz urgente e, de certa forma, estratégica. Levando-se em consideração a existência de um círculo vicioso que se formaria a partir daí, seria possível observar que os professores se tornariam mais motivados, o nível de suas aulas melhorariam, os alunos seriam mais bem preparados e, provavelmente, pessoas mais aptas seguiriam essa profissão.
 
Logo, a carreira “professor” necessita de um plano de trabalho e de promoções bem definidos, assim como ocorre nas demais áreas, para que mais pessoas de qualidade sejam atraídas para esse campo: professores bons tendem a formar bons alunos – é preciso fazer a diferença na vida do estudante.
 
Os professores da escola A, contudo, um tanto quanto descompromissados com seus planejamentos, corriam com o conteúdo, despejando regras e definições sem sentido, mas ficavam satisfeitos por darem continuidade às aulas de acordo com o que estabelece o programa elaborado pelo governo do Estado. Dessa forma, 80% das aulas destinavam-se ao programa que o Governo do Estado estabeleceu previamente, 10% destinava-se ao uso de alguns textos do livro didático para cópia e interpretação, e 10% foram destinados à realização de provas escritas.
 
Outro aspecto falho observado na escola estadual A, diferentemente da escola municipal B, diz respeito à não-realização das chamadas Avaliações Diagnósticas e Formativas (ADeF), em que o professor tem um feedback a cada nova etapa que transpõe com seus alunos, percebendo suas melhoras e suas defasagens para, assim, planejar melhor suas aulas e desenvolver atividades que ajudem os alunos com maiores dificuldades. As ADeF, portanto, são capazes de identificar e suprir defasagens nos discentes, garantindo que ao longo do ano todos aprendam de maneira mais uniforme.
 
Sem essas constantes avaliações, o desempenho dos alunos mais “fracos” em relação aos outros se torna ainda menor se o professor não tenta, desde o inicio, mudar esse descompasso. O que se colhe, portanto, é desmotivação, abandono do curso, repetências no fim dos ciclos, desempenho baixo. Tudo graças à eficiência mínima e à falta de comprometimento do docente com o processo de ensino/ aprendizagem.
 
Na escola B, por sua vez, durante a permanência da estagiária na sala de aula, duas ADeF foram realizadas. A primeira apontava exatamente para aqueles alunos que não mostravam um bom desempenho da competência de escrita. Para contornar esse problema, eles foram divididos em grupos heterogêneos (alunos com bom desempenho e alunos com desempenho regular). Assim, uns ajudavam os outros nos momentos de reflexão sobre como tratar os temas que eram sugeridos para a redação, bem como durante a escrita do texto. No fim, o que se pôde notar por meio do projeto e das ADeF foi um considerável avanço dos alunos de nível “regular”.
 
No entanto, as práticas tradicionais na escola A são as mais priorizadas, infelizmente. Entendem-se como práticas tradicionais o ensino da gramática e suas nomenclaturas, ou a chamada Gramática 3, segundo Semeghini-Siqueira (2006b:05), que a define da seguinte forma: “quanto à ‘Gramática 3', pode-se dizer que abarca os componentes descritivos e normativos, trata-se do ensino da ‘gramática escolar', da ‘gramática pela gramática' sem haver uma preocupação com a atividade discursiva”. Os dados da tabela 1 evidenciam essa preferência.
 
Sendo assim, acabam por serem deixadas de lado atividades mais significativas para o desempenho dos alunos, os protagonistas do processo de ensino/ aprendizagem, como oralidade, leitura e escrita. Discuto, neste artigo, além de outras questões, a força das práticas tradicionais presentes durante o estágio, mas devo levar em conta uma série de fatores que corroboram para tanto: ausência de motivação dos alunos e professores, problemas de indisciplina e violência, ausência de educação contínua para os docentes, falta de tempo para o planejamento das aulas, baixo salário, descompromisso dos dirigentes em relação à educação etc.
 
Apesar de cada escola e seus ambientes serem singulares, parece que eles interferem de maneira significativa no processo de ensino/ aprendizagem. Por isso, estratégias que dão certo deveriam ser passadas adiante, tendo como exemplo a escola B e suas salas de aula ambiente, que contribuem cada vez mais para o sucesso desse processo e promovem uma melhor sintonia, e até mesmo simbiose, das personagens que a compõem: docentes e discentes. Contudo, é o professor o grande responsável por fazer com que as novas propostas dêem certo ou não. É por isso que se deve incentivar a formação continuada dos docentes para que eles estejam em constante atualização de suas práticas.
 
Essa rede de problemas gera resultados insatisfatórios. No entanto, parece que a formação inicial de professor exerce uma forte pressão para o desenrolar dessa trama, visto que ela produz reflexos na formação dos alunos. Assim, boa formação de professor e de leitores eficientes num ambiente que seja propício para tanto são passos para solucionar o problema da educação neste país.
 
É necessária, pois, uma maior atenção a eles. Não basta colocar alunos numa sala de aula se eles não são incentivados a aprender de maneira consciente. Mas não é só isso. Assim como o comprometimento de um educador frente à sua escola e aos seus alunos se faz necessário, a recíproca também vale para os dirigentes de um país tão grande com o Brasil.

 

Notas

[1] Seqüências didáticas, como o próprio nome diz, são um conjunto de atividades planejadas para ensinar um determinado assunto.

[2] Clima relacional diz respeito ao tempo perdido pelo professor na tentativa de manter a sala em silêncio.

 

Referências bibliográficas

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (2006a). Atividades de oralidade, leitura e escrita significativas: a construção de minidicionários por crianças com a mediação de professores. In: CATANI, D. & VICENTIM, P. Formação e Auto-formação: saberes e práticas nas experiências dos professores. São Paulo: Escrituras.

_____. (2006b). O poder do passado nas práticas escolares de oralidade, leitura e escrita contemporâneas: reconstituição de alicerces para otimizar o grau de letramento/literacia de jovens brasileiros. Anais/ Actas. XIV Colóquio da AFIRSE “Para um balanço da investigação da educação de 1960 a 2005”. Lisboa: Universidade de Lisboa/ FPCE.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa; BEZERRA, Gema Galgani; GUAZZELLI, Tatiana. (2001). Revitalizando a formação docente inicial e contínua: comunicação a distância entre alunos do EF mediada por professores e estagiários. Anais. Simpósio Internacional Crise da Razão e da Política na Formação Docente. Rio de Janeiro: UFF.

PEREIRA. Camila. (2008). 100% Lá X 48% Aqui. Revista Veja. São Paulo, n. 2063, p. 168-170, jun.

   

 

 Isabela Trazzi

 

Introdução

Este trabalho de observação e análise da prática docente em Língua Portuguesa foi desenvolvido em classes de 6ª. e 7ª. séries do Ensino Fundamental II na cidade de São Paulo, durante o primeiro semestre de 2008.

Com base em uma entrevista informal do professor acompanhado, em reuniões de planejamento e no registro de observações do cotidiano escolar, procurei verificar em que medida a prática docente dialoga com pesquisas metodológicas que fundamentam as propostas oficiais.

Para uma observação sistemática de como esse diálogo entre a universidade e a escola se dá (ou não), defini como foco de análise a abordagem interpretativa do texto, uma vez que, nos cadernos fornecidos pela atual Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, seu estudo sobrepuja, por exemplo, o da gramática.

A escolha das atividades de compreensão do texto como via de acesso ao estudo do diálogo entre as teorias lingüísticas e a prática de ensino deveu-se, ainda, por já revelar a influência de uma corrente teórica da década de 1960 que instituiu, segundo Marcuschi (2001), como nova unidade lingüística, o texto, cuja análise e produção substituiriam o estudo formal da língua no final da década de 1990. Trata-se da assimilação, pelas propostas oficiais, da nova concepção de língua, que será acompanhada de novas orientações de ensino.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP), conforme assinala Marcuschi (2001), sugere-se que seja ensinada a distribuição (classificação) dos textos em gêneros com características peculiares e socialmente organizados. Essa perspectiva de análise e descrição do texto é também destacada no Caderno do Professor de 6ª. série do Ensino Fundamental, organizado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, no qual figura como um conteúdo a ser trabalhado[1]:

1. Tipologias e gêneros textuais nos dois primeiros semestres;
2. Texto, discurso e história nos dois últimos semestres.

Destaca-se que o fundamento teórico (teoria dos gêneros) da proposta é expresso de forma ainda mais clara com a indicação da fonte: Gêneros textuais e ensino, de A. R. Machado e M. A. Bezerra.

Outras reflexões teóricas – como as reflexões sobre as funções da linguagem de Jakobson (1973) ou aquelas sobre as noções de registro e norma propostas pela Sociolingüística (também elencadas nos PCNLP ) – perpassam as atividades sugeridas pelos autores do Caderno , como se pode observar na seguinte proposta de elaboração de um quadro com os aspectos característicos do gênero a que o texto lido pertenceria:

nome do texto

função comunicativa social

marcadores de tempo

nome do autor

Tema

o tempo verbal no título e no corpo da notícia

referência de publicação

linguagem/ registro

gênero textual

 

A observação do cotidiano escolar, no entanto, aponta grandes diferenças entre a abordagem proposta pelos documentos oficiais e a abordagem do professor acompanhado. Para refletirmos sobre essa distância entre a academia (ainda que opacamente representada pelas propostas oficiais) e a escola fundamental, lembremos do problema destacado por Geraldi (2003) da separação entre o pesquisador (produtor do saber) e o professor (transmissor do saber). Dessa cisão, e da tomada de novidades de pesquisa como algo que anula tudo que se pensava anteriormente, resultam duas reações do professor do primeiro grau: resistência às novidades e insegurança.

Nesse sentido, a postura resistente e despreocupada do professor, refletida em seu desinteresse, por exemplo, pelo material fornecido pelo Estado evidencia os motivos do desprestígio e da crise de autoridade associados à imagem que se tem do professor atualmente[2].

 

Análise

Observando as aulas

Para facilitar a apresentação dos dados coletados e de sua análise, agrupei as aulas cujos contextos eram semelhantes. Primeiramente, serão observadas as aulas em que o professor elaborou questões interpretativas sem conhecer o texto; em seguida, uma aula em que o professor tinha acesso ao texto; posteriormente, aulas em que o professor perguntava o que os alunos achavam que queriam dizer os versículos bíblicos postos na lousa; e, finalmente, aulas em que os alunos responderam a questões dissertativas que acompanhavam os textos dos livros didáticos de Ciências ou História.

Nas situações descritas a seguir, como não havia nenhum livro didático disponível do qual o professor pudesse extrair algum texto que seria passado na lousa e copiado pelos alunos, e, julgando não haver nada de interessante no Caderno que folheava, o professor escreveu na lousa as seguintes questões:

1.  Fale sobre o livro que você leu e mais gostou.
2.  Comente sobre os principais personagens.
3. Se você fosse o autor do livro e tivesse que finalizar o livro de outra maneira como seria?

Semelhante ao desta aula é o contexto de outra aula em que o docente propõe a seguinte atividade: com base no texto passado na lousa por um professor eventual que o substituíra na semana anterior, ele pede que os alunos “respondam à questão”:

1. Crie 5 questões relacionadas ao texto anterior.

Nessas duas situações, como já foi anteriormente introduzido, observamos contextos semelhantes para a formulação de questões: o professor não conhece o texto que deve ser analisado, o que, poder-se-ia supor, o impeliria à elaboração de perguntas tão genéricas e tão voltadas para o gosto do aluno. No entanto, observemos uma situação diversa em que o professor conhece o texto – texto publicitário sobre o Museu Lasar Segall – que fora passado na lousa pela professora eventual e que os alunos tinham acabado de copiar. Eis as questões elaboradas:

1. Qual é o objetivo do museu Lasar Segall?
2. O que chamou mais sua atenção em relação ao texto anterior?
3. Se você fosse artista (plástico, pintor, escultor, etc...) como seria sua exposição em um museu desse porte?

Cabe a pergunta: o que justificaria, então, uma “leitura” tão desvinculada do próprio texto que o torna um simples pretexto para outras discussões que nem sempre acontecem? Para que seja evitada uma crítica (ou lamento) improdutiva do docente, é preciso verificar nas próprias teorias e discursos científicos vestígios de fundamentos dessa forma de “ler”.

Para desenvolver essa questão, estabeleceremos, inicialmente, um diálogo com Todorov (2007), que num balanço de sua relação com a literatura, empreende também uma breve revisão histórica de diversas formas de abordagem do texto literário. Conta o crítico que na década de 1920, assim como os formalistas russos, ocupou-se de aspectos exclusivamente lingüísticos do texto (forma de escapar da defesa literária da ideologia comunista), e que depois sentiu a necessidade (e vontade) de desenvolver novos métodos, na França democrática dos anos 1970, para analisar a literatura, entendida agora, também como um discurso que nasce no meio de tantos outros, dos quais partilha características. No entanto, é preciso ressaltar que essa posição adotada pelo crítico trazia as marcas do contato com os formalistas. Nesse período, estudava-se, na França, em geral, o contexto histórico da obra, sua recepção, a biografia do autor, protótipos das personagens, ou seja, deslocava-se o foco: o que importava não era o sentido do texto, mas o que o havia gerado e seu impacto. Esse exemplo de diferentes movimentos na história da crítica literária serve-nos de base para a análise da abordagem do texto nas salas do Ensino Fundamental.

Conforme afirma Geraldi (2003:171), são também percursos de leitura comuns aqueles guiados por questões que se referem exclusivamente ao que é dito no texto, que proporcionam uma “leitura-busca-de-informações”. A primeira pergunta acima, sobre o museu, induz a esse tipo de leitura do texto. Contudo, caso o professor estivesse disposto, a pergunta poderia estimular discussões como: uma obra de arte é um patrimônio cultural da humanidade e deve ser exposta num museu? Ou, é justo que uma pessoa com dinheiro a compre? (discussão sobre o estatuto de mercadoria da obra de arte). Se a primeira tende a uma leitura que se fixa no texto, a última questão é totalmente desvinculada do sentido construído nele e por ele. Destaco, ainda, a vagueza da segunda questão proposta pelo professor (“O que chamou mais sua atenção em relação ao texto anterior?”) visto que a expressão destacada abre a possibilidade de o aluno indicar algo que não está no texto.

Devo mencionar que, ao ler as respostas às questões elaboradas pelo professor na primeira situação arrolada, verifiquei que quase todos os alunos elegeram como livro predileto Peter Pan[3], que haviam lido no ano anterior. Apenas dois alunos citaram O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien. Logo, constatamos que, no caso da maioria dos alunos, a escola é o único acesso à literatura e tem feito essa mediação de forma bastante superficial. Não se trata de negar a fruição e o prazer pela obra literária, pois pelo contrário, como já disse Barthes (1973), esse impacto deve preceder a análise que não fará muito além de tentar explicar porque a obra despertou tais sentimentos, tais revoluções em nós e em nossa forma de ver o mundo. É fato que a primeira questão explorou de maneira insuficiente a fruição, a segunda levou à mera caracterização física das personagens, e a última questão (“Se você fosse o autor do livro e tivesse que finalizar o livro de outra maneira como seria?”) obteve resposta unânime por parte dos alunos: “não mudaria nada”. O que não é de estranhar... afinal, adoraram o livro?![4]

Assinalo, finalmente, com relação aos casos agrupados nesse bloco, a incoerência da “questão” proposta na segunda situação (“Crie 5 questões relacionadas ao texto anterior.”). Com base no contexto em que foi formulada – o professor interrogava longamente os alunos sobre quem havia destruído o material dos colegas da tarde – podemos afirmar que essa atividade foi proposta apenas como pretexto de “passatempo”, para que os alunos escrevessem algo para ser vistado ao final da aula, enquanto a professora solucionava o impasse da destruição.

Um terceiro contexto de leitura de textos é fundamentado na interpretação de versículos bíblicos que os alunos sorteiam e escrevem na lousa, para que o professor pergunte o que eles entendem da “palavra”, o que, na maioria das vezes, os alunos não respondem ou respondem através de paráfrases que o docente conclui. Destaco que, nesse caso, a leitura realizada se caracteriza pela simples decodificação do código: enquanto o professor pressupõe que os alunos não são capazes de entender e lhes pede para explicar o que parece óbvio, pois acabaram de ler[5] o texto, os alunos se perguntam: “o que ele quer saber?”. Além da concepção de leitura implicada nessa atividade, é discutível também, a inserção desses textos com o objetivo de depreender valores morais; justificar-se-ia, por exemplo, o tratamento da Bíblia como texto literário, cujas imagens poderiam ser analisadas; no entanto, o professor, assumidamente evangélico, introduz o texto dizendo: “Nesse mundo, não é possível fazer nada sem Deus!”.

O quarto contexto identificado corresponde à leitura de textos didáticos de Ciências e História e à resolução dos exercícios que os acompanhavam, e nesse caso, destaco algumas dificuldades encontradas pelos alunos que não se referem a problemas de construção do sentido, mas de desconhecimento da matéria. Como exemplo, posso citar a dúvida levantada por uma aluna que não sabia transformar litros em quilogramas. Saliento que o professor não considerava negativa essa atividade; ao contrário, comentava freqüentemente na sala dos professores que, em suas aulas, ajudava os alunos, pois ensinava-os a lerem os textos das diversas matérias. Com isso, não queria o professor dizer, como se pode comprovar pela observação das aulas, que fornecia diferentes “ferramentas” de leitura para tipos de textos diversos (percurso de leitura defendido por Todorov). Na verdade, a observação das diferentes situações aponta percursos de leitura que não possibilitam a produção de conhecimento, finalidade da leitura descrita por Geraldi (2003), pois a leitura, nesses contextos, é destinada à busca de informações, ou seja, concentra-se no que é dito e não explora as formas de dizê-lo.

 

Elaborando outras propostas

Considerando os problemas levantados por Geraldi e por Todorov, tentei nos estágios de regência, vincular a leitura à produção de textos, como sugere o primeiro, e elaborar questões muito mais específicas por respeitarem o texto analisado.

Apresento aqui, quatro aulas de leitura e interpretação elaboradas ao longo do estágio. A primeira delas, aplicada em duas classes de 7ª. série, corresponde à continuação de uma atividade de produção de textos desenvolvida a partir do jogo do detetive. Como verificara que os alunos se preocupavam em geral apenas com o que deveriam escrever (com as informações que deveriam inserir e que se encontravam na lousa), dando pouca atenção à caracterização dos personagens[6] ou ainda à organização da progressão temporal dos acontecimentos que, na narração indicam, obrigatoriamente, uma transformação de estados (FIORIN, 1991), levei aos alunos dois textos diferentes: uma notícia de jornal, cujo tema era a reconstituição do assassinato da menina paulistana Isabella Nardoni, em março deste ano, e o “Poema tirado de uma notícia de jornal” de Manuel Bandeira. Para facilitar a apresentação dessa proposta, reproduzo a seguir os referidos textos:

 

TEXTO 1: Começa reconstituição da morte de Isabella
(por Juliana Cardilli)

      Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá não participam do procedimento. Defesa dos dois suspeitos alega que a polícia lida apenas com uma hipótese para o crime.
     Começou às 9h40 da manhã deste domingo (27) a reconstituição da morte da menina Isabella Nardoni, no Edifício London, na Vila Mazzei, Zona Norte de São Paulo, onde ela foi assassinada no dia 29 de março.
     Isabella morreu após ser espancada, asfixiada e jogada do 6.o andar do edifício, onde morava o pai e a madrasta dela, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, considerados pela política suspeitos do crime. Eles não participam da reconstituição porque, segundo a defesa, a polícia lida apenas com uma hipótese para o crime e tem versões que divergem com a do casal. [...][7].

Fonte: Folha de São Paulo, março de 2008, destaque meu.

 

TEXTO 2: Poema tirado de uma notícia de jornal

 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da [Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(In: Libertinagem, de Manuel Bandeira)

Pergunto aos alunos se seria possível identificar, no primeiro texto, uma seqüência de fatos, acontecimentos. Eles respondem afirmativamente e começam a contar o que havia acontecido, baseando-se também em outros textos veiculados pela mídia. Peço para que eles se atenham ao texto da lousa. Eles novamente afirmam ser possível e lêem a frase, aqui, sublinhada. Em seguida, pergunto o quê naquela frase indicava a progressão dos acontecimentos. Um aluno responde que é a vírgula. Concordo e pergunto, finalmente, se seria possível alterar a ordem em que os acontecimentos são colocados nesse texto, exemplificando: “Isabella morreu após ser jogada, asfixiada, espancada”. Os alunos respondem: “Ah! Até é, professora, mas ia ser engraçado!”. Essa reação dos alunos mostra a compreensão de que a ordem é também significativa. Em seguida, uma aluna questiona: “Mas, professora, eu posso escrever: Isabella foi espancada, asfixiada e jogada, por isso morreu?”. Concordo e coloco na lousa as seguintes frases:

Isabella morreu porque foi espancada.
Isabella foi espancada e por isso morreu.

A partir dessas frases, explico que há várias formas de escrever uma mesma informação e que cabe a nós escolhê-las de acordo com nosso estilo e objetivo. Exemplifico: se queremos enfatizar a causa da morte da menina, qual frase deveríamos escolher? Se, ao contrário, queremos enfatizar a informação de que ela morreu, qual frase seria mais conveniente?

Prossigo, então, com uma breve comparação entre os dois textos, com o intuito de mostrar os diferentes efeitos e objetivos a que visam os textos, sendo orientada pelas seguintes questões:

1. Nesse poema de Manuel Bandeira, podemos reconhecer elementos, características de um texto narrativo como: apresentação de personagens e localização do acontecimento no espaço e no tempo. Com base no poema, o que se pode dizer sobre João Gostoso? Esse nome permite que identifiquemos realmente o personagem? O que podemos dizer sobre o lugar onde mora João Gostoso?
2. Com relação ao tempo, podemos identificar exatamente quando aconteceu o suicídio?
3. É possível descrever a ordem dos acontecimentos? Indique a ordem e diga como você chegou a essa conclusão.
4. Vinte de Novembro é data de morte de Zumbi dos Palmares. Qual seria a possível ligação dessa informação com o poema?
5. Na sua opinião, por que o autor nomeia claramente a lagoa Rodrigo de Freitas e não dá nome e sobrenome ao personagem?[8]

Após pedir que os alunos fizessem uma leitura silenciosa do texto e que algum voluntário lesse o poema em voz alta, elaboro algumas questões oralmente. Com relação à primeira questão, pergunto aos alunos se “Gostoso” era sobrenome do personagem. Eles respondem que não, que, provavelmente, era seu apelido. Concordo e pergunto se ele e sua casa seriam facilmente encontrados, já que não poderíamos achar seu nome e endereço numa lista telefônica, por exemplo. Eles respondem que talvez se perguntássemos por ele no morro da Babilônia alguém soubesse nos informar. Concordo, mas replico: “Considerando o título do poema que associa o texto, em certa medida, a um texto jornalístico que informa a morte de alguém (como o que vimos sobre a morte de Isabella Nardoni), vocês acham que esse texto realmente é informativo e poderia aparecer num jornal? Vocês acham que se alguém lesse a notícia poderia sair correndo para avisar a família? Lembremos que no texto não aparecem o sobrenome de João (nome extremamente comum) nem o número de sua casa.” Todas essas perguntas colocam em questão a referencialidade do texto. O texto parece ser informativo, mas apresenta uma imprecisão intencional: João seria alguém que vive no mundo da informalidade, uma pessoa desconhecida que se confunde no meio de tantas outras.

Com relação ao tempo em que é localizada a ação, muitos alunos respondem: “Vinte de Novembro”. Essa resposta revela a falta de atenção ao texto, no qual está expresso claramente que essa data é o nome do bar onde João fora antes de suicidar-se. Na verdade, os alunos mobilizam seu conhecimento enciclopédico – vinte de novembro é uma data, data indica tempo, logo, é quando acontece a ação. Cabe também, ao professor, avaliar sua própria estratégia em relação ao objetivo que define preliminarmente. A elaboração desse questionário, se de um lado, dirige o olhar do aluno para questões importantes do texto, pode resultar na tal leitura-busca-de-informações que o faz achar que a data que aparece no poema é a data da qual fala o professor.

Uma vez identificada por um aluno a indicação temporal do poema “uma noite”, peço que reflitam se essa indicação seria suficiente numa notícia de jornal; se uma pessoa que quisesse ir ao velório de João saberia quando este seria ou se já havia sido. Ainda com relação ao tempo, mais especificamente com relação à progressão temporal, peço para que eles se lembrem do que havíamos discutido sobre o texto jornalístico a respeito da morte de Isabella. Um aluno indica a separação das linhas e outro o advérbio “depois”. Concordo e aproveito o tema para dizer que, no texto oral, podemos marcar a ordem dos eventos com termos como , daí; mas, que esses termos deverão ser substituídos ou eliminados na escrita.

Destaco que a maioria dos alunos apresentou dificuldades para responder à quarta questão. A maioria não viu nenhum vínculo possível entre a informação de que o nome do bar levava a data da morte de Zumbi dos Palmares e o poema. Outros indicaram que os dois haviam morrido na mesma data. Na verdade, esperava-se uma resposta simples: a informação e o poema se ligam pelo tema da morte. Ou, ainda, uma reflexão sobre os mortos: João Gostoso, assim como Zumbi dos Palmares, é um “personagem” simples, pertencente a um grupo marginalizado.

Para estimular a reflexão sobre a última questão, informei aos alunos de que a lagoa já havia sido batizada diversas vezes. Já fora: Lagoa de Amorim Soares (fazendeiro de cana); Lagoa de Fagundes (Fagundes Varella, genro de Amorim Soares) e Lagoa Rodrigo de Freitas (marido da bisneta de Fagundes Varella). Comento que são sempre homens ilustres, pertencentes a classes dominantes que têm seus nomes emprestados a ruas, praças ou lagoas. Indico, ainda, que a origem dos sobrenomes se deu devido à necessidade de se fazerem contratos de casamento entre os ricos para distribuição da herança. Destaco que o resultado não foi tão produtivo, pois os alunos responderam, em geral, que se tratava de uma homenagem a Rodrigo de Freitas.

Ressalto que um dos grandes problemas enfrentados durante a regência foi a impossibilidade de mostrar aos alunos o resultado de seus esforços (ou da ausência deles). Apesar de eu ter lido e comentado a atividade de todos os alunos, o professor disse não ser necessário esse retorno, o qual considerava “perda de tempo”.

Outra aula de leitura e interpretação, cujo tema era “Memória e Sociedade: o viajante, a terra”, elaborada para os alunos da 7ª. série, foi desenvolvida a partir da proposta de oficinas de preparação para a “Olimpíada de Português: escrevendo o futuro”. Como observara que o tema da olimpíada era a relação entre a memória e a sociedade, resolvi elaborar um ciclo de aulas focalizando os narradores de Walter Benjamin[9]. Inicialmente, elaborei uma aula em que escutamos a narração daquele que podemos chamar de “narrador viajante” do célebre poema de Gonçalves Dias “A canção do exílio”. A proposta dessa aula era a discussão de diversos textos relacionados a esse para a confecção futura de uma outra “canção do exílio”. Trata-se de uma proposta pautada na sugestão de Geraldi (2003) de atrelar a leitura à produção, ou seja, de trazer o texto para a sala como um modelo. Entretanto, o professor acompanhado disse que os alunos já estavam cansados de escrever textos e que eu deveria passar apenas algumas questões na lousa.

Primeiramente, pergunto aos alunos se eles conheciam aquele poema; alguns responderam que sim, outros que não. Pergunto se eles conheciam outro texto similar à canção. Um aluno diz que ela parecia o hino nacional. Concordo plenamente e explicito que alguns versos do poema de Gonçalves Dias haviam sido inseridos no hino. Em seguida, peço-lhes que observem a data do poema. Questiono o que acontecera de importante na história do Brasil na primeira metade do século XIX. Os alunos respondem que tinha sido a independência do Brasil. Pergunto que tipo de sentimento em relação ao país eles achavam que as pessoas tinham naquela época. Como nenhum aluno responde, pergunto o que sentimos em relação à pátria na época da Copa do Mundo de Futebol ou ainda quando se declara guerra a outro país. Eles respondem que sentem orgulho, amor. Peço, então, para que, com base nessa observação, eles respondam às questões:

1. O poema opõe dois lugares “lá” e “cá”. Indique as demais oposições. Ex. as aves lá gorjeiam X as aves cá não gorjeiam.
2. Na segunda estrofe, encontramos o termo “nosso” e não mais “minha”. A quem se refere o primeiro termo?
3. Indique quais são os elementos exaltados pelo eu-lírico. Categorize-os. Ex. palmeira – elemento da flora, da natureza do país.
4. Que visão do país tem o eu-lírico?

Nesta aula, é feita ainda a leitura do poema “Minha terra” escrito por uma garota de Manari (PE), Valéria Fagundes, e lido no filme Pro Dia Nascer Feliz (2004) de João Jardim, como exemplo de como a “Canção do Exílio” ainda pode motivar a escrita de outras pessoas, assim como já foi, ao longo dos tempos, uma grande fonte de inspiração para autores como Oswald Andrade, José Paulo Paes, entre outros. Também foram lidos alguns trechos de uma reportagem sobre a cidade de Manari: “Manari, onde o IDH é baixo e água vale ouro”, redigida por Paulo Rebêlo em 2004.

A partir da leitura desses textos, foram levantadas as seguintes questões:

1. Quais são as características da terra exaltadas pelo eu-lírico?
2. Comente a diferença entre dizer:
     “Nosso céu tem mais mais estrelas,
      Nossas várzeas têm mais flores,
      Nossos bosques têm mais vida,
      Nossa vida mais amores"
      e “O céu é menos cinzento”
3. Relatos: você conhece alguém que se viu obrigado a sair de sua terra? Quais são as lembranças que essa pessoa guarda dela?

A escolha desses textos pretendeu estabelecer junto aos alunos um diálogo crítico, que fomentasse o interesse em cada um para também elaborar o seu próprio texto e visou a demonstrar a possibilidade de criar, através da comparação entre diversos textos, relações que extrapolam os limites de uma leitura meramente informativa. Apesar da apatia e do desinteresse comumente observados ao longo das aulas acompanhadas, a seriedade e coerência com que essas novas propostas foram inseridas em sala gerou nos alunos curiosidade e interesse, e, apesar do tempo incipiente, foram acolhidas com respeito e consideração.

 

Conclusão

Como procurei ressaltar ao longo deste trabalho, a simples crítica do docente acompanhado, que ressaltasse apenas sua falta de compromisso, sua superestima com relação a sua formação e subestima com relação aos alunos (eram freqüentes comentários: “Eles são tão fracos!”), não se apresenta como via mais produtiva para a compreensão do fracasso gerenciado do ensino da leitura na escola, já que como se tentou demonstrar, é possível verificar, nas próprias teorias e discursos científicos, vestígios de fundamentos dessa forma de “ler”. Conforme instruem os críticos trazidos a essa discussão, é necessário adotar a novidade sem abandonar o antigo que funciona; é preciso adequar-se ao texto e não adequá-lo a padrões (nesse sentido, cabe a crítica ao modelo de leitura sugerido pelas propostas oficiais em que se pede apenas que os alunos enquadrem os textos em determinados grupos). Essa perspectiva atenuaria implicações da adoção de certas metodologias em detrimento de outras “menos adequadas” ao contexto escolar.

Além disso, deve-se privilegiar o texto como objeto de estudo e não seus estudos, as ferramentas para seu estudo – nesse sentido, ressaltei a tentativa de eliminar, nas seqüências didáticas, o abismo geralmente existente entre o estudo do texto e de elementos externos como o contexto histórico de sua produção; a tentativa de direcionar a atenção dos alunos às formas de dizer e não apenas ao que é dito; e, ainda, a tentativa de vincular a leitura à escrita. Cabe destacar a relevância do desenvolvimento desses percursos de leitura em nosso período de formação, visto que, como assinala Todorov, atribuiu-se ao professor uma difícil tarefa: “intérioriser ce qu'il a appris à l'université mais, plutôt que de l'enseigner, le ramener au statut d'un outil invisible” (2003:33)[10]. Talvez seja essa a maior lição do professor ao pesquisador que procura, hoje, fugir às formas de ler que se fundamentam no que está ao redor do texto ou nas teorias de análise, já que é essa a única forma de leitura e fruição do texto.

 

Notas

[1] Destaca-se que a aprendizagem desse conteúdo seria avaliada numa prova aplicada em todo o estado.

[2] Cabe ressaltar as freqüentes falas do professor que revelam a tentativa de imposição de autoridade: “Eu como psicólogo que sou...”; “Caso você não saiba, eu sou advogado e posso te colocar na cadeia.”; “Já fiz vários cursos, inclusive no exterior.”.

[3] Perguntei aos alunos se era a adaptação feita por Monteiro Lobato da obra de James Barrie, mas não souberam dizer.

[4] Cabe destacar a reflexão que poderia ser feita a partir dessa questão: Qual o papel do leitor? Qual é sua liberdade de interpretação? Sua liberdade de interferência (lembremos, da interferência dos espectadores nos finais de telenovelas)?

[5] Destacamos uma passagem descrita no diário de observação de aulas em que o professor se nega a responder um recado peculiar de uma mãe, uma passagem bíblica um tanto obscura, dizendo ser professor e não analista de Bíblia.

[6] Para fornecer exemplos de como introduzir um personagem na narrativa e de como recuperar pistas que nos permitem caracterizá-los – e aceitá-los como seres (ainda que não reais) – havia selecionado trechos do poema “Morte e Vida Severina (Auto de Natal Pernambucano)” em que o próprio narrador se apresenta. Porém, o professor acompanhado disse que o texto não tinha nenhum vínculo com a matéria e que, por isso, não deveria ser apresentado.

[7] Foi colocado na lousa apenas o terceiro parágrafo, os dois primeiros foram lidos pela estagiária.

[8] Essa questão é substituída, na aula dada em outra sala, por uma questão que me pareceu mais importante e mais clara quanto à reflexão que pretendia suscitar. Ei-la: Na sua opinião, esse texto visa ao mesmo efeito e objetivo de uma notícia de jornal?

[9] BENJAMIN, Walter. (1994). O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura . Trad. Sergio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7ª. Ed. São Paulo: Brasiliense. (Obras Escolhidas; vol.1).

[10] “interiorizar o que ele aprendeu na universidade, mas, mais que ensiná-lo, dar-lhe o status de ferramenta invisível” [minha tradução].

 

Referências bibliográficas

FIORIN, José Luiz (1991). Tipologia dos Textos. In: SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Língua Portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade. São Paulo: SE/CENP. (Projeto IPÊ: Atualização e aperfeiçoamento de professores e especialistas em educação por multimeios).

FOUCAULT, Michel (2001). A verdade e as formas jurídicas. Trad. R. C. de M. Machado e E. J. Morais. Rio de Janeiro: Nau.

GERALDI, João Wanderley (2003). Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes.

ILARI, Rodolfo (2007). Introdução à semântica – brincando com a gramática. São Paulo: Contexto.

JAKOBSON, Roman (1973). Lingüística e Comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix.

MARCUSCHI, Luiz Antônio (2001). O papel da lingüística no ensino de línguas. In: Investigações Lingüística e Teoria Literária. Recife, v.13/14, p. 187-218.

TODOROV, Tzvetan (2007). La littérature en péril. Paris: Flammarion.
   
   
Segunda, 01 Dezembro 2008 00:00

Citação de vozes no cotidiano de uma escola

 

Giovanna Ike Coan

 

Introdução

O presente artigo é resultado do estágio realizado para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I (FE/ USP), ministrada pelo Professor Doutor Valdir Heitor Barzotto no primeiro semestre de 2008. Foram cumpridas quarenta horas-aula de observação e vinte horas-aula de regência em quatro salas de 1ª. série do Ensino Médio de uma escola estadual da zona sul de São Paulo, que tinham a mesma professora responsável pela matéria.

A partir de uma visão distanciada de minha experiência no cotidiano dessa escola, pretendo analisar como o conceito bakhtiniano de apropriação do “discurso de outrem” – isto é, a noção de enunciado como um acúmulo de vozes, de discursos prévios – aparece na fala da mídia sobre o colégio e também nas falas de personagens que participaram do estágio, quais sejam: a diretora, a professora, eu (como estudante de Letras e estagiária) e os alunos. Os enfoques são os discursos sobre autoridade, disciplina e êxito escolares e o discurso da Sociolingüística.

Para a realização deste estudo, utilizo as considerações da Análise do Discurso sobre as noções de enunciado, enunciação, polifonia e interdiscurso.

Quanto ao primeiro conceito, tomo o enunciado não como o produto da enunciação, mas como uma seqüência verbal que pode precedê-la. Foucault (apud BRANDÃO, 1995:31) aponta que: “Enquanto que a enunciação se marca pela singularidade, pois jamais se repete, o enunciado pode ser repetido”. Além disso, a contribuição de Bakhtin para os estudos da linguagem mostra que a compreensão de um enunciado deve ser sempre dialógica:

Bakhtin afirma que tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala. (BRAIT, 2003:14 – grifos do original)

A partir dessa concepção bakhtiniana da linguagem como sendo polifônica, Pêcheux (apud CORRÊA, 2002:61) concebe a noção de interdiscurso, a saber, a relação que todo discurso mantém necessariamente com algo que lhe é prévio. Para Orlandi (1999:34), em se tratando do interdiscurso, isto é, da memória discursiva, “é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o ‘anonimato', possa fazer sentido em ‘minhas' palavras”. Portanto, o enunciador (o sujeito falante) atua como um transmissor de enunciados anteriores ao momento da enunciação.

É possível aproximar as considerações da Análise do Discurso com o que diz Certeau (1996:250) sobre os “retornos e voltas de voz”, pois que, em situações-limites, as citações podem escapar ou cortar o discurso, causando-lhe efeitos de alteração (“ela in-quieta o texto”) e deixando de ser, assim, a voz prévia. Logo, segundo o autor, nesses casos, há uma “fratura entre o enunciado (objeto escrevível) e a enunciação (ato de dizer)”, e, portanto, junto à “voz citada”, surge uma “contra-voz” que a altera ou contradiz.

Desse modo, o presente artigo tem o objetivo de identificar nas falas com que tive contato durante o estágio vozes anteriores que as sustentam e as possíveis rupturas de sentido entre o enunciado original e sua apropriação na situação de comunicação.

 

Estudos de casos: estudos de “vozes”

“Um aspecto de escola privada”

A escola onde realizei o estágio é reconhecida por sua tradição[1] e, recentemente, recebeu muita atenção da mídia por ter tido um ótimo desempenho no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) entre os colégios estaduais da capital paulista.

Um dos principais jornais de São Paulo[2] publicou uma entrevista com a diretora da escola e, três dias depois, um artigo de opinião no qual destacava as características da instituição vistas como positivas e como fatores para o êxito no exame; reproduzo, a seguir, alguns trechos do último:

(...)
Sua nota a coloca à frente de muitas escolas particulares.
(...)
Por causa da capacidade dos pais de levantar recursos, a [escola] XXX tem um aspecto de escola privada, com as paredes limpas e pintadas, os jardins bem cuidados.(...) A direção e os professores são os primeiros a reconhecer o impacto positivo da paisagem.
(...)

Se prestarmos atenção ao trecho acima, vemos que os alunos não estão colocados como participantes em tais situações (“capacidade dos pais de levantar recursos”, “A direção e os professores são os primeiros a reconhecer o impacto positivo da paisagem”). De fato, dentre as demais reportagens jornalísticas sobre o colégio a que tive acesso nesse período[3], apenas uma deu voz a um ou dois adolescentes que estudam na instituição, após serem exibidas entrevistas com o vice-diretor e alguns professores. É possível dizer que, por meio do discurso da mídia, estamos diante da palavra daqueles que pertencem ao topo da “hierarquia pedagógica”, ou seja, daqueles que se encarregam de manter a ordem autoritária e o ethos de disciplina no ambiente escolar[4], enquanto os alunos têm suas vozes silenciadas.

Tal desconsideração ao alunado (se assim posso falar) é evidente na exclusão dessa categoria de sujeitos da apreciação dos “jardins bem cuidados” – e aqui me pergunto: a paisagem não causaria a eles também um impacto positivo? E este não estaria relacionado indiretamente ao bom desempenho que têm nos exames? – e ainda no outro ponto a que dou destaque neste artigo, i.e., no referido “aspecto de escola privada”.

Voltando à citação acima, temos que, além dos jardins, o que dá “aspecto de escola privada” a esse colégio são as “paredes limpas e pintadas”. Aqui, analiso como o discurso prévio em que se baseia essa enunciação – a saber, os sentidos históricos que foram construídos em torno do termo escola privada brasileira – está sendo apropriado pelo enunciador e como a análise empírica da situação escolar demonstra haver limites e contradições a seu uso. Minha experiência nas dependências da escola revelou-me que nos corredores, nas próprias salas de aula e no pátio, ou seja, nos ambientes em que os alunos mais ficavam no colégio, as paredes eram, de fato, “limpas e pintadas”, e nada além disso. Os poucos murais da escola tinham avisos sobre concursos de bolsas para cursinhos pré-vestibulares ou anúncios de vestibulares em faculdades particulares, escassas informações sobre o Grêmio Estudantil, e, ainda, informes de festas do colégio ou de competições entre as escolas públicas. Dentro das salas de aula, não havia absolutamente nada nas paredes. O único local em que encontrei fotos e produções dos alunos foi no Centro de Línguas[5] – um espaço de acesso restrito. Esse retrato contrasta muito com a imagem observada no corredor das salas dos diretores, coordenadores e professores (uma área a que os alunos tinham menor circulação), no qual as paredes eram enfeitadas com incontáveis reproduções de quadros de artistas nacionais e internacionais – algo que interpretei como sendo um “capricho narcísico” da direção.

Deixo, então, uma crítica: essa estética de escola privada priva (com o perdão do trocadilho) o alunado do contato com expressões artísticas e conteúdos informativos, além da possibilidade de eles mesmos se expressarem por meio dos murais. Pode ser que, apesar da imagem de escola particular que é passada, os diretores vejam seus alunos como “de escolas públicas”, suscetíveis (isto é um estereótipo que pertence à minha memória discursiva) de praticarem ações de vandalismo.

Por fim, acrescento outra crítica: ao se referir à aparência e ao desempenho de escola privada dessa escola estadual (“a [escola] XXX tem um aspecto de escola privada” e “Sua nota a coloca à frente de muitas escolas particulares”), o veículo de comunicação reitera, na enunciação, uma voz que diz que todas as escolas particulares possuem essas características, sendo, portanto, as “melhores”. Estamos, pois, diante de uma pressuposição. Segundo Ducrot (apud BRANDÃO, 1994), a pressuposição é um caso de dupla enunciação, porque marca a relação do discurso com a exterioridade, isto é, com as produções discursivas anteriores; Fairclough (1992) aponta que as pressuposições são eficientes na manipulação das pessoas – neste caso, os leitores do artigo jornalístico – pois são freqüentemente difíceis de serem contestadas. No texto em questão, pode-se pensar que não seria provável o leitor contestar a “voz de verdade” do jornal e contrariar a idéia de que o êxito de tal colégio se deveu à semelhança às escolas particulares, porque, apoiado em sua memória sócio-histórica, ele as vê como representantes de um sucesso educacional no Brasil e, relacionado ao assunto do artigo, das notas mais altas no ENEM.

Ademais, pode-se dizer que o discurso do jornal também despreza a situação das demais escolas públicas, destacando apenas “a melhor” e esquivando-se, assim, de tratar dos problemas que lhes causam, entre outras “feridas”, uma baixa nota no ENEM, e de tentar reverter a imagem, já arraigada no interdiscurso, que possuem de baixa qualidade de ensino.

 

“O que queremos é disciplina”

O mesmo jornal citado no tópico anterior publicou uma entrevista com a diretora da escola na qual lhe pedia uma explicação para o excelente desempenho da instituição no ENEM; ao que ela respondeu:

O que ajuda muito aqui é a disciplina. Tem horário para entrar. O aluno deve trazer o material certo para cada aula. Se não o faz, a gente chama o pai imediatamente. É um trato ‘tête-à-tête'. Os alunos têm ‘provões' todo semestre.
Tem aluno que vem de escola particular e fala: ‘Pô, escola do Estado desse jeito? Só tirei nota vermelha'. Aqui, são de 42 a 45 alunos por sala. Não dá tempo para brincadeira. Os nossos alunos mais rebeldes chamam a gente de nazista. Mas o que queremos é disciplina.

Nesse trecho, o enunciado da diretora tem relação dialógica com o discurso, a “voz”, de Hannah Arendt a respeito do significado de autoridade ; conforme aponta Dufour (2005:137), “para ela, a autoridade é não compatível com a persuasão (que pressupõe a igualdade) e exclui categoricamente todo uso de meios de coerção (característicos do totalitarismo)”, assim, conclui o autor, a autoridade é “a responsabilidade geracional de introduzir no mundo os recém-vindos”. Arendt (2005:129), no texto “Que é Autoridade?”, apresenta que “o que manda e o que obedece (...) possuem em comum (...) a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado”.

Na fala da diretora, podemos notar a presença da ordem hierárquica no ambiente escolar, contrária à idéia de igualdade ligada à persuasão, em frases como “Se não o faz, a gente chama o pai imediatamente. É um trato ‘tête-à-tête'.”, nas quais observamos o papel daqueles que estão no topo da pirâmide da autoridade (uma imagem usada por Arendt) e que, portanto, ocupam a sede do poder e são reconhecidos por isso. O “trato ‘tête-à-tête'” se assemelha ao conceito de “contrato pedagógico” de que trata Aquino (1998:193), pois, segundo o autor, esse é “um conjunto de regras funcionais que precisa ser conhecido e respeitado para que a ação possa se concretizar a contento” e “os próprios alunos têm uma clareza (...) quanto a essas balizas contratuais do encontro pedagógico”, no que concerne às funções específicas de alunos, professores e diretores.

Por outro lado, é interessante atentar, no trecho da entrevista, para o uso da primeira pessoa do plural (a gente), que ameniza a postura da diretora diante daqueles que ocupam posições consecutivas à sua, como os coordenadores e os docentes (ou seja, ela não quer ter uma imagem de déspota), e valoriza o caráter coletivo da gerência escolar. No entanto, ao dizer que, se o aluno não cumprir seus deveres escolares, seu pai será chamado, a diretora contradiz o “trato ‘tête-à-tête'” da relação pedagógica porque, em vez de cumprir seu papel e resolver a questão problemática nos limites da escola, recorre a outra relação de poder alicerçada pela autoridade: o poder dos pais sobre os filhos na família.

Além disso, podemos identificar outro discurso ecoando nessa passagem: a disciplina a que a diretora se refere é a “disciplina Kantiana”, aquela que “se limita a despojar o homem de sua selvageria; (...). A selvageria é a independência com relação a todas as leis. A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a coerção das leis” (KANT apud DUFOUR, 2005:141). A partir dessa visão, entendemos a introjeção nos alunos de regras e limites e a exigência de seu cumprimento (que são enfatizados como sendo fatores para o êxito do colégio) – atitudes que se resumem na expressão utilizada pela enunciadora: “Não dá tempo para brincadeira”. Entendemos também a referência que “os alunos mais rebeldes” (isto é, os menos disciplinados) fazem aos “nazistas”, uma vez que vêem tais atos de obediência como meios de coerção e, assim, estabelecem uma relação interdiscursiva com o autoritarismo do regime nazista.

Em minha experiência no cotidiano do colégio, pude perceber um compromisso geracional nos responsáveis pela escola que, contrapondo-se às idéias pós-modernas do “aceitar tudo”, do “tudo pode”, e do “imperativo do gozo” na juventude (KEHL, 2004), instituíram esses jovens como alunos (DUFOUR, 2005). Segundo consta do regulamento da escola e conforme observei diariamente, a assiduidade e a pontualidade controladas e a obrigatoriedade do uso do uniforme contribuíam para a construção de um ethos de rigidez e disciplina na instituição.

Contudo, reitero Bakhtin (1997:148) e a noção sobre “o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo” para tecer considerações acerca da presença da diretora no colégio. Apesar de ela receber os louros pelo desempenho dos alunos no ENEM (como vimos nas matérias jornalísticas), pude observar que, em algumas situações, não era ela quem estabelecia a disciplina, mas sim o vice-diretor. Presenciei diversas situações de advertências a alunos e comunicados a professores (chamadas às reuniões, divulgação de informações do Governo do Estado, etc.) nas quais foi ele quem assumiu a responsabilidade.

Talvez aqui pudéssemos recuperar a discussão sobre o uso do termo “a gente” na fala da diretora, interpretando-o como um indicativo de que há uma gestão democrática na instituição e, portanto, a descentralização dos processos de decisão. Porém, o exame de alguns de meus encontros com ela indica (pelo menos a meu ver) uma outra interpretação; vejamos os casos: na minha primeira visita ao colégio, quando entreguei a carta de apresentação do estágio, ela a assinou rapidamente e pouco conversou comigo, porque estava, a pedido de sua filha, tomando conta de sua neta bebê; no outro extremo temporal, quando, ao término de minhas atividades na escola, assinou minha ficha de estágio, ela tomava um cafezinho na sala da Secretaria e também me dispensou pouca atenção. Noto, pois, que o dado empírico provou, nessas situações, a transformação das palavras “da diretora” em chavões ocos[6], uma vez que ela – como representante do topo da hierarquia pedagógica – não demonstrou obedecer plenamente à “disciplina” tão enfatizada na entrevista ao jornal. Houve, portanto, fratura entre o enunciado e seu contexto narrativo (BAKHTIN, 1997).

O último ponto a que gostaria de chamar atenção nesse trecho da entrevista se refere à passagem: “Os alunos têm ‘provões' todo semestre. Tem aluno que vem de escola particular e fala: ‘Pô, escola do Estado desse jeito? Só tirei nota vermelha'”. Aqui, a fala da diretora e, indiretamente, a fala relatada dos alunos realçam na nossa memória discursiva os enunciados que caracterizam a “escola do Estado” como uma instituição decadente e que não avalia o real desempenho do aluno (e.g., os chavões “ali ninguém repete, todo mundo passa”), a qual se opõe à imagem “idealizada” das escolas privadas (“as melhores”). Estamos, assim, diante de outros pressupostos (conteúdos implícitos) que são tomados como verdadeiros.

A construção de tal imagem do colégio em questão corrobora a idéia (enfatizada pela mídia, conforme vimos anteriormente) de que ele representa um caso excepcional de sucesso na educação pública brasileira.

 

“Precisamos saber esses níveis de linguagem”

Mudemos, agora, o movimento do percurso analítico, saindo da observação do fenômeno da citação de vozes nos discursos da mídia e da diretora, que tomam como contexto a escola em si, e passando ao seu exame nos discursos proferidos em sala de aula.

Neste tópico, farei uma exposição de como os preceitos da Sociolingüística (e.g., noção de variedades lingüísticas, distinção de estilos formal e informal, os três verbos-chave: “respeitar, valorizar e adequar”) foram apropriados pela “voz” da professora que acompanhei no estágio. Fazendo uma análise distanciada de minha experiência de regência, vejo que eu também, como recém-graduada do curso de Letras, incorporei esse discurso tão enfatizado no espaço acadêmico e o reproduzi em frente aos interlocutores das classes. Logo, nas duas situações, houve “a diluição da palavra citada” (BAKHTIN, 1997) no contexto de transmissão. Vejamos, a seguir, como isso aconteceu.

Para começar, apresento duas vozes da Sociolingüística em Língua Portuguesa:

Aprender uma língua é aprender a dizer a mesma coisa de muitas formas. Não se deveria imaginar que existe só uma forma de falar (...). Isto é, a língua nos dá sempre várias alternativas, e saber uma língua ativamente e “utilizá-la” como sujeito é em boa parte saber dizer uma coisa de muitas maneiras – inclusive, saber as pequenas diferenças de sentido e de condições de uso que essas várias maneiras implicam e supõem. (POSSENTI, 1996:93, destaque meu)

Um mesmo indivíduo pode optar por diferentes formas lingüísticas de acordo com a variação das circunstâncias que cercam a interação verbal, incluindo o contexto social, propriamente dito, o assunto tratado, a identidade social do interlocutor etc.
(...) o estilo informal , em que é mínimo o grau de reflexão sobre as formas empregadas, e o estilo formal , em que é máximo o alto grau de reflexão que se projeta sobre as formas lingüísticas. (CAMACHO, 2003:53, itálico meu, destaque do autor)

Os preceitos-chave destacados nessas citações foram proferidos (num sentido polifônico) nas classes em que estive presente. Conforme mostram os três episódios ilustrativos abaixo, notamos, pela comparação das duas vozes (i.e., a da Sociolingüística e a da professora) que o enunciado produzido em sala de aula deixa transparecer o interdiscurso, ou seja, a relação do discurso com o que lhe é prévio:

(1) (...) a professora diz: Precisamos ter um português culto informal para entrevistas de emprego, para falar com o professor... inculto e informal falem entre vocês.

(2) Em seguida, a professora comenta: “O aluno tem de saber diferenciar linguagem com os amigos, em entrevista de emprego, em casa, numa palestra... Precisamos saber esses níveis de linguagem.”

Deslocando o foco da análise para as minhas aulas de regência – mais especificamente, a aula em que tratei dos regionalismos e também teci considerações sobre variação estilística – observamos que a voz da Sociolingüística foi apropriada às “minhas palavras” como professora, algo que demonstra meu perfil de graduanda em Letras/ USP, haja vista a ênfase dada a essa linha de pesquisa nas disciplinas que cursei. Essa experiência é interessante também para ilustrar a “disseminação do discurso de outrem” na sala de aula, isto é, como os conceitos de distinção entre os estilos formal e informal e de adequação à situação comunicativa foram deslocados à voz de um aluno. Eis o episódio:

(3) Assumi que, dependendo da situação, eu mesma falo “os menino” e não estou nem um pouco errada; expliquei a redundância do plural. Citei o caso de pessoas que ouvem uma conversa informal e dizem: “Fulano não fala direito... é burro”, e um aluno contestou: “Burro é ele por não saber diferenciar a situação!

A partir do último caso, podemos relacionar o atual enfoque em questões sociolingüísticas no ensino de língua portuguesa (que, no livro didático adotado na presente escola[7] aparece, por exemplo, no capítulo intitulado “Níveis de formalidade e variantes lingüísticas”) com as reflexões de Orlandi (2006:208-9) acerca dos tipos de repetição dos enunciados pelos estudantes e suas conseqüências. De acordo com a autora,

Esses discursos – esse saber – que ninguém pode deixar de ter, se freqüentou a escola, cria o que estamos chamando a “identidade lingüística escolar” (I.L.E.) que não compreende estritamente a língua, mas os discursos produzidos por e na língua que falamos na escola e que nos situam em um conjunto de saber (leia-se dizeres) que constituem a “escolaridade”.

Assim, posso concluir, com base nesse exemplo, que o “saber diferenciar a situação” passou a fazer parte da I.L.E. dos jovens desse colégio.

Voltando às “palavras da professora”, nas demais situações observadas, ao transmitir o discurso da Sociolingüística, ela profere, de fato, uma contra-voz que desloca o sentido da voz original . Vejamos o exemplo abaixo:

(4) Depois, a professora diz: “Dependendo de tempo, lugar, nível cultural, você tem uma forma de falar. O paulistano, independentemente do nível cultural, engole o ‘s', diferente do carioca, que jamais diria ‘as bala', ‘três pastel'. Essa é uma característica do paulistano. Por que nosso presidente foi tão criticado no início do governo? Porque não tem nível adequado à presidência. Hoje melhorou, mas mesmo assim é um escândalo às pessoas de maior nível cultural... diferente do povão. As pessoas são criticadas pelo modo de falar, vestir...”, e, aqui, dá o exemplo do aluno que veste uma bandana, distinguindo seu modo de vestir na situação informal da sala de aula e em uma entrevista de emprego.

Nessa fala, podemos notar, em “O paulistano, independentemente do nível cultural, engole o ‘s', diferente do carioca, que jamais diria ‘as bala', ‘três pastel'. Essa é uma característica do paulistano”, generalizações falaciosas e contraditórias da professora ao dizer que tanto “o paulistano” quanto “o carioca” formam categorias homogêneas de sujeitos (note o uso do artigo definido, da expressão “independentemente do nível cultural”, e do advérbio “jamais”, de forte conteúdo de verdade), cujos “falares exclusivos” são caracterizados por tal contraste na marcação do plural. Ao aluno, poderiam ficar as perguntas: E os tão referidos níveis de linguagem? E o “adequar-se à situação” de interação verbal, a eles não cabe? A questão do plural é, portanto, uma diferença regional? Logo, percebemos, no discurso da docente, uma contra-voz a negar os sentidos dos enunciados da Sociolingüística, que estão presentes em sua memória discursiva[8] e diluídos em sua enunciação.

Além disso, ao dizer “Porque [o nosso presidente] não tem nível adequado à presidência. Hoje melhorou, mas mesmo assim é um escândalo às pessoas de maior nível cultural... diferente do povão”, a professora faz a desvalorização dos sujeitos que só usam a variedade do presidente, o depreciativo “povão”, e, desse modo, valoriza de fato a variedade de prestígio e seus falantes, considerados “de maior nível intelectual”. Portanto, ela liga a hierarquia lingüística à escolarização (e, por que não, à hierarquia social) e deixa a impressão de que esses falantes não se enquadram às noções de adequação. E, então, questiono: onde estariam os sentidos dos três verbos-chave “respeitar, valorizar e adequar”? Temos, mais uma vez, um dado empírico provando a transformação de termos em chavões ocos .

Assim, nas duas considerações acima, comparando a “palavra original” à “palavra citada”, encontramos instâncias do que afirma Barzotto (2004:241): “muitas vozes estão presentes na fala dos professores, mas não na prática”, e, ainda, do que aponta Certeau (1996:253): uma “fratura entre o enunciado (objeto escrevível) e a enunciação (ato de dizer)”.

Em outro episódio, a professora se contradiz ao se referir à noção de “erro”. De acordo com Possenti (1996:80):

Diferenças lingüísticas não são erros, são apenas construções ou formas que divergem de um certo padrão. São erros aquelas construções que não se enquadram em qualquer das variedades de uma língua.
(...) erros de ortografia [são] (...) os que decorrem da falta de correspondência entre sons e letras, mesmo para uma variante padrão de uma mesma região, e os que decorrem da pronúncia variável em regiões ou grupos sociais diferentes.

Nas seguintes passagens, identificamos, em (5), a definição de erro ortográfico a partir de justificativa baseada na pronúncia da palavra – aceitável, portanto, pelo enunciado da vertente de estudo seguida –, e, em (6), o uso do termo “transgressão”, que foge à idéia da não condenação de uma forma sem se ter em conta sua circunstância de uso ou a variedade lingüística utilizada, isto é, toma-se por base o padrão de prestígio (sobretudo na escrita):

(5) A professora ainda diz que, no caso de mal/ mau, ocorre paronímia, a semelhança do som e da escrita.
(...)
A professora, então, comenta: “Com isso se encerra a primeira parte da revisãozinha. Vamos ver se vocês não cometem mais esses errinhos.”

(6) Depois, a professora comenta: “São pequenas dificuldades da Língua Portuguesa. Quando falam em lugar informal, tudo bem. Mas local público, é preciso ter atenção. Quando escrevemos, também não é possível cometer transgressões.”

Essa última fala da professora revela, de fato, reminiscências da “voz normativa” em seu trabalho na sala de aula, apesar de sua “filiação” ao discurso sociolingüístico, sendo que ambas constituem, paradoxalmente, sua identidade como docente de língua portuguesa.

Por fim, atentemos, no trecho abaixo, para mais uma paráfrase do discurso da Sociolingüística:

(7) A professora e os alunos discutem como mudanças na sociedade podem afetar a cultura, os costumes e os usos lingüísticos. A partir desse aspecto, ela comenta o uso de palavrões, como no caso do aluno que gritou “Filho da puta” no corredor do colégio, explicando que a pessoa precisa saber usá-los: “Não pode na escola, mas em casa ou com os amigos pode."

Nesse ponto, é possível fazer uma crítica às duas dimensões da palavra dita, i.e., “o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo” (BAKHTIN, 1997), no que concerne à noção de respeito interpessoal. Ao afirmar aos alunos que dizer um palavrão “Não pode na escola, mas em casa ou com os amigos pode”, a professora dá a impressão de que, além do ambiente da enunciação, não se deve ter em mente o interlocutor da situação de comunicação, ou seja, quanto a isso, “tanto faz”. Se pensarmos na concepção de adolescência como a fase do “tudo pode”, xingar o pai ou um amigo de “Filho da puta” seria completamente “adequado” também em termos sociolingüísticos. Fica, portanto, uma lacuna tanto na “responsabilidade geracional” (DUFOUR, 2005) da relação pedagógica, que pressupõe o “instituir os jovens como alunos”, quanto no papel da professora no ensino específico da língua.

 

Considerações finais

Concluo que, em minha experiência de estágio, estive diante de diversas instâncias daquilo a que me referi, dentro da perspectiva da Análise do Discurso, como citação de vozes.

Com relação ao discurso da mídia sobre o “aspecto de escola privada” do referido colégio público, foi possível perceber a relação do enunciado com a memória discursiva acerca do sistema educacional brasileiro e com a pressuposição de que a rede privada de ensino é “a melhor”. No estudo das palavras da diretora, identifiquei marcas polifônicas e a transformação da “voz citada” em um “chavão oco” no contexto de enunciação.

Durante o estágio, o “discurso de outrem” que mais apareceu (na forma de “voz” e “contra-voz”, reprodução e fratura) dentro da sala de aula foi o da Sociolingüística, sendo seguidas, desse modo, as propostas mais recentes de estudo e de ensino de Língua Portuguesa. Conforme aponta Barzotto (2004), esse é, atualmente, o “líder” cujas palavras passaram a ser reverenciadas em paráfrases por estudantes de Letras (i.e., pela academia), professores e alunos da escola regular, passando a constituir parte da identidade lingüística escolar dos últimos, nos termos de Orlandi (2006). Por fim, ao observar que a citação, em alguns momentos, escapou ao sentido do enunciado prévio, penso nas conseqüências negativas que isso pode trazer à aprendizagem da língua (como a incongruência de um apelo sociolingüístico seguido de um à gramática tradicional) e me pergunto: que discurso o aluno apreende? Qual concepção de gramática ele absorve?

 

Notas

[1] A escola foi fundada em 1963 e oferece apenas o curso de Ensino Médio nos períodos matutino, vespertino e noturno.

[2] Por motivos éticos, oculto os nomes do colégio e do jornal neste artigo.

[3] No total, coletei três matérias de um mesmo jornal de grande circulação em São Paulo (no início de abril/ 2008) e uma reportagem de um telejornal de uma das maiores emissoras de TV do Brasil (no final de abril/ 2008).

[4] “(...) o ethos é a imagem que o enunciador pretende atribuir a si pelo seu discurso, sendo construído pelo co-enunciador no processo discursivo” (GRECO, 2004:410).

[5] A escola possui um Centro de Línguas Estrangeiras que oferece os cursos de Espanhol, Francês, Alemão e Japonês e é aberto para seus alunos e para os alunos de escolas estaduais a partir da 6ª. série.

[6] Hannah Arendt (2005) se remete à “fratura” entre os modelos, os exemplos de relação autoritária, e sua desarticulação posterior como a transformação dos primeiros em “chavões ocos”.

[7] TUFANO, Douglas; SARMENTO, Leila L. (2006). Português: literatura, gramática, produção de texto (volume único) . São Paulo: Moderna.

[8] Vemos, assim, que “a memória discursiva (...) é um ‘espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos'” (PÊCHEUX, apud ORLANDI, 2006).

 

Referências bibliográficas

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Dalila Gonçalves Luiz 

 

Introdução

Suporte, propagandas publicitárias e processos de editoração: como abordar tais elementos no processo de ensino-aprendizagem de alunos do Ensino Fundamental II? Esse era o questionamento que permeava minhas reflexões ao longo das primeiras horas do estágio de observação, realizado para a disciplina Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa I (MELP I), na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – EA/FEUSP.

O desejo de trabalhar, durante a regência, com os conceitos citados – sobretudo com o gênero textual propaganda publicitária – acabou por gerar-me um intenso processo de reflexão, influenciado tanto pelas discussões e textos lidos durante o curso de MELP I, como pelas disciplinas cursadas ao longo de minha formação docente.

O resultado desse processo foi a elaboração – constantemente reelaborada – de um projeto de regência, realizado, na forma de Oficina de textos, em período paralelo ao horário de aula com os alunos da 8ª. série do Ensino Fundamental. O foco principal foi uma abordagem diacrônica das propagandas – século XIX, XX e XXI – que, além das inevitáveis alterações determinadas pelas necessidades de cada século, apresentam também mudanças relacionadas aos vários tipos de suporte em que circularam – jornal, TV, revista e Internet.

Apresento, neste artigo, essa experiência de ensino-aprendizagem detalhando a seqüência didática, as estratégias e as tarefas propostas aos alunos durante o desenvolvimento das atividades em sala de aula.

 

Oficina de textos: O percurso da linguagem publicitária

Anúncios do século XIX

O corpus relativo às propagandas do século XIX foi coletado da obra de Guedes & Berlinck (2000), constituída de anúncios publicados em jornais de diversos estados brasileiros, ao longo de todo o século XIX. Para compor a primeira aula de intervenção, privilegiei, na seleção, os anúncios publicados no estado de São Paulo, com preferência àqueles que circularam na capital.

É importante ressaltar que os textos da obra citada eram transcrições semidiplomáticas , em que se preservava o estado de língua, mas se desenvolviam as eventuais abreviaturas. Desse modo, busquei, na Internet, ao menos um anúncio fiel aos que circulavam no século XIX, em que linguagens verbal e não-verbal fossem reproduzidas sem alterações.

Resolvido esse problema, apresentei aos alunos um anúncio retirado da Internet e outros, extraídos da obra de Guedes & Berlinck (2000), que possuem como correspondente teórico-analítico o texto de Bandão (2004). Vejamos uma de suas reflexões:

(...) os anúncios têm um caráter documental, retratam, pelas informações que fazem circular, pelas ofertas de buscas e serviços, o universo dos objetos e das preocupações presentes num determinado grupo social de uma dada época, tornam-se matéria interessante para apreender aspectos da língua e do cotidiano dessa comunidade discursiva. (BRANDÃO, 2004:02)

É importante notar que os alunos, ao serem expostos aos anúncios, dispensaram atenção demasiada às diferenças ortográficas. A concomitância, na mesma propaganda, de palavras como machina e maquina gerou muitos questionamentos, os quais foram respondidos evidenciando-se que no período em questão não havia uma forma de escrita convencional, como se tem nos dias atuais. Foi necessário adverti-los de que aquele era o período em que começava a se difundir a circulação, no Brasil, de textos impressos e, por esse e outros motivos, as normas de escrita ainda eram instáveis.

O anúncio encontrado na Internet era o único em que a linguagem não-verbal aparecia, então, esse foi o meu único exemplo para explicar tal conceito. A imagem nele encontrada reproduzia uma faceta do produto, no caso, a máquina de costura, sem apresentar qualquer tipo de contextualização, situação ou cena. Assim, a figura era essencialmente referencial.

Passei, então, para a apresentação aos alunos das formas como o discurso é organizado, ou seja, como efetivamente se consolidam as estratégias de convencimento: “uma das formas de modalização do dizer é o emprego de adjetivos” (BRANDÃO, 2004:14).

Logo, valendo-nos das reflexões de Brandão (2004), observamos nos textos selecionados que os adjetivos caracterizavam, freqüentemente, o produto ; porém, essa modalização ocorria de forma tímida, sem grandes exageros ou apelações, por exemplo: arreio competente; Carruagem Inglesa; chitas finas e ordinárias; queijo de primeira qualidade.

Já com relação à interação, observa-se que o enunciador estabelece com o enunciatário um tratamento impessoal e sem qualquer proximidade, como em: quem quizer; quem tiver notícia; na mesma casa há a vender-se.

Nesses anúncios, como se pode notar, as estratégias de convencimento ainda são muito tímidas e seu objetivo é mais possibilitar o conhecimento e a divulgação de determinado produto ou serviço, do que, propriamente, promover o convencimento do público-consumidor. A pouca adjetivação, o baixo grau de proximidade com o público e a provável freqüência de imagens descontextualizadas evidenciam essa observação. Isso os caracteriza mais como anúncios, do que como propagandas.

Feitas, então, as leituras e interpretações, entreguei a cada aluno um anúncio diferente, e solicitei que fosse realizada a atualização lingüística. O objetivo da atividade era fazer com que os alunos tomassem contato com a estrutura lingüística do período, para que, quando fossem elaborar suas produções de textos, pudessem ter noções básicas do estado de língua com o qual estariam trabalhando. A atividade seguinte condensava a retomada das reflexões em torno dos anúncios do século XIX e fazia a transição para os estudos das propagandas circulantes no início do século XX. As questões tinham o propósito de gerar reflexões sobre os aspectos que caracterizam propagandas, sobretudo as do século XIX.

Por fim, passamos à produção de textos. Tanto na primeira produção como nas demais, foram consideradas as reflexões de Val (2003:129); vejamos:

Produzir um texto escrito implica escolher um determinado gênero discursivo e essa escolha se faz em função de para quê se escreve, para quem se escreve, em que esfera e sobre que suporte deverá circular o texto produzido.

Vale lembrar que a turma acompanhada cursava, então, a 8ª. série do Ensino Fundamental, curso que, ao ser concluído, tradicionalmente, em algumas escolas, é comemorado com um evento – festa e/ou viagem. No entanto, para que a comemoração seja concretizada, é necessário mobilização de pais, alunos e professores para a arrecadação de verba, o que, na turma acompanhada, era conseguida por meio da venda de doces realizada pelos alunos da 8ª. série para os demais alunos da instituição escolar.

Decidi, por isso, que as produções dos alunos que acompanhavam a oficina de texto seriam voltadas para a venda de doces. Dessa forma, os textos teriam, efetivamente, um público para os quais se destinariam, uma função clara e bem delimitada, que contemplava os interesses coletivos da turma, além de uma efetiva esfera de circulação: a própria escola. Portanto, tomei as formulações de Val (2003) com o intuito de colocar o aluno na real posição de autor de obras, que teriam efetiva função social.

Para atender a esses objetivos fundamentais, optei por solicitar produções de texto individuais: cada aluno produziria uma propaganda relativa a cada um dos séculos em foco. Assim, ao final da oficina, cada aluno teria, no mínimo, três produções de texto: a primeira relativa ao século XIX, a segunda, ao século XX e, por fim, a terceira, relativa ao século XXI. Segue abaixo a proposta de produção de textos.

 

PRODUÇÃO DE TEXTO I

Depois de estudarmos os anúncios circulantes nos jornais do século XIX, vamos produzir um anúncio que reproduza esse modelo. Os produtos serão os doces, que vocês, alunos do oitavo ano, estão vendendo.

1ª. ETAPA: Faça a primeira versão do anúncio em folha de caderno e traga para o professor, que fará a avaliação prévia do texto. Durante a execução da tarefa lembre-se:
- a ortografia do século XIX deve ser rigorosamente respeitada;
- o emprego de adjetivos é fundamental;
- as informações devem ser diretas e objetivas;
- embora o público-alvo seja aluno , os anúncios do século estudado não estabelecem proximidade com o leitor, sinalizando-o como um público geral, não específico.

2ª. ETAPA: Após apreciação do professor, fazer a versão digital do texto, alterando-o conforme as primeiras orientações do professor. Nesta etapa, deve-se considerar que:
- o espaço precisa ser bem aproveitado e as letras devem ser grandes, assim, mesmo as pessoas que estiverem longe do anúncio poderão enxergá-lo;
- O anuncio deve conter figura(s) apenas do produto, no caso, doces. Não é adequado figura que recupere cenas ou situações;
- Como a grafia utilizada na produção de textos é uma reprodução da vigente no século XIX, os leitores podem achar que a escrita contém ERROS ortográficos. Assim, para adverti-los, de forma polida, que se tratam de textos antigos, aconselha-se que a fonte utilizada na confecção da propaganda seja semelhante a de manuscritos;
- Para não desperdiçar tinta, envie ao email do professor a versão final do texto antes de ser impressa. Nesta etapa o professor será o revisor de seu texto, ele observará as configurações, o aproveitamento do espaço, as imagens selecionadas e eventuais dificuldades com relação à ortografia do período em foco.

Segue uma das produções de texto relativas ao século XIX:

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[Os alunnos d’oitavo anno vendem na semmana corrente guloseimas deliciosas. São todas a preço cômmodo. Os interessados procurar os alunnos d’esta anno no horário do intervallo no bloco A salla 42 e 43.]

 

Propagandas da primeira metade do século XX

O corpus relativo às propagandas do início e da metade do século XX foi retirado dos seguintes periódicos: Revista da Semana (1922), Revista Manequim (1962) e Revista Claudia (1961). Nesta abordagem, as reflexões de Maingueneau (2001), de Kleiman (2000) e de Marcuschi (2004) foram fundamentais.

Dentre as várias propagandas do século XX que apresentei aos alunos, darei destaque neste artigo à propaganda do sabão em pó Omo, publicada na revista Claudia. Seguindo as observações de Kleiman (2000) de que “o conhecimento lingüístico, o conhecimento textual, o conhecimento de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao momento da compreensão”, o texto era apresentado aos alunos fazendo-se vários questionamentos, entre eles:

– A quem, provavelmente, se dirige o texto? Por quê?
– Circulava em jornal como no século XIX?

Certamente, os alunos identificaram que o texto era dirigido às donas-de-casa do período e que a propaganda não circulou em jornais. Para eles, a propaganda circulava em alguma revista feminina, o que realmente estava certo.

Em seguida, conduzi a leitura comparando o texto do século XX com os textos do século XIX, ou seja, os alunos eram questionados sobre quais eram as principais diferenças no modo de convencimento e/ou estruturação do texto. Os primeiros aspectos levantados pelos alunos foram a quantidade de informação distribuída em uma página inteira da revista ; algumas palavras que recebiam destaques especiais e as imagens coloridas que retomam uma cena, uma situação. Tais observações são indícios de que os alunos dispensaram considerável atenção às mudanças de suporte e aos recursos técnicos de que o século XX dispunha para gerar o convencimento.

Minha primeira tarefa, efetivamente, após conduzir as prévias reflexões, foi apresentar aos alunos as peculiaridades do texto. Partiu-se, então, do emprego dos adjetivos, que agora caracterizavam, sobretudo, a marca (novo Omo) e o produto (aperfeiçoado detergente). Essa adjetivação é, na maioria das vezes, acompanhada pela conjunção aditiva ‘e', o que forma estruturas paralelísticas que elencam as diversas ‘qualidades' e ‘benefícios' do produto:

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Enunciados como testes aprovam também são freqüentes no período. Tomei a liberdade de estender as observações de Brandão (2004) sobre os anúncios dos séculos XIX, para os anúncios do século XX: se, com relação àqueles textos, a autora os considera como tendo um caráter documental e como passíveis de denunciar certos aspectos do cotidiano da comunidade discursiva, com estes, do século XX, podemos inferir que, provavelmente, no período em foco, a ciência possuía considerável importância, seus resultados validavam a qualidade do produto. Ao menos, é essa a importância que se depreende de afirmações como a apresentada.

Outro dado relevante diz respeito à quantidade de informações apresentadas na propaganda. Repetições e redundâncias estavam presentes na maior parte dos textos coletados, evidenciando outra característica comum e recorrente das propagandas do período. Possivelmente, os enunciados paralelísticos, as redundâncias e repetições de idéias evidenciam que esses textos são construídos a partir de alguns dos preceitos apresentados na Retórica clássica, tão em voga no período.

A propaganda Omo apresenta, além do que já foi dito, o uso abusivo de verbos no modo imperativo – Brilhe; modernize; lave. Aqui, sem apresentar aos alunos as nomenclaturas, recorri à teoria de preservação das faces, abordada por Maingueneau (2001), em que “conselhos não solicitados, ordens e perguntas indiscretas” ameaçam a face negativa do destinatário, caracterizada pelo autor como “território” (2001:38), individualidade de cada um. Porém, observamos que, embora a propaganda apresente ordens ao seu público, para amenizar, o enunciador seleciona palavras cuja carga semântica seduz, ao invés de ameaçar: qual dona de casa do período não gostaria de economizar tempo e dinheiro? Qual delas, como qualquer indivíduo, não gostaria de receber elogios e, portanto, o reconhecimento de seu trabalho? Eis a estratégia do enunciador para induzir a compra do produto sem, no entanto, transmitir agressividade e imposição em seus enunciados.

Por fim, vale notar, novamente em comparação aos textos do século XIX, que o grau de proximidade entre enunciador e enunciatário é bem elevado, uma vez que palavras como seu e dona de casa, bem como a própria imagem, colocam o enunciatário em posição de destaque, reforçando, obviamente, o brilho (resgatado, inclusive, por recurso gráfico), das donas-de-casa que consomem Omo. Dessa forma, a linguagem verbal e a não-verbal se interligam de forma que uma reforce e recupere a outra (nas montanhas de roupas, na brancura, entre outros).

Assim, conduzi as reflexões sobre as propagandas do século XX resgatando alguns dos aspectos já vistos pelos alunos nos textos do século XIX. Partindo dos conhecimentos textuais adquiridos nas leituras anteriores de propagandas, dos conhecimentos de mundo dos alunos e dos conceitos teóricos aqui abordados, procurei conduzir a compreensão das propagandas do século XX. Certamente, durante as aulas, os conceitos foram apresentados para os alunos sem que eu mencionasse as nomenclaturas ou as densas considerações teóricas feitas aqui.

Abaixo, encontra-se uma das produções de textos dos alunos:

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Propagandas do século XXI

Por conta da brevidade deste artigo, não vou me deter à análise das propagandas de revista abordadas durante a oficina. Quanto a elas, informo apenas que foram retiradas de revistas femininas publicadas entre abril e maio de 2008, tais como Marie Claire e Claudia.

Meu foco, neste item, será a análise de um anúncio retirado do site Mercado Livre. É importante notar que, devido a problemas com relação à contratação de funcionários, o uso da sala de informática da escola não foi possível; dessa forma, a atividade foi apresentada aos alunos pelo suporte viável naquele momento, o papel.

Nas primeiras reflexões em torno do gênero, como procedi nas aulas anteriores, solicitei que os alunos levantassem as principais diferenças entre as propagadas de Internet e as demais, estudadas anteriormente. Ser apresentada em computador foi a primeira resposta, que foi rebatida com uma questão:

Como se organiza a estrutura do texto encontrado na internet em comparação aos de revistas?

Muitas imagens, links, maior facilidade para pesquisar os benefícios e qualidades do produto, foram os principais itens levantados, ao que achei oportuno discutir uma das reflexões que me motivaram a criar o curso: em qualquer propaganda, seja de revista, TV, ou Internet, a imagem do produto não passa de uma construção, cujo objetivo único é convencer o público a consumir determinado produto; dessa forma, nem sempre a informação veiculada condiz com o que de fato o produto é ou faz.

No site citado, além da propaganda, mais próxima, como veremos, de um anúncio, verificamos a possibilidade de realizar transações comerciais de compra e venda dos produtos. Assim, em espaço semelhante às conhecidas salas de bate-papo, há o contato entre vendedor e interessado, porém, ambos são identificados apenas por apelidos, sem quaisquer outras informações. Esse contato, certamente, é o momento em que ocorre maior grau de convencimento, tanto com relação à qualidade do produto, quanto à própria segurança das transações, pois é justamente nesse momento que se constroem imagens positivas do produto e, principalmente do vendedor. Vejamos a pertinente reflexão de Maingueneau (2001:37):

Esse é o tipo de fenômeno que, como desdobramento da retórica tradicional, podemos chamar ethos : por meio da enunciação, revela-se a personalidade do enunciador. Roland Barthes salientou a característica essencial desse ethos: ‘São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para causar boa impressão (...) o orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: eu sou isso, eu não sou aquilo'.

Nas transações via Internet, causar boa impressão é uma estratégia de convencimento muito freqüente, já que o vendedor deseja rebater as diversas e freqüentes notícias que apresentam os altos índices de estelionato causados por esse tipo de negociação. Assim, o enunciador busca construir uma imagem de si e do produto, com o intuito de convencer o enunciatário a confiar nele e adquirir o produto. Obviamente, a imagem transmitida deve, para um público mais avisado – o que se espera dos alunos que acompanharam a oficina –, ser recebida de forma duvidosa e relativizada, já que, além de conhecer as principais estratégias de convencimento, as estatísticas de negociações mal-sucedidas são a prova concreta de que há, de fato, a construção de uma imagem positiva, que nem sempre condiz com a realidade.

Outra reflexão que também foi apresentada aos alunos diz respeito ao modo como a leitura é desenvolvida na Internet em comparação às revistas. À sua maneira, os alunos transmitiram a idéia de que a leitura se dá por links , que ligam uma página à outra, um texto ao outro. Segundo Chartier (2002:23), “A leitura diante da tela é geralmente descontínua, e busca, a partir de palavras-chave ou rubricas temáticas, o fragmento textual do qual quer apoderar-se”.

Efetivamente, como bem mostra esse autor, a leitura nesse tipo de suporte, longe de ser linear como em revistas e jornais, é descontínua: um link qualquer leva a um texto, que, por sua vez, apresenta outros tantos links, que podem levar a outros tantos textos, e o processo se repete quantas vezes o leitor-internauta o desencadear. Não há dúvidas de que os links em si procuram meios de se destacarem entre os demais, e, portanto, promoverem a si mesmos: palavras (links) que brilham, piscam, coloridos, são, algumas vezes, associados a uma breve seqüência de imagens. Tudo isso com intuito exclusivo de despertar o interesse e a curiosidade do leitor-internauta.

No site em foco – Mercado Livre – não há, a princípio, formas elaboradas de convencer o cliente: aos leitores são apresentadas as principais características dos produtos, tais como o preço, algumas funções e as formas de pagamento. Como podemos observar, não há uma preocupação ou um trabalho rigoroso e elaborado com a linguagem, sendo que a apresentação do produto é privilegiada em detrimento ao convencimento. Dessa forma, embora em suportes diferentes, e, portanto, com recursos técnicos diferentes, as características apresentadas tornam esses textos mais próximos de anúncios de jornal, como os vistos no século XIX, por exemplo, do que propriamente de propagandas.

Após as reflexões acima, foi solicitada aos alunos uma produção de texto (reelaboração), cujo objetivo era transformar o anúncio da internet em uma propaganda de revista do século XXI.

 

Conclusão

Acredito que a abordagem aqui apresentada foi rica – para a estagiária, os alunos e a própria professora acompanhada durante as 40 horas de observação – porém, alguns aspectos merecem ressalva.

Embora seja importante que o aluno tenha exaustivo contato com gêneros textuais – quanto maior sua exposição, melhor será a internalização da estrutura e da organização de determinado gênero – notei que os alunos, ao longo das aulas, acabavam desgastados por trabalharem, durante um período relativamente longo, o mesmo tema – ou o mesmo gênero textual. Em geral, esse desgaste só era superado valendo-se de uma das argumentações a seguir: a compreensão dos conteúdos e o contato com as propagandas seriam importantes para que a produção de texto fosse bem feita para, assim, garantir a arrecadação financeira necessária. Além disso, lembrávamos-lhes, eu e a professora titular, a questão da autoria:

Vocês já tiveram, alguma vez, os textos de vocês circulando pela escola? Vocês já tiveram a experiência de serem autores que escrevem para um público real? (fala do professor)

A resposta era negativa, o que gerava a adesão dos alunos às atividades propostas durante a oficina. Esta também requer uma reflexão: a oficina, paralela à realidade cotidiana de sala de aula, pode acabar desgastando o aluno por abordar apenas um único tema ou recorte. Provavelmente, se as atividades desenvolvidas durante a intervenção fossem aplicadas em sala de aula, com maior freqüência de encontros entre professores e alunos, e com a possibilidade de intercalar outros assuntos ou outras abordagens – sintática, por exemplo: vide o uso da conjunção aditiva, apresentado no item 2.2 – o projeto proposto seria, talvez, menos cansativo para os alunos.

Por fim, observei, durante a intervenção, que as aulas expositivas e a discussões de textos, mediadas pelo professor, também são uma estratégia que não retém, totalmente ou durante muito tempo, a atenção dos alunos acompanhados. Se o professor ficar por muito tempo discutindo a estrutura e a interpretação do texto, os alunos se dispersam. Pensei, enquanto docente em formação, que o tema, a abordagem por si só, seria suficiente para reter a atenção e garantir a total adesão do aluno às explanações feitas durante a oficina, o que não ocorreu.

A condição de docente em formação fez-me refletir sobre o que seria necessário, em minha prática, para garantir maior adesão desse público: uma abordagem mais lúdica seria pertinente?

Pelo fato de a atividade de estágio representar apenas um recorte – talvez, uma metonímia – do cotidiano escolar, da escola, da prática do professor, do processo de ensino-aprendizagem dos alunos, essas são as considerações que me coube fazer, ciente de que elas não são válidas para outros contextos escolares, já que cada um carrega uma singularidade delineada, devida, principalmente, ao público a que atendem.

 

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Aline Fonseca Martins 

 

Introdução

Estudos sobre ensino e aprendizagem de língua materna (NEVES, 1990; SEMEGHINI-SIQUEIRA, 1998) mostram que a gramática normativa é um dos pontos mais abordados hoje nas salas de aula, sendo que esse conteúdo é geralmente transmitido ao aluno por meio de uma terminologia técnica que, na maior parte das vezes, não faz sentido a ele.

Por esse e outros motivos tal enfoque dado à gramática durante o Ensino Fundamental não vem gerando resultados satisfatórios, pois grande parte dos alunos termina esse ciclo sem possuir as habilidades básicas que deles se espera, a saber, “leitura fluente e produção escrita coerente e coesa” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 1998:01).

Em vista disso, faz-se necessário buscar alternativas que proporcionem o aumento do grau/nível de letramento dos alunos do Ensino Fundamental, tendo em mente que o estudo da gramática normativa com sua terminologia não influencia diretamente no propósito de instrumentalizar os alunos a lerem com maior fluência e melhorarem sua produção textual.

Uma alternativa que poderia melhorar o ensino de língua materna na escola mediante uma mudança das práticas educativas seria a utilização de atividades epilingüísticas, que são atividades de reflexão sobre o uso da língua, sem o uso da metalinguagem. Assim, ao aplicar esse tipo de atividade, o professor levará seus alunos a refletirem sobre a linguagem sem a utilização de “termos técnicos” que, além de não serem significativos ao aluno, não o auxiliam na compreensão da gramática, pois “aquele que aprendeu a refletir sobre a linguagem é capaz de compreender uma gramática (...); aquele que nunca refletiu sobre a linguagem pode decorar uma gramática, mas jamais compreenderá seu sentido” (GERALDI, 2002:64). Na prática das atividades epilingüísticas, “os enunciados são confrontados e transformados: ‘brinca-se com a linguagem'. É um trabalho consciente. Trata-se de uma atividade que toma a própria linguagem como objeto de operações transformadoras” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2006:06 – grifo da autora).

Assim, exercícios de reescrita/reelaboração/revisão de textos são exercícios epilingüísticos por implicarem uma reflexão sobre a linguagem usada pelos alunos. Isso não quer dizer que é suficiente que o professor assinale as inadequações presentes nos textos produzidos por eles e os peça que os reescrevam, sem direcionar o foco para pontos específicos que precisam ser trabalhados, pois revisar e reescrever um texto implica reestruturá-lo, não simplesmente “passá-lo a limpo” (BEZERRA; SEMEGHINI-SIQUEIRA, s/d). Com isso, o conhecimento da gramática, que também pode ser transmitido por meio de atividades epilingüísticas, como será exemplificado adiante, só será válido se o aluno o usar para rever, reescrever, reinventar suas produções escritas e, dessa forma, adquirir uma flexibilidade lingüística que permita a ele adequar seus textos orais e escritos às diferentes situações por ele vividas, conhecendo os valores socialmente atribuídos às diferentes variedades lingüísticas.

Em vista disso, foram desenvolvidas para o estágio da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I (MELP I), lecionada pela Profª Drª Idméa Semeghini-Siqueira, atividades epilingüísticas que abordassem os aspectos da gramática normativa cujo ensino fora solicitado pela professora responsável pelas salas nas quais o estágio foi realizado, a saber, 6ª. e 7ª. séries do Ensino Fundamental da rede pública do estado de São Paulo. 

 

Atividades epilingüísticas

Uma das atividades aplicadas foi apresentada aos alunos de MELP I pela professora Idméa Semeghini-Siqueira. Essa atividade consiste num texto com lacunas, sendo que cada lacuna deve ser completada com um verbo, que pode ser encontrado num quadro com verbos no infinitivo. O foco do exercício é abordar a conjugação de verbos. É importante salientar que, para sua realização, não foi feita nenhuma explicação sobre conjugação verbal. Apenas foi solicitado aos alunos que preenchessem o texto com as palavras do quadro. A atividade foi aplicada a duas turmas de 7ª. série do Ensino Fundamental, sendo que ambas as turmas contavam com um grande número de alunos que normalmente não participavam das aulas. Durante a aplicação dessa atividade epilingüística, porém, a grande maioria dos alunos participou ativamente da aula: todos os alunos de uma turma realizaram o exercício e apenas um aluno da outra turma se recusou a fazê-lo. Os estudantes atuaram de tal modo porque encararam o exercício como um desafio, diferente das atividades a que estavam habituados.

Além dos ótimos resultados obtidos no que tange à participação dos alunos durante a aula, um resultado muito bom também pôde ser notado em relação à consciência da língua da materna apresentada por eles, o que pôde ser constatado por meio das poucas inadequações que cometeram. Isso prova que os estudantes não precisam de explicações exaustivas para criarem uma consciência da língua da qual são falantes.

Por meio dessas observações, vemos que esse tipo de atividade pode ser uma forma muito mais produtiva de ensinar conjugação verbal, pois o velho método de fazer listas para que eles conjuguem os verbos em diferentes modos e tempos se mostra pouco eficaz, uma vez que a tarefa, além de ser pouco significativa aos estudantes por apresentar uma série de nomenclaturas que nada tem que ver com sua realidade, não oferece a eles um desafio e nem tampouco um fator motivador.

A atividade descrita é apenas um exemplo de como se pode abordar a conjugação verbal na sala de aula. Há muitas outras formas de apresentar o tema de modo estimulante aos alunos. Como exemplo, pode-se citar o jogo “dominó do verbo”. Essa atividade pode ser aplicada da seguinte forma: o professor pode selecionar formas verbais pouco utilizadas pelos alunos, como o imperfeito do subjuntivo e o futuro do pretérito. Depois disso, pode-se confeccionar dominós de cartolina, sendo que os alunos devem ligar partes que façam sentido, como, por exemplo, “se eu” poderia ser ligado com “tivesse”, mas não com “teria”, porque isso não faria sentido algum.

Essa atividade, que deve ser feita sempre em grupos, gera bons resultados porque é vista pelos alunos como uma brincadeira, porém muito produtiva. Além disso, ela precisa de pouca intervenção do professor, pois os próprios estudantes acabam por corrigir as inadequações cometidas pelos colegas.

Outro ponto da gramática normativa que foi apresentado aos alunos de uma forma mais lúdica foi a paragrafação. A atividade elaborada consistia num texto curto cortado em tiras, sendo que cada tira correspondia a um parágrafo do texto. Essas tiras foram dadas aos estudantes embaralhadas e colocadas em envelopes, e foi solicitado a eles que montassem o texto como se ele fosse um quebra-cabeça. Essa atividade, aplicada em duas salas de 6ª. série, apresentou resultados tão satisfatórios, que a professora responsável pelas salas solicitou sua aplicação a duas turmas da 7ª. série.

Nas aulas em que tal atividade foi trabalhada não se falou sobre paragrafação em momento algum, pois se esperava que os alunos intuíssem o conceito observando cada fragmento do texto cortado. Além da paragrafação, foi trabalhado também o tópico “interpretação de texto”, pois eles deveriam dar sentido ao texto para montá-lo na ordem correta.

Através de atividades epilingüísticas, como as já citadas, também é possível abordar outros temas como “conjunções”, por exemplo. Uma sugestão de atividade é apresentar aos alunos frases do tipo: “o menino queria subir de elevador”, “ele estudou pouco”, “ela o amava” etc. e, em seguida, apresentar a eles um quadro com complementos para essas frases, como “mas este estava quebrado”, “logo foi mal na prova”, “embora ele já fosse casado”. A partir disso, deve-se pedir aos alunos que completem as orações com um elemento do quadro, ligando-as por meio do seu sentido. Fazendo isso, eles terão a oportunidade de ver exemplos de como são empregadas as conjunções que aparecem no exercício. Vendo as formas de utilizá-las por meio dessa atividade, os alunos estarão aptos a criar frases usando as conjunções apresentadas. Para esse fim, propõe-se que seja solicitada a eles a criação de complementos para frases como “ele seria muito rico, se... ”, “ o garoto sempre sonhou em ser astronauta, embora... ”, “ ela não tinha o endereço, logo...”. Com isso, eles poderiam praticar as conjunções aprendidas. Mediante essas atividades lúdicas, os estudantes teriam a oportunidade de aprender como utilizar conjunções, sem que em nenhum momento se fizesse necessária uma explicação formal sobre o assunto. Assim, em vez de decorarem listas e mais listas sobre conjunções e suas classificações, os alunos teriam a oportunidade de ver na prática como elas funcionam.

Existem possibilidades de dar continuidade ao exercício citado acima. Uma delas pode ser desenvolvida da seguinte forma: os alunos escolhem uma ou duas frases criadas por eles mesmos e as escrevem na lousa. Em seguida, a classe é chamada a fazer uma votação das frases mais criativas. Por meio desse pretexto, os alunos terão acesso a muitos exemplos das conjunções ensinadas, que, além de otimizar o conhecimento adquirido, tornam-se significativos por terem sido criados por eles, não se tratando de exemplos retirados do livro didático ou criados pelo professor.

Outra alternativa por meio da qual se torna possível expor as frases criadas pelos alunos para que estas sirvam de exemplo é fazer um bingo com a classe. O jogo pode partir do mesmo princípio de os alunos escreverem na lousa as frases criadas por eles, sendo que, em seguida, devem selecionar algumas das frases escritas pelos colegas e escrevê-las em uma cartela em branco, que pode ter sido confeccionada por eles mesmos ou pelo professor. As frases escritas na lousa devem ser copiadas em pedaços de papel, que depois serão dobrados e sorteados. O professor pode pedir a colaboração de alguns alunos da classe para a tarefa de copiar as frases nos pedaços de papel e dobrá-los. Depois que as cartelas estiverem prontas e os pedaços de papel dobrados, o professor deverá sortear frases, e os alunos que as tiverem em suas cartelas deverão marcá-las. Aquele que tiver todas as suas frases marcadas primeiro ganhará o jogo. O caráter lúdico da atividade deixará os estudantes envolvidos com ela, de forma que possam aprender sem se darem conta disso.

 

Considerações finais

A partir desses poucos exemplos e também de estudos feitos na área (BEZERRA, 2004; FRANCHI, 1991) é possível comprovar a eficácia das atividades epilingüísticas, pois elas se configuram como uma maneira simples e bastante eficaz de ensinar língua portuguesa aos alunos, levando-os a uma reflexão sobre sua própria língua e levando em consideração que eles, assim como os próprios professores, têm uma intuição para a língua da qual são falantes.

Dessa forma, fica evidente que as atividades epilingüísticas são uma excelente alternativa às aulas de Língua Portuguesa puramente expositivas e baseadas no livro didático, livros estes que, muitas vezes, possuem lições que foram “elaboradas para ‘alunos ideais', por autores ou equipes fora do espaço escolar” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2006: 13 – grifo da autora). Assim, para serem totalmente eficazes, as atividades epilingüísticas devem ser elaboradas para “alunos reais”, por meio do conhecimento do seu grau/nível de letramento e da sua capacidade de usarem a língua-mãe ao ler e escrever, sendo que a forma mais indicada de tomar conhecimento desses fatores é a aplicação de avaliações diagnósticas e formativas, que deverão ser assumidas como “um instrumento de compreensão do estágio de aprendizagem em que se encontra o aluno, tendo em vista tomar decisões suficientes e satisfatórias para que se possa avançar no processo de aprendizagem” (LUCKESI, 1988:81). De tal modo, o ponto de partida para a elaboração e a aplicação das atividades será aquilo que o aluno já sabe e aquilo que ele ainda precisa desenvolver.

A produtividade dos alunos será notavelmente maior se as atividades epilingüísticas, além de partirem sempre das necessidades do “aluno real”, apresentarem um caráter desafiador e/ ou lúdico, pois “crianças e jovens (...) são ávidos pelo saber, pelo convite à descoberta, pela ultrapassagem do óbvio, desde que sejam convocados e instigados para tanto” (AQUINO, 1996:52). Cativando a atenção dos alunos com exercícios desafiadores e motivando-os a construir o conhecimento por meio da reflexão, os professores serão capazes não só de transmitir o conteúdo previsto, mas também de reduzir consideravelmente os níveis de indisciplina na sala de aula, uma vez que esta muitas vezes se dá pelo fato de os alunos considerarem as atividades propostas desinteressantes e enfadonhas, o que não os motiva a participarem delas e os leva, dessa forma, a utilizarem sua imaginação e inquietude em outros tipos de tarefas que não dizem respeito à aula, como brigas e brincadeiras inapropriadas, por exemplo.

Dessa forma, mediante as considerações feitas sobre atividades epilingüísticas e também por meio dos exemplos desse tipo de atividade anteriormente descritos, conclui-se que este trabalho não propõe simplesmente o ensino de gramática normativa aos alunos de forma lúdica e não tradicional. A proposta aqui feita não trata somente de uma nova metodologia, mas sim de um convite à mudança total das práticas de ensino tradicionalmente utilizadas nas aulas de português no Ensino Fundamental. As práticas cuja tradição determina o ensino da gramática normativa como foco principal, muitas vezes deixando de lado o desenvolvimento das habilidades de ler e escrever, imprescindíveis à formação do aluno, deverão ser abandonadas em detrimento de práticas de ensino que focalizem a reflexão sobre a língua da qual os alunos são falantes. A gramática não será ensinada como um fim que se esgota em si mesmo. Ela será ensinada para que os alunos possam operacionalizar os conhecimentos lingüísticos, para que, por meio dessa operacionalização, possam se tornar, de fato, leitores e escritores.

 

Referências bibliográficas

AQUINO, Julio Groppa (1996). A desordem na relação professor-aluno: indisciplina, moralidade e conhecimento. In: ____. (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. 11. ed. São Paulo: Summus.

BEZERRA, Gema Galgani R. (2004). Contribuição às reflexões sobre práticas de ensino de gramática e formação de professores de 1ª a 4ª séries: Atividades epilingüísticas em foco. Tese de Mestrado: FEUSP/SP.

Disponível em <http://www.alb.com.br/anais16/

FRANCHI, Carlos (1991). Indicações para uma renovação dos estudos gramaticais. In: Criatividade e Gramática. São Paulo: SEE/CENP.

LUCKESI, Cipriano Carlos (1988). Avaliação do Aluno: a favor ou contra a democratização do ensino? In: Prática docente e avaliação. Rio de Janeiro, ABT.

NEVES, Maria Helena de M. (1990). Gramática na escola. São Paulo: Contexto.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (1998). O peso das práticas educativas de gramática, redação e leitura para alunos do primeiro grau em Português: um estudo exploratório a partir da década de 50. Anais. II Congresso Luso-brasileiro de História da Educação. São Paulo: USP.

________. (2006). O poder do passado nas práticas escolares de oralidade, leitura e escrita contemporâneas: reconstituição de alicerces para otimizar o grau de letramento/ literacia de jovens brasileiros. Anais/ Actas. XIV Colóquio da AFIRSE “Para um balanço da investigação da educação de 1960 a 2005”. Lisboa: Universidade de Lisboa/FPCE.

    

Segunda, 01 Dezembro 2008 00:00

Número 3 - Apresentação

 

O presente número da revista traz novos artigos resultantes das experiências de estágio para as disciplinas Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I e II, da Faculdade de Educação da USP.

O objetivo da publicação é suscitar reflexões em torno do ensino da Língua Portuguesa e mostrar que a atividade de estágio, composto por horas de observação de aulas e horas de regência, é uma oportunidade que o graduando/ licenciando em Letras tem para fazer pesquisa científica nas instituições escolares, além de, obviamente, iniciar sua atuação docente.

Assim, os artigos que compõem esta edição abordam diferentes temáticas sobre o ensino e a aprendizagem da língua, desenvolvidas a partir da coleta de dados de linguagem no contexto de sala de aula dos ciclos Fundamental e Médio. Conforme é bastante explorado no artigo de Valdir Barzotto e Daniela Eufrásio, que encerra este volume, O relatório de estágio como manifestação do perfil profissional em Letras, o estagiário deve observar o cotidiano escolar para, em seu relatório, analisar os fatos encontrados de modo a mobilizar os conhecimentos adquiridos durante sua formação acadêmica, unindo, portanto, teoria à prática.

Longe de serem soluções para os problemas encontrados no ensino de Português e na educação pública brasileira, os textos aqui presentes ilustram aspectos relevantes para observação e possibilidades de intervenção nas aulas que tiveram resultados positivos em seus contextos de aplicação. Cumpre-se, desse modo, o propósito da revista de servir de veículo para divulgar as experiências de estágio e estimular a reflexão sobre o assunto.

Neste número também publicamos um artigo elaborado a partir da experiência do Projeto “Ler e Escrever – Toda Força ao Primeiro Ano do Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental I”, que também foi exposto, por meio de outros textos, na edição 2 da MELP.

Por fim, gostaríamos de agradecer aos autores pelo empenho e pela disposição em fazer parte deste volume e fazemos votos de que ele supra as necessidades do leitor que procura visualizar o cenário atual do ensino de Língua Portuguesa nas escolas públicas e de que forneça boas reflexões e propostas de aplicação da disciplina na sala de aula.

Comitê editorial

   

Sábado, 01 Dezembro 2007 00:00

Entre a lousa e a teoria

 

Diego Navarro de Barros 

 

Introdução

Este artigo “não-artigo” não apresenta soluções inovadoras para quaisquer dos vários problemas que dominam o sistema educacional de nosso país, tampouco consegue tecer uma crítica profunda sobre as raízes desses males. Pouco importa se o “manual” do bom pesquisador ensina que nunca devemos expor dificuldades próprias em nossos textos, pois é essencial para a compreensão desse documento que seu leitor tenha em mente que o mesmo foi produzido por um estudante de Letras que, em seu segundo ano de faculdade, pôde ter sua primeira experiência em uma sala de aula enquanto educador.

As análises e críticas aqui realizadas são, antes de tudo, um desabafo de todas as experiências pelas quais passei e, conforme demonstrarei mais à frente, falta-me um embasamento teórico bem firmado para conseguir fazer dos relatos aqui presentes algo mais que um diário de bordo. Isso não quer dizer, necessariamente, que todas as observações podem ser sumariamente descartadas, pois nada foi escrito somente para preencher papel, nem há uma vontade de atacar pessoas ou instituições; todo assunto abordado foi considerado, em algum momento do estágio, como ponto-chave para a melhoria do projeto. Enfim, essa “mea culpa” antecipada serve para, de início, lembrar que o artigo foi escrito por alguém ainda novo no caminho da pesquisa científica, o que não significa que não há pertinência naquilo que será trabalhado; quiçá essa inexperiência aja como novos olhos, livres de preconceitos e vícios, para assim poder abordar velhos aspectos sob uma nova ótica.

 

Algumas informações necessárias

A experiência em sala de aula começou no dia 25 de abril de 2007, na Escola Municipal de Primeiro e Segundo Graus Joaquim Bento Alves de Lima Neto, localizada no bairro do Grajaú, zona sul de São Paulo, região extremamente carente da cidade. A escola acolhe as seis primeiras séries do ciclo, o que corresponde a cerca de 210 crianças em fase de alfabetização. A sala do estagiário conta com uma turma de 37 alunos, todos com idade entre 6 e 7 anos. É importante saber que a instituição de ensino é provavelmente o único pólo cultural com que a maioria dessas crianças tem contato.

Falando sobre o aluno-pesquisador, sou bacharelando da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, cursando o segundo ano de Letras com habilitações em Português e Francês. Essas informações[1], aparentemente de cunho apenas técnico, são vitais para a compreensão deste trabalho, e é preciso que se tenha isso sempre em vista.

 

A burocracia (sempre ela)

Não cabe aqui enfocar os detalhes que atrasaram a entrada dos alunos-pesquisadores nas salas de aula, mas é sempre bom lembrar que, graças ao confuso esquema organizado, o projeto se atrasou por quase três meses, tempo significativo quando se trata de trabalho com alfabetização, e que, para resolver certos trâmites legais, foi preciso um esforço homérico da parte dos envolvidos. Por outro lado, em se tratando da escolha dos alunos pesquisadores, não parece ter existido uma preocupação tão grande quanto aos critérios de seleção, já que cada faculdade envolvida parece ter escolhido os estagiários por critério próprio; por exemplo, insiro, abaixo, o programa do curso de Letras do primeiro ano da FFLCH[2], do modo como estava formado quando entrei para o programa[3]:

Introdução aos Estudos Clássicos I e II

Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa I e II

Elementos de Lingüística I e II

Introdução aos Estudos Literários I e II

 

Excetuando-se alguns elementos da disciplina Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa e pouquíssimas coisas de Elementos de Lingüística, nada do curso preparava um estudante a alfabetizar alunos da primeira série. Sabendo disso, a prefeitura informou que os estagiários deveriam freqüentar cursos de formação na faculdade e junto à sua coordenadoria de ensino. Se não há reclamação a ser feita sobre o trabalho realizado pela Universidade de São Paulo, uma vez que os responsáveis pelo projeto não só se preocuparam em indicar uma bibliografia adequada, como também trouxeram diversas atividades de formação, por outro lado, as reuniões de formação realizadas pela coordenadoria foram escassas, não por culpa dos responsáveis, mas, novamente, por processos burocráticos que atrapalharam – mais uma vez, não entrarei nos pormenores, mas vale acentuar que a culpa foi tão somente da burocracia e do excesso de trabalho que cercava a coordenadoria.

Pois bem, o processo de aprendizagem teórica se deu junto com a prática na sala de aula. Conforme mostrarei adiante, essa experiência proporcionou um aprendizado interessante, mas seria um erro não apontar que se, por exemplo, houvesse uma formação prévia à entrada na sala de aula, algumas dificuldades jamais teriam existido; se certas dúvidas fossem respondidas antes do inicio do estágio (como em formações anteriores ao inicio das aulas), o começo deste teria sido bem menos traumático. Também faltou pensar que, para o estagiário fazer realmente parte do sistema escolar, é necessário que ele participe das atividades para além da sala de aula, como eventos culturais e reuniões de JEI. Esses casos foram raros e, na maioria das vezes, promovidos por acordos entre estagiário e escola; ora, uma vez que se cobra desse aluno-pesquisador uma participação efetiva, é mais do que evidente que ele precise agir com o conjunto da escola – posso arriscar dizer que, se uma hora semanal do estagiário fosse reservada para reuniões de JEI, seu entrosamento com o corpo docente seria muito maior.

Resumidamente, devido ao fato de a participação do aluno-pesquisador ser pensada de forma estritamente burocrática – um segundo professor que ganha menos e não tem vínculos com a prefeitura –, faltou uma reflexão e conseqüente formação do trabalho desse individuo dentro do projeto e dentro do colégio. Afinal, qual o real papel do aluno-pesquisador? Ajudar na formação da classe? Ajudar somente as crianças mais problemáticas? Relatar sua experiência através de relatórios mensais? Deve ele somente ajudar a professora ou pode, em determinados momentos, ministrar conteúdos?

Infelizmente, enquanto eram enfatizadas falas sobre como não deveríamos ficar em sala de aula sozinhos ou como não deveríamos fazer horas-extras, pouco sobrava de espaço e tempo para uma reflexão crítica sobre o papel de um segundo professor na sala de aula. Tendo em vista que essa experiência é nova, tal erro acaba se revelando imperdoável.

Todos os problemas mencionados acima parecem intimamente relacionados ao fato de o Projeto Ler e Escrever – Toda Força ao Primeiro Ano do Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental I, ainda ser uma iniciativa nova. Isso não exclui que tais dificuldades devem ser superadas, assim como fica claro que o papel do aluno-pesquisador deve ser mais bem pensado, criticado e aperfeiçoado, afinal, é natural que ainda não haja uma caracterização clara de como esse segundo professor deve agir. Esse não é o problema; problemático é o fato de não haver um lugar de maior discussão entre os participantes do projeto para que, através da troca de experiências, seja possível um avanço na consciência crítica desses pesquisadores.

 

Na sala de aula 

Tendo em vista tudo até aqui colocado, resta agora uma descrição de minha experiência em sala de aula, para poder demonstrar como se deu esse processo simultaneamente teórico e prático, quais foram os problemas encontrados, como foi possível driblar alguns deles e impossível escapar de outros, e, afinal, qual acabou se tornando a minha caracterização enquanto segundo professor e aluno-pesquisador.

Podemos começar pela dificuldade gerada por esses dois termos, pois, enquanto a Prefeitura de São Paulo anunciava a contratação de um segundo professor, contratava seus estagiários como alunos-pesquisadores; ora, é evidente, já pelas nomenclaturas, a diferença entre esses dois cargos. A confusão criada por conta disso abria caminho para que o estagiário tanto se prepusesse somente ao trabalho cientifico, pesquisando, fazendo experimentos e pouco ajudando o professor na sala, quanto indo por outra via, elaborando conteúdo, ministrando aulas etc. É evidente que um meio termo entre essas duas opções acabou se tornando a alternativa mais acertada a se tomar, porém, é bom lembrar que essa experiência em sala de aula foi a primeira para muitos dos estagiários, como também suas primeiras experiências como pesquisadores. Sendo assim, o estagiário teve que se adaptar logo a duas funções, sabendo casar a prática na sala de aula com uma posterior reflexão crítica daquilo trabalhado. Novamente, afunilando esses fatos para minha própria experiência, devo confessar que o lado pesquisador teve de, na maioria das vezes, ceder espaço para o lado professor, já que este demandava um esforço grande e diário, enquanto o primeiro se limitava a um relatório mensal do estágio. Obviamente, uma vez que o professor era muito mais cobrado do que o pesquisador, minha atenção acaba recaindo sobre aquele que demandava cuidado imediato.

Logo de inicio, as preocupações geradas pela sala de aula foram os principais temas de meus relatórios, pois as dúvidas de como deveria lidar com o processo de alfabetização eram muitas. Para começar, estava diante de um método que sequer havia ouvido falar e era totalmente diferente daquele pelo qual fora alfabetizado; na sala de aula, esse método competia com o tradicional, porque muitas crianças já haviam começado a ser alfabetizadas em casa através do “ba-be-bi”; além disso, os próprios professores pertencentes ao projeto ainda estavam se adaptando à cartilha construtivista. Mais uma vez, o meio termo foi a medida escolhida para lidar com o problema: uma vez que não possuía embasamento cientifico para ajudar as crianças somente através do método escolhido pela Prefeitura, optei por trabalhar com as ferramentas que tinha à mão. Isso significou ser, às vezes, antiquado, se era assim que funcionava com o aluno. Com o passar dos meses, pude entender melhor os pressupostos construtivistas e trabalhar com eles.

Esse aprendizado se deu por duas vias principais:

  • Leitura de uma bibliografia básica: Tanto o material cedido pela prefeitura, quanto os responsáveis pelo projeto na Faculdade de Educação indicaram uma vasta bibliografia que tratava sobre o tema. Apesar de ter realizado uma parte dessa leitura e ela ter, de fato, ajudado substancialmente nesse processo de aprendizado, a verdade é que o fato de ser um estudante de Letras atrapalhou, pois essa era uma leitura desligada de boa parte de meu curso e este já cobrava uma leitura intensa de outras literaturas.
  • Elaboração de conteúdo: Saber entrelaçar o papel de professor e pesquisador se mostrou um ponto-chave nessa empreitada. Uma ferramenta extremamente útil é, junto com o corpo docente, elaborar as atividades passadas em sala de aula. Essa experiência fez com que aprofundasse muito mais minha pesquisa, pois saber pensar o que é ou não interessante para ser passado às crianças não só faz pensar sobre aquilo que ensinamos, como também nos torna uma verdadeira engrenagem do sistema escolar.

 

As muitas dúvidas presentes no começo do estágio aos poucos foram sendo acobertadas por outro fator presente na vida escolar: a rotina. Isso não quer dizer que os problemas foram sanados; pelo contrário, por vezes essa rotina só serviu para prejudicar o caminhar das aulas.

Há sempre o problema do comodismo: se o estagiário começa sem vícios e preconceitos, logo depois de alguns meses pode estar sujeito a acatar certos clichês do sistema educacional: “Esse aluno não tem jeito mesmo”, “Fulano é um caso perdido”, e tantas outras frases conhecidas. Obviamente, tudo isso está intimamente ligado ao precário sistema de ensino que temos hoje – e foi motivo das paralisações que tivemos durante o ano –, assim como é conseqüência de vivermos em uma sociedade de terceiro mundo, onde fatores básicos como educação e saúde são esquecidos. Não cabe aqui uma análise profunda desses problemas – apesar de a compreensão deles ser essencial para entendermos a sala de aula –, mas o que quero expor é que, devido a tudo isso, o estagiário em seu primeiro ano, pode acabar vítima das diversas armadilhas a que são expostos os professores e, portanto, logo poderá se tornar disseminador das crenças preconceituosas que hoje estão impregnadas nas escolas. Parece-me que, nesse caso, o aluno-pesquisador possui um papel privilegiado, uma vez que ainda está sendo inserido nesse mundo e pode enxergar com maior clareza problemas e, até mesmo, encontrar soluções. Não se deixar levar pela rotina, muitas vezes estressante, do sistema é vital para um bom rendimento do estágio.

Como tenho destacado, a questão central do estágio se mostrou, ao longo do tempo, ser o embate entre a inexperiência e um sistema burocratizado que acaba trazendo uma má experiência. Saber lidar com essas nuances sem, aos poucos, ser tragado por lugares-comuns que acabam consumindo qualquer potencial, enfrentar alguns problemas de frente e não fugir devem ser objetivos. Afinal, acaba sendo mais fácil para qualquer um inserido nesse contexto encarar tal rotina como algo comum, ou seja, descartar os alunos mais problemáticos e lidar somente com os mais dispostos, tomar como experiência única aquela a qual somos expostos na sala de aula, ver a teoria como pura utopia, deixar de questionar os aparatos burocráticos e, enfim, se tornar parte do problema e ignorar possíveis soluções.

Seria um ato de má fé dizer que consegui burlar todo o sistema, que meu trabalho realizado em sala de aula foi perfeito e que, de fato, consegui soluções para vencer a já tão citada burocracia. Com efeito, já posso perceber certas tendências em minha prática na sala de aula que cederam a esse mal, e devo admitir que os resultados obtidos com minha turma não são nada mais que regulares; porém, irei expor aqui algumas idéias que podem ser úteis ao Programa Ler e Escrever.

 

Pensar além (ou alguns esboços de sugestões)

Mais uma vez, é bom salientar dois fatores: em primeiro lugar, essas idéias foram surgindo ao longo de meu estágio como possíveis melhorias no programa, principalmente quanto ao papel do segundo professor em sala de aula; porém, para ter certeza do sucesso dessas empreitadas, são necessárias experiências reais, ou seja, um embasamento sólido. Além disso, não é certo acreditar que essas modificações sanariam todos os problemas presentes tanto no programa, quanto na sala de aula, afinal, o ensino fundamental é problemático porque vivemos em uma sociedade precária, e toda complicação que cerca os projetos da rede municipal apenas copiam – são frutos – de todo um sistema que não é pensado para melhorar alguma coisa, mas tão somente para reproduzir a estrutura de poder que nos oprime.

Tendo em mente tudo isso, vamos às idéias:

Como já expus anteriormente, algo vital para o bom aproveitamento do estágio é que o aluno-pesquisador seja encarado como parte integrante da escola, apesar de, em um primeiro momento, ter sido natural o estranhamento com aquela figura nova na instituição, em que os professores não entenderam muito bem se o tal segundo professor seria alguém para ajudar na sala de aula ou uma figura infiltrada que estaria ali para delatar possíveis erros, e os próprios alunos não entendiam se seria aquele alguém para ajudar nos exercícios ou um colega de sala crescido – um “tio” – isso devido muito ao fato de o próprio estagiário não conseguir delimitar bem suas linhas de ação no trabalho. Para que isso não volte a ocorrer, é necessário que ele participe de mais reuniões de formação, se possível, até daquelas feitas com os professores, além das já lembradas reuniões de JEI; assim, o simples convívio já pode quebrar certos preconceitos existentes. Sacrificar uma hora de estágio dentro da sala para que o estagiário tenha contato com o fora da sala, até mesmo participando de festas e gincanas, pode melhorar o relacionamento entre escola, corpo docente e aluno-pesquisador.

Ademais, também se faz necessária uma cobrança maior dos envolvidos no estágio, não o tipo de cobrança obtusa e meritocrática cobrada tantos dos alunos quanto dos professores, nem as cobranças de resultados de sondagens como as dúzias de provas durante o ano (Prova Brasil, Prova São Paulo etc.). Esses tipos de exames, ao imporem certos tabus, só servem para ferir a autonomia dos cobrados, que, via de regra, não participam da elaboração de tais testes e sequer podem opinar sobre os mesmos. Pelo contrário, creio que professores e alunos-pesquisadores devem ter a oportunidade de poder pensar melhor sobre seu papel como educadores, ou seja, por meio de reuniões conjuntas ou exposições de trabalhos, poderem trocar experiências e procurar soluções para os problemas que os cercam.

Outro passo importante é saber dar mais espaço ao estagiário, incentivar a criação de projetos próprios, ter tempo para ministrá-los em sala de aula. Assim, estará sendo cobrado do estagiário que ele pense mais sobre sua função, tanto como educador quanto como pesquisador, ajudando a construir um profissional que reflita sobre sua função.

Também é evidente que o aluno-pesquisador deve ter um maior preparo ao começar seu estágio. Se não for possível cobrar isso dos candidatos, que, ao menos, estes passem por algum treinamento antes, algo mais do que uma ou duas reuniões, isto é, um tipo de formação que explique a idéia construtivista, faça um retrospecto do sistema de ensino, e, enfim, prepare o aluno minimamente para seu estágio.

Em resumo, é preciso fazer com que o aluno-pesquisador seja parte da escola, para que, desse modo e junto com seus colegas, possa pensar exatamente sobre qual seria a sua função, quais seriam os melhores métodos para usar, qual o tipo de trabalho a ser realizado, quais as dificuldades que deverão ser fatalmente enfrentadas, pois, somente quando esse tipo de reflexão estiver sendo elaborada é que se conseguirá aprofundar a consciência crítica dos envolvidos. Com sorte, se tais indivíduos forem formados a partir de uma base mais democrática e aprenderem sempre a construírem um pensamento autocrítico, esses futuros educadores conseguirão efetuar melhoras significativas na educação nos próximos anos.

 

Notas

[1] Referentes ao ano de 2007.

[2] Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP.

[3] Para maiores informações sobre o programa entrar em http://www.fflch.usp.br.

 

 

Aline Gasparini Montanheiro 

  

Introdução

Este artigo foi elaborado com base nas minhas experiências como aluna-pesquisadora do quarto semestre de Pedagogia da Universidade de São Paulo, integrante do Projeto Ler e Escrever – Toda Força ao Primeiro Ano do Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental I, desenvolvido pela rede municipal de ensino[1] em parceria com faculdades dos cursos de Pedagogia e Letras.

As reflexões aqui relatadas referem-se ao período de participação no projeto supramencionado, que ocorreu desde o dia 25 de agosto até 21 de dezembro de 2007, no qual atuei como professora auxiliar de primeira série do Ensino Fundamental na E.M.E.F. Prof. Roberto Mange[2], aproveitando as oportunidades de aprendizado pertinentes à prática educativa e ao cotidiano de uma escola pública paulista.

No decorrer dessa experiência, procurei acompanhar o cotidiano escolar, freqüentei sala de professores, conversei, escutei, observei e registrei minhas impressões. Percebi que, ao final desse processo, pude construir diversas concepções acerca do meu papel como professora auxiliar e da realização do projeto aplicado pelo governo.

O interesse pelo campo psicanalítico veio a produzir intensa relação com o tema levantado, à medida que se analisa a situação relacional de sujeitos implicados na demanda educativa, os quais convivem com desejos e pulsões imprimidos diariamente pelos alunos. Tal fato explicita a necessidade de o professor estabelecer um manejo específico dentro da sala de aula, o qual é claramente interferido pela presença de um outro, isto é, de um segundo professor que vem partilhar desse espaço tão complexo, antes restrito à apenas um olhar adulto: o seu. A especificidade da relação entre professor regente e professor auxiliar situa-se como um importante objeto de estudo, cujos sucessos e fracassos possuem conseqüências para não poucos sujeitos presentes no âmbito escolar.

Vale ressaltar que as questões aqui levantadas partem da ótica de uma aluna-pesquisadora[3] e, portanto, estão sujeitas às influências próprias de sua posição singular no contexto analisado. O olhar, nesse sentido, não é neutro e permanece imerso em situações e variantes impossíveis de serem evidenciadas.

 

As expectativas

Logo ao chegar na escola, nota-se que o professor auxiliar é bastante esperado pelo professor regente. Condições do sistema público de ensino, sobretudo no que diz respeito ao elevado número de alunos em cada sala de aula (38 em média), colocam o professor auxiliar como um importante meio de atender os alunos de maneira mais eficaz nas propostas, à medida que mais dúvidas podem ser esclarecidas e mais crianças ajudadas nas atividades. Sendo assim, o que se faz presente é um grande anseio por parte dos professores e funcionários da unidade escolar por essa nova pessoa que chega, sobretudo para ajudar ou complementar o trabalho que vinha sendo executado.

Outra concepção presenciada como expectativa acerca da função do aluno-pesquisador relaciona-se à mediação que este poderia estabelecer de forma mais assídua entre escola e universidade. O professor auxiliar, sendo estudante universitário, teria a capacidade de solucionar determinados problemas enfrentados pelos professores em sala de aula. Caberia a ele fornecer, principalmente, subsídio de cunho didático-metodológico que supostamente seriam ensinados na faculdade, para que fossem agregados à experiência professoral no intuito de aprimorá-la. A essa questão relaciona-se o corriqueiro discurso e a literatura pedagógica, os quais, influenciados pelo positivismo do século XIX consideram a ação docente possível de ser teorizada por meio de observação e análise da experiência, fornecendo, assim, modelos prescritos de conduta e prática docente. Percebe-se, então, a existência de uma educação fundada em certo idealismo pedagógico, cujo melhoramento do exercício professoral depende apenas de novas metodologias a serem aplicadas em sala de aula. Tal concepção condiz à maneira de pensar unicamente no professor e aluno ideais, isto é, desconsiderando suas condições de sujeitos às congruências e vicissitudes próprias de seres pulsionais. Sabe-se que a vida diária e a prática relacional estão sujeitas a falas, ações e atitudes muitas vezes surpreendentes, imprevistas e que em nada correspondem ao modelo de pressuposição teorizado pelo conhecimento técnico científico encontrado muitas vezes na pedagogia atual (PEREIRA, 2003).

A posição de aluno-pesquisador como estagiário observador também é percebida. O olhar de um outro, em seu estado estrangeiro (no sentido de estranhar o cotidiano incorporado à rotina), é considerado fundamentalmente crítico, em contraposição ao auxílio construtivo que deveria, em tese, estabelecer-se tanto por parte do aluno-pesquisador, quanto por parte dos sujeitos escolares que o recebem na instituição. Sobre esse aspecto, Madalena Freire argumenta:

Observar não é invadir o espaço do outro, sem pauta, sem planejamento, nem devolução, e muito menos sem encontro marcado...
Observar uma situação pedagógica é olhá-la, fitá-la, mirá-la, admirá-la, para ser iluminada por ela.
Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la, mas sim fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado por ela, na cumplicidade da construção do projeto, na cumplicidade pedagógica. (Freire, 1996: 14)

Há que se considerar ainda, a função do aluno-pesquisador como forte contribuinte para a prática docente, de modo a construir, juntamente com o professor regente, novas concepções e experiências pedagógicas. Essas, por meio de constantes reflexões, poderiam ser incorporadas, ou não, ao cotidiano escolar, à medida que são avaliadas no decorrer do processo. Pressupõe-se, aí, uma relação de troca entre ambos os sujeitos, de modo que as contribuições e o aprendizado sejam mútuos.

As visões acerca do papel ocupado pelo professor auxiliar podem se referir tanto por parte do professor regente e demais funcionários da unidade escolar, quanto pelo próprio aluno-pesquisador. Este, desprovido de orientações diretivas ou até mesmo alvo de preceitos negativos dos agentes escolares, pode desempenhar determinados posicionamentos que não condizem com o objetivo central do projeto que o envolve como contribuinte contínuo dentro da sala de aula.

 

A importância da relação, teoria X prática e educação ideal

Ao longo dos dias, a relação que se constitui entre professor auxiliar e professor regente passa a ser fundamental para o pleno andamento das atividades. Deve-se considerar que um espaço onde se articulam dois sujeitos, ambos situados numa posição revestida de poder frente aos alunos, faz da relação entre professor(es) e aluno(s) ainda mais complexa.

Quando um professor ensina, coloca-se a falar como se tivesse a sensação de ser uno, pleno, completo, sem falhas (pelo menos no momento que está falando). Porém, ele está continuamente posicionando-se de modos diferentes: ele não usará as mesmas palavras para turmas distintas; ele dará, em relação ao conteúdo, ênfases variadas de acordo com as diversas manifestações de seus alunos de turnos diferentes etc. Nesse sentido, os interditos, as condições do meio, lutas, modos de existir exigem que o professor posicione-se ao falar, e se deixe, ao mesmo tempo, ser falado pela heterogeneidade do meio a sua volta. (Pereira, 2003: 94)

Assim como aponta Pereira, não há dúvidas de que o professor se vê influenciado pelas condições à sua volta. A presença de um outro, que não o aluno, mas de alguém que ocupa uma posição diferenciada e próxima da que é por ele desempenhada, não ocorre sem conseqüências à sua atuação. Tal especificidade surte efeitos também para os alunos, os quais recebem duas possibilidades de aprender com professores cuja figura expressa o endereçamento de seus interesses, isto é, de seu desejo inconsciente, como afirma Pereira (2003).

Sabendo que esse outro adulto implicado na demanda educativa provém do meio universitário, considerado acadêmico por excelência e que, muitas vezes, articula-se com o saber de forma distante da experiência prática[4], prevalece no âmbito escolar o discurso de que a teoria trazida pelo aluno-pesquisador contrapõe-se à prática docente adquirida pelo professor regente através de sua experiência. Sobre esse aspecto, afirma Pereira, em sua pesquisa com as consideradas boas professoras do Ensino Fundamental I de escolas da rede pública estadual de Belo Horizonte, sobre o argumento constante das entrevistadas de que “aprende-se mesmo é na prática”:

Quando uma professora diz que aprendeu seu ofício pela prática, não nos restam dúvidas de que a experiência foi sua principal formadora. Mas não paremos aí. Ela se torna duplamente vulnerável. Em primeiro lugar, ela busca em tom de denúncia afirmar que a teoria é inferior à prática. Se denuncia, é porque acredita que algo esteja errado e isso reforça o valor da racionalidade. Em segundo lugar, ela parece se sentir tão desampara pela teoria que, ao menor sinal, busca-a e aceita-a com poucas resistências, submetendo-se à generalizações. (Pereira, 2003: 67)

O argumento do autor se sustenta na fragilidade que constitui o discurso de aprendizado pela prática, em detrimento da teoria, uma vez que, ao se pautar nas experiências, diversas teorizações ou receitas preestabelecidas, não raras vezes generalistas, acabam servindo como legitimadoras da prática, mesmo nas situações impossíveis de serem racionalmente explicadas. É um racionalismo invertido, como Pereira aponta.

O aluno-pesquisador como detentor de uma teoria abstrata e o professor regente como aquele que possui a prática pela experiência só contribuem para uma distorção do que efetivamente constitui o ambiente escolar, sobretudo no que diz respeito às situações que emergem no dia-a-dia correspondentes ao avesso inefável de seus sujeitos (aqui lido como inconsciente) que não cansa de se inscrever. Tal condição os obriga a lidar com um inesperado que nada tem a ver com “teorias científico-racionalistas” ou “teorias empiristas” e, mais do que isso, exige de ambos um manejo a ser realizado em sala de aula da forma mais harmônica possível.

O que se pode afirmar é que a disposição para a troca de percepções entre professor auxiliar e regente estabelece uma reflexão cada vez mais aprimorada do contexto escolar, bem como um vínculo, talvez até mesmo um caráter afetivo, importante quando se trata do trabalho professoral em conjunto. Se um dos sujeitos acredita que sua relação com o outro pode surtir conseqüências positivas, tanto para si mesmo, quanto para a demanda educativa dos alunos, e que tal posicionamento é recíproco, talvez o caminhar diário se torne menos conflituoso.

Não se pode deixar de lembrar, entretanto, que, ao se tratar de relações humanas, o que se coloca pelo cientificismo moderno como ideal (prescrito e teorizado) não é possível de ser realizado em sua completude. O que se faz presente em análises e atitudes no âmbito escolar é uma constante referência a um ideal de educação e interação entre os sujeitos envolvidos não condizentes com a realidade imposta pelo cotidiano, o que também deve ser considerado ao se tratar da relação entre professor regente e aluno-pesquisador. De acordo com Leandro de Lajonquière em Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica (1999), a demanda educativa, na tentativa de se realizarem os ideais planejados de antemão, pode acabar exigindo de uma criança a encarnação, de fato, dessas pressuposições que animam o ato. À medida que se trata de dois professores, desvencilhar-se de objetivos que enquadrem o aluno real, numa educação ideal, a qual pressupõe também um aluno ideal, deve ser uma tarefa constantemente objetivada.

Para Lajonquière (1999), a empresa educativa moderna é norteada pela imagem de uma criança que é o avesso imaginário de um adulto em falta. Sendo assim, a modernidade é tomada em direção a um futuro e não mais organizada a partir da referência ao passado. Ambos os professores, ao prestarem-se ao papel controlador de seus alunos no intuito de adequá-los aos parâmetros ideais socialmente estabelecidos, impõem um mandato para que o aluno se torne objeto formatador de seu desejo. Como aponta Ana Carolina Corrêa de Soares Camargo:

Enquanto objeto, o corpo do aluno é capturado pela coerção adulta do e no sistema educativo para atestar a suposição de quão adequada e eficaz é a intervenção pedagógica, ao preço de emudecer, senão mortificar, a condição subjetiva do aluno. (CAMARGO, 2006: 69)

Do mesmo modo afirma Pereira (2003): “O educador jamais deixará de se defrontar com a constituição pulsional da criança – que por si só já é rebelde. Ele se confrontará com a sua também”.

Essa idealização do aluno também contribui para que o professor atribua às atitudes indisciplinares e violentas dos estudantes o fracasso da estrutura escolar da atualidade, não sendo raras as vezes em que se faz analogia à escola de décadas atrás, nas quais os alunos eram “mais comportados e respeitosos”[5], como se isso fosse algo intrínseco aos sujeitos de uma determinada geração ou condição social.

Seria interessante pensar no papel do aluno-pesquisador como (des)(re)construtor de concepções que circundam a unidade escolar, da mesma forma que é transformado por ela com o passar dos dias. Reconhecer a impossibilidade que está por trás do trabalho como educador, bem como das relações estabelecidas entre os sujeitos presentes na escola, talvez coloque professor regente e auxiliar mais cientes e produtivos no atendimento à demanda dos alunos e na própria relação que entre eles é construída.

 

As desilusões

A relação que, ao longo do processo, se constitui entre professor auxiliar e professor regente é essencial ao considerarmos a especificidade de ambas as posições ao compartilharem o espaço da sala de aula, bem como as propostas e encaminhamentos didáticos que devem ser realizados. No entanto, as proposições psicanalíticas advertem que a constituição primordial do sujeito como um ser constantemente desejante, incompleto e nunca satisfeito não permanece sem conseqüências, uma vez que tais condições se expressam freqüentemente nas mais diversas situações relacionais, por meio de sua própria palavra que o denuncia.

Acreditar que o esperado, isto é, as expectativas em relação ao papel do professor auxiliar em consonância com o professor regente, pode vir a se realizar perfeitamente na realidade inferida dia após dia não passa de uma ilusão. Esta, definida por Lajonquière (1999) como “crença animada por um desejo”, toma conta da pedagogia e de muitos sujeitos que tentam suturar a fenda inefável de sua constituição psíquica primordial (correspondente à existência de um inconsciente que não permite sua completude, isto é, a plena realização de seu desejo[6]). Em matéria educativa sabe-se, desde o início, que aquilo que foi planejado não será equivalente àquilo que de fato acontece, isto é, o profissional não controla os efeitos de sua relação sobre o outro.

Todavia, reconhecer a presença de desilusões no decorrer do ofício do aluno-pesquisador e professor regente não significa renunciar à tentativa de construir um trabalho em conjunto cada vez melhor e mais bem fundamentado. É preciso pensar numa relação aquém dos preceitos que rodeiam o imaginário social e o senso comum, muitas vezes prejudiciais à atuação de ambos no desempenho de seus papéis e na interação que estabelecem entre si.

 

Conclusões

O Projeto Ler e Escrever – Toda Força ao Primeiro Ano do Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental I pode gerar conseqüências positivas para o âmbito da sala de aula na medida em que abre possibilidades de realizar uma interessante troca entre aluno-pesquisador e professor regente, cada qual proveniente de seu contexto específico e atuante contínuo na demanda educativa.

Não se pode deixar de considerar que, no decorrer da rotina escolar e na relação entre professor auxiliar e professor regente, há diversos fatores capazes de interferir na efetiva realização do projeto, entre os quais os de caráter relacional, bem como do imaginário que envolve cada sujeito em seu espaço de origem, preceitos e concepções que os cercam.

A falta de clareza da função do aluno-pesquisador, tanto por parte da equipe da unidade escolar, quanto por ele próprio, dificulta um trabalho mais pertinente aos objetivos traçados pelo projeto, ficando mais vulnerável à imersão de concepções imaginárias que lhe ofertam um lugar pouco produtivo. É preciso lembrar, no entanto, da referência psicanalítica que adverte quanto à impossibilidade de realização de uma educação ideal que seja totalmente condizente aos preceitos contidos no âmago de qualquer projeto, entendido como almejante de uma prática igualada ao pressuposto na teoria.

O aluno-pesquisador, mais que auxiliar da prática já incorporada ao cotidiano, tem a função de contribuir, agregar, complementar e, sobretudo, buscar um espaço de troca constante. Uma relação de confiança entre este e o professor regente parece fundamental, uma vez que ambos devem sugerir propostas a serem realizadas, na medida do possível, em consonância e sempre em busca do melhoramento do exercício educativo em sala de aula.

 

Notas

[1] Através da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo – SMESP.

[2] Pertencente a Coordenadoria de Educação do Butantã.

[3] Terminologia utilizada para nomear a função do professor auxiliar participante do projeto.

[4] Concepção encontrada no imaginário social e senso comum que circundam o ambiente escolar.

[5] Fala constantemente anunciada na escola.

[6] Este, considerado pela psicanálise, como um desejo inconsciente.

 

Referências bibliográficas

ANTELO, Estanislao. Qué quiere usted de mi? Lo incalculable en el oficio de enseñar. Revista La Educación en nuestras manos, n. 72, outubro de 2004. 

CAMARGO, Ana Carolina Corrêa Soares de. Educar: uma questão metodológica?. Petrópolis: Vozes, 2006.

FREIRE, Madalena e col. Observação – Registro - Reflexão. Instrumentos Metodológicos I. Série Seminários. São Paulo: Publicações do Espaço Pedagógico, 1996.

FREUD, Sigmund. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: Obras Psicológicas Completas, vol. XIII, RJ: Imago, 1914.

LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1999.

NEV/I. Sou da Paz/ PNUD: Direito à Educação e qualidade de ensino. In: “Os Jovens e os Direitos Humanos”. São Paulo, 2001.

PEREIRA, Marcelo Ricardo. O Avesso do Modelo. Bons professores e a psicanálise. Petrópolis: Vozes, 2003.

SÃO PAULO, SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. DIRETORIA DE ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA. Projeto Toda a Força ao 1º Ano: guia para o planejamento do professor alfabetizador – orientações para o planejamento e avaliação do trabalho com o 1º ano do Ensino Fundamental. Vol. 2.

   

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