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Quinta, 17 Fevereiro 2011 19:41

Comitês editoriais

 

NÚMERO 1 (2006)

Carlos José Carota

Carolina Machado

Cleônidas Tavares de Souza Júnior

Érica Salatini

Rosana Ribeiro Ramos

 

NÚMERO 2 (2007)

Rafael Barreto Prado

Lucas Luciano Limbert

Daniela Aparecida Eufrásio

 

NÚMERO 3 (2008)

Giovanna Ike Coan

Marcelo Rodrigues de Moraes

Michele da Silva Lima

Vinicius Martins

 

NÚMERO 4 (2009)

Neide Luzia de Rezende

Richard Marcello

Gabriela Rodella de Oliveira

 

NÚMERO 5 (2010)

Neide Luzia de Rezende

Victor Hugo Fernandes Cremasco

Marina Pontes Filandra

Alex Fabiano Nogueira

Gabriela Rodella de Oliveira

  

Segunda, 01 Junho 2009 00:00

Música e poesia

 

 

 Alison Paulo da Luz
Cibele Cesário da Silva
Edvane Rubim Soares
Ibis Natalia do Nascimento
Lucinara Chessa
 

  

Resumo
Partindo do pressuposto de que a música desperta o interesse do aluno e o leva a uma maior interatividade com o objeto a ser trabalhado em sala de aula, apresentamos aqui uma proposta de associação do poema à música. O foco do trabalho são os poemas, de autores e épocas variados, que, relacionados a músicas da atualidade, têm o objetivo de despertar a atenção dos alunos de 8ª série para as relações entre os diferentes contextos, a partir do trabalho comparativo. Seria uma maneira de aproximá-los do universo literário mais “adulto” e erudito, partindo de suas referências contemporâneas mais – por assim dizer – juvenis e massificadas. 

  

Introdução

 A arte não é a verdade. A arte é uma mentira de imitar a verdade da realidade.” 
(Pablo Picasso)

A literatura mais canônica requer que o estudante possa perceber o texto em suas diversas camadas de significação, que ele reflita sobre essas possibilidades e que consiga interpretar o texto a partir de seus referenciais, mas também dos referenciais oferecidos pelo professor, que certamente trará para a sala uma abordagem do texto moldada por outras leituras críticas. É um desafio motivar o aluno à fruição do poema e também inseri-lo numa perspectiva de aprendizagem, ou seja, de um saber literário que incorpore a tradição e a técnica.

 

A escolha de ambos os gêneros, poema e música, portanto, se justifica a nosso ver porque a música, estando mais próxima dos alunos, traz uma variante mais acessível da língua e da cultura, mais atraente, sedutora, num primeiro momento. Não situamos essa variante apenas num nível lexical, mas também sintática e, sobretudo, sonora, uma vez que, além dos termos familiares ao vocabulário corrente dos alunos, há uma configuração frasal em geral mais simples que a do poema, e há também o ritmo e a melodia, que falam mais diretamente à sensibilidade porque mais familiares e inscritas no universo cultural do jovem.

Assim, será possível, acreditamos, propiciar aos estudantes várias atividades de aquisição e interpretação da língua, tanto em sua modalidade oral como escrita, além dos conhecimentos referentes aos gêneros poéticos.

Na introdução do livro O ser e o tempo da poesia, de Alfredo Bosi, José Paulo Paes afirma que o “ser da poesia” é a imagem, que busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens; é o som no signo, a figura do mundo e a música dos sentimentos recuperadas via linguagem; é o ritmo da frase do discurso poético, a imagem das coisas e movimento do espírito - enquanto o “tempo da poesia” é a resposta dos poetas ao estilo capitalista e burguês de viver.

A partir de um trabalho baseado mais na espontaneidade e nas percepções, queremos nos desafiar a levar aos alunos maneiras simples de interpretar o que está obscuro atrás dos poemas e deixá-los expressar o que sentem.

Neste projeto, vamos nos deter mais em três poemas relacionados a três músicas, estimando em média três a seis horas/aulas para cada tópico, o que pode ser posto em prática em uma ou duas semanas aproximadamente, intercalando-se com os outros conteúdos de português. Os tópicos da sequência didática não serão aqui separados por aula, apenas dividiremos em Atividades, ficando a cargo do professor decidir a quantidade de aulas/hora que empregará em cada uma.

Quanto ao público-alvo, acreditamos que vale para as séries do ensino fundamental II, só variando a abordagem, mais ou menos complexa.
 
 

 

Sequência didática
 
Tópico 1
 
Atividade 1 : Leitura do poema, audição da música e comentários
 
Música: “Geração Coca-Cola” – Legião Urbana
 
Poema: “Ode ao Burguês” – Mário de Andrade[1]

 

 

O professor inicia a atividade lendo o poema com os alunos, em voz alta, em voz baixa, uma, duas, três vezes, até ele se tornar mais familiar, até ele ser “sentido”. Para a música, é sempre bom reservar um bom aparelho e pedir silêncio para que as condições da audição sejam adequadas.

Antes de qualquer análise do poema ou da música, é imprescindível que se comente[2] ambas as obras.

É importante situar o poema no momento histórico para que, mais adiante, na conclusão, possamos apresentar o movimento literário, o Modernismo. Também será a ocasião de discutir palavras e imagens estranhas, tudo devendo ser explicado pelo professor, mas partindo da percepção dos alunos, de suas dificuldades, perguntas, estranhezas. Pode-se dizer que se trata de uma “vivência” do poema, um contato maior com matéria (o assunto do poema) e com o material (a forma do poema).

Só num segundo momento é que o poema sairá da vivência dos alunos para o plano da análise do texto propriamente, situado no seu momento da história.

Alfredo Bosi (2000, p. 9) afirma:

Contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo, é inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional: uma trama em que o eu-lírico vive ora experiências novas, ora lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em cada poema.

 

 

“Ode ao Burguês” é um poema de Mário de Andrade incluído na obra Paulicéia Desvairada, publicada em 1922,  e causou muita polêmica em sua época; também, para o olhar de hoje, mostra-se bastante esclarecedor para entender os motivos que levaram autores como Mário de Andrade a participar ativamente do movimento Modernista. A música “Geração Coca-Cola” foi composta mais de meio século depois por Renato Russo e cantada pela banda Legião Urbana, que os alunos conhecem e gostam muito. A banda foi uma das mais influentes no comportamento dos jovens na década de 1980 e conquistou uma legião de fãs.

Assim como o Legião Urbana buscou pela música expressar a angústia e a revolta contra nossa sociedade, que, diziam, se deixava dominar pelos norte-americanos, Mário de Andrade em seu poema “Ode ao Burguês” expõe com sarcasmo a revolta contra o burguês explorador do seu tempo. Nesse poema, se evidenciam experiências ousadas, como versos livres, imagens audaciosas e inesperadas e uma crítica social incomum na poesia de então.

Provavelmente os alunos se sentirão mais à vontade para discorrer sobre a letra da música uma vez que ela faz parte do repertório deles, mas não se furtarão a estabelecer comparações com o poema.

Ao final desta aula introdutória, os alunos devem levar para casa a cópia escrita da poesia e da música para lerem atentamente e virem mais preparados para a próxima atividade, que será interpretativa.

 

 

Atividade 2 - Estudo do poema e da música dentro da história

A) Relação dos autores com a História

 

B) Relação da poesia e da música com a História

C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico

 

D) Semelhanças contextuais entre a música e a poesia

 

 

A) Mário de Andrade (1893-1945) era um moderno, mas um moderno diferente, não vivia citando avanços, mas realizou rupturas estruturais no modo de fazer poesia – “Somos primitivos da era moderna – o passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”. Já Renato Russo (1960-1996), o compositor da música “Geração Coca-Cola” e integrante da banda Legião Urbana incutia um caráter social a algumas de suas músicas, que chegava aos garotos muito jovens, seu público mais fervoroso. A biografia de ambos os autores pode ser pesquisada: a de Mário nos livros e na internet, a de Renato Russo sobretudo na internet. Essa pesquisa certamente trará aos alunos, por meio dos hiperlinks, conhecimentos diversos sobre os contextos desses autores e seria importante que o professor concedesse um tempo para que os alunos pudessem se manifestar a propósito dessas descobertas.

B) O livro em que se insere o poema, Paulicéia Desvairada, manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos homens. A obra em si e conseqüentemente o poema trazem à tona o contexto citadino, com suas tensões e diferenças sociais. Mário viveu em um período de grandes transformações tais como Primeira Guerra Mundial, vanguardas européias, o realinhamento e reestruturação de forças da burguesia no Brasil, revoltas das classes médias e as lutas de classe contra o poder do Estado. O modo como todas essas transformações repercutiram no poeta é único e essa identidade poética que é que se deve privilegiar no trabalho com os alunos. A banda Legião Urbana criada no início dos anos 80 movimentou toda uma geração, que ficou conhecida como “Geração Coca-Cola”, devido às letras polêmicas que retratavam a situação político-cultural dessa década; a banda conquistou multidões, chegando a formar uma verdadeira legião de fãs até hoje. Renato Russo retrata sua geração à luz da dominação globalizante. Também aqui vale a pesquisa que os alunos podem fazer.

C) O poema é uma crítica à sociedade fútil burguesa da época. O próprio título pode ser entendido como uma “brincadeira” sonora feita pelo autor: o significado de “Ode” (composição poética de caráter lírico) pode ser “traduzido” por ódio, ódio aos burgueses. Em versos livres, se contrapõe às formas fixas, mais convencionais até então; as contradições do poeta acabam por constituir uma notável multiplicação de olhares e de perspectivas sobre a cidade de São Paulo que parecem se sobrepor umas às outras dando a impressão de simultaneidade. Nota-se que a crítica de Mário não é para a cidade de São Paulo, que ele ama, e sim para os seus governantes, assim como na música, o grupo Legião Urbana critica os norte-americanos, o que deve ser entendido em termos de poder dominante e não de uma crítica ao povo.

D) Ao expressar seu ódio aos burgueses da metrópole paulistana, o poema se mostra também como uma espécie de manifesto do poeta modernista contra os conservadores que se posicionavam contra o Movimento Modernista: “Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio e nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu” (Andrade, 1974, p. 232). O mesmo movimento modernista que perturba a cristalização do lirismo, cria um lirismo difícil e incompleto, que representa as dificuldades e incompletudes do sujeito lírico na modernidade incipiente. Em “Ode ao Burguês”, assim como em toda a Paulicéia Desvairada, diante da paisagem citadina o poeta não registra simplesmente a face externa que seus olhos enxergam, mas procura em suas sensações, as impressões que a cidade deixa dentro dele.

Na canção “Geração Coca-Cola” do Legião Urbana há também esse tom de manifesto. No agressivo refrão “somos os filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ geração Coca-Cola”,  seu autor Renato Russo, alude ao “sistema” – o Regime Militar (chamando-o de Revolução) como responsável pela alienação dos jovens. Esta crítica irônica fica mais explícita nos versos que se referem à massificação da cultura norte-americana – os enlatados – como lixo da indústria cultural digerido pelos adolescentes programados desde pequenos. Um embrião de revolta é plantado nos versos dirigidos aos governantes:  “vocês vão ver/ suas crianças derrubando reis/ fazer comédia no cinema com as suas leis”.

Essas e outras considerações podem surgir espontaneamente ou vir orientadas pelo professor.

 

 

Tópico 2 

Atividade 1 – Ler o poema, ouvir a música e comentá-los  

Música: “Brasil” – Cazuza

Poema: “Epílogos” – Gregório de Matos

 

Se uma noção de poesia já estiver se formando nos alunos, procede-se a uma discussão mais “teórica” sobre aspectos do poema – verso, estrofe, versos livres, ritmo... Também situar o poema e a música em seus respectivos períodos históricos e discutir como ambos os autores traduziram o momento em que viveram, apresentando semelhanças e diferenças, pois, apesar de pertencerem a séculos distantes, é possível distinguir em ambos uma visão do Brasil que – sim – possui pontos em comum.

O poema de Gregório de Matos tem um vocabulário em desuso para o jovem de hoje, o que não significa que seja ininteligível. Mostrar isso aos alunos, as variantes históricas da língua, e levá-lo a ter contato com esse tipo de linguagem seria uma maneira de enriquecer o repertório deles e de desmistificar o que, muitas vezes, é tomado como impossível para alunos da 8ª série. Claro que não se fará uma análise profunda, considerando-se a complexidade constituinte da poesia gregoriana e os sucessivos jogos de linguagem utilizados por Cazuza. A intenção é interpretar ambos os textos de forma a trabalhar com os alunos a capacidade de extrair elementos sobre os alcances da poesia nesse trabalho comparativo.

Após a leitura do poema e audição da música, podemos começar apresentando os autores:

 

  • Gregório de Matos: poeta do século XVII (1636-1713), que viveu no período colonial no âmbito do movimento chamado de Barroco. Português, Gregório residia na Bahia, cujas questões políticas e sociais serão tema de sua poesia. Era conhecido como “Boca do Inferno” justamente pelas críticas acirradas dirigidas ao clero, nobreza, escravos, etc., ou seja, não poupava ninguém. Gregório foi o primeiro poeta brasileiro a expressar critica e sarcasticamente um sentimento nacional, característica também muito presente em “Brasil” de Cazuza.

 

  • Cazuza: poeta e músico do século XX (1958-1990), marcou o rock nacional nos anos 80. Inicialmente, pertencia ao grupo musical Barão Vermelho, posteriormente, partiu para a carreira solo. Viveu em um período de grande turbulência política, no final da ditadura militar, quando lutava pelas “Diretas Já”. Cazuza também não excluía ninguém em suas críticas. Caracterizado como um espírito irreverente, viveu intensamente, até contrair o vírus da AIDS. Assim como Gregório, expressava em suas músicas sua indignação quanto aos problemas do país, marcado pela fome, miséria, corrupção, exploração da classe dominante, etc. Suas letras falavam de dores, paixões e sofrimentos, mas foi com o disco Ideologia que Cazuza divulgou mais assuntos relacionados a questões sociais.

 

A poesia possui uma linguagem que combina arranjos verbais próprios como processos de significação pelos quais sentimento e imagem se fundem em um tempo denso, subjetivo e, ao mesmo tempo, histórico.

A música é a arte de coordenar fenômenos acústicos para produzir efeitos estéticos. Como todas as artes, a música é patrimônio comum da humanidade. Quando associada à poesia, na canção, é uma das formas mais populares de arte. Na verdade, a poesia surgiu com os gregos, simultaneamente com a música, a dança e o teatro, que buscam realizar, dentro dos limites da linguagem rítmica, uma síntese de pensamento e sensibilidade. São inúmeras, entretanto, as variantes do conceito de poesia.

 

Atividade 2 – Estudo do poema e da música dentro da história

“A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, esta coleção de objetos de não-amor. Resiste ao contínuo harmonioso pelo descontínuo gritante, resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado, e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia”.
(Carlos Drummond de Andrade)

A) Relação dos autores com a História

B) Relação da poesia e da música com a História

C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico

D) Semelhanças contextuais entre a música e a poesia

 

A) Gregório de Matos Guerra nasceu e formou-se em Direito em Portugal. Transferiu-se para o Brasil vivendo como fidalgo, porém convivendo com várias camadas da população. Conforme dito da aula anterior, o Brasil ainda estava sob o jugo português, apesar da crise que se instalava paulatinamente sobre a Colônia. O comércio colonial estava cada vez mais defasado, emergindo uma classe poderosa, ávida por dinheiro e poder, a burguesia. Esta classe agrava ainda mais essa crise e tirando o máximo de proveito dela. Gregório, apesar de pertencer à nobreza percebia os problemas da Colônia, a exploração, corrupção e suborno.

“Ao lado da economia agrícola que até então dominara, se desenvolve a mobiliária: o comércio e o crédito”[3] e, com isso, passa a haver uma “disputa” entre os proprietários rurais em crise e a burguesia crescente. Ambos pertencem à classe dominante, defendendo seus próprios interesses e explorando o povo cada vez mais pobre, ou seja, nessa disputa pelo poder, político e econômico, quem perde é a classe menos favorecida. Conforme afirmou Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, na poesia de Gregório de Matos “o que está em jogo (...) é (...) uma rija oposição estrutural entre a nobreza, que desce, e a mercancia, que sobe”.

O Brasil de Cazuza, por sua vez, saía de um longo ciclo ditatorial e vivia um clima de democracia ainda incipiente, mas suficiente para liberar as energias contidas. Cazuza desempenhou um papel importante nesse processo.

Cazuza nasceu e morreu no Rio de Janeiro, e acompanhou o período da ditadura militar e campanha para as “Diretas Já”. Com a morte de Tancredo Neves, o país passa a viver novamente na expectativa. Sobe ao poder José Sarney que “afunda” ainda mais o país, marcado pela eterna recessão política e econômica. E é nesse cenário que Cazuza comporá suas músicas.

B) “Epílogos” – Gregório de Matos - A obra poética de Gregório de Matos é composta de duas vertentes: uma satírica (composição poética que ataca de forma incisiva ou ridiculariza instituições, costumes e/ou idéias contemporâneas) e outra lírica de fundo religioso e moral. Mostrar aos alunos que o poema a ser analisado pertence à primeira vertente e é estruturado de modo a observar o jogo pergunta-resposta mais conclusão.

Lembrar que o poema se insere no sistema colonial, onde cada passo da seqüência corresponde a instituições que organizam a sociedade. Há várias vozes no poema contestando e questionando, compondo um debate. Para que os alunos percebam esse tom de debate, propor a eles a leitura alternada em voz alta.

“Brasil” – Cazuza – Uma das músicas de maior sucesso de Cazuza, “Brasil” está inserida no disco Ideologia. O Brasil encontrava-se, mais uma vez, afundado na recessão e com um presidente não eleito pelo povo após anos de ditadura militar. “Brasil” retrata de forma contundente o novo (ou velho?) cenário político que se configurava.

C) Mediante o estilo pergunta-resposta, o poeta denuncia problemas sociais. É importante observar aos alunos que muitos assuntos tratados ainda são atuais, revelando a persistência dos problemas, sobretudo, em relação à corrupção das instituições que deveriam zelar pelo bem público. Assim, os alunos podem perceber que, mesmo sendo um poema do século XVII, é possível a partir dele refletir sobre a vida de hoje, estabelecendo relações críticas entre passado e presente, para, quem sabe, projetar um futuro.

D) Conforme já foi dito anteriormente, tanto o poema quanto a música denunciam problemas sociais e políticos: corrupção, suborno e exploração da classe dominante. Contudo, no poema de Gregório temos essa denúncia de forma mais explícita se considerarmos que o eu-lírico nomeia cada instituição responsável pela degradação do país. Já em “Brasil” isso ocorre de forma indireta, pois o eu-lírico utiliza-se de metáforas para se referir a essas instituições.

Ambos deixam bem claro que o capital/dinheiro é que determina a “hora e a vez” do indivíduo: “o meu cartão de crédito é uma navalha” (“Brasil”); “Quem causa tal perdição?..... Ambição.” (“Epílogos”). O povo, alienado e ignorante, é incapaz de mudar esse quadro, aceitando a situação passivamente: “Será que é meu fim ver TV a cores na taba de um índio programada só para dizer sim?” (“Brasil”) ou em: “a pagar sem ver toda essa droga que já vem malhada antes d'eu nascer” (“Epílogos”)

Tanto em um quanto no outro temos o uso do termo “negócio”. No poema de Gregório, fica bem claro que por causa do comércio (negócio) a Bahia encontra-se em estado de decadência, porque a classe dominante rouba (socrócio) tudo que lhe pertence, fazendo com que o povo fique cada vez mais pobre (“Quem a pôs nesse socrócio?....... Negócio.”). Já em “Brasil” o eu-lírico trata de maneira indireta: “Quero ver quem paga pra gente ficar assim”, ou seja, quem nos explora para que fiquemos tão pobres e miseráveis?. Por isso, o eu-lírico pede: “Brasil, qual é o teu negócio, o nome do teu sócio?”. E quando ele diz “confia em mim” sugere que o eu-lírico que ser incluído nesse sistema a fim de se beneficiar também, mas isso só será possível através do suborno.

Tanto no poema quanto na música, o tom de pessimismo é bastante marcado, pois só através de ações ilícitas consegue-se ser alguém neste país. Na música de Cazuza, o eu-lírico vai ainda mais longe, se considerarmos que não há nenhuma “brecha” para que tal quadro mude. No poema de Gregório, há a conclusão bem clara de que os dirigentes não querem e não vão mudar o país (“A Câmara não acode?...... Não pode./ Pois não tem todo o poder?..... Não quer.”). A presença de perguntas no poema e na música supõe um tom de desafio e indignação com a situação.

Diante de tais considerações, pode-se mostrar aos alunos problemas que o Brasil carrega desde o descobrimento: a renda concentrada, a falta de acesso a bens que, entretanto, poucos desfrutam plenamente.

 

Tópico 3 

Atividade 1 – Leitura, audição, interpretação e produção de texto

Música: Homem na estrada – Racionais MC's.

Poema: Operário em construção – Vinicius de Moraes

 

O objetivo deste primeiro momento é despertar os alunos para a reflexão sobre os problemas atuais; utilizar o debate tanto para este momento como para a seqüência das próximas aulas, uma vez que este gênero possibilita o desenvolvimento da capacidade de argumentação:

Tendo posições diferentes em relação à questão colocada, porém não necessariamente contraditórias, cada participante do debate pressupõe nos outros, participantes ou ouvintes, a faculdade da razão e a vontade de encontrar através do raciocínio uma solução coletivamente aceitável para a questão. (...) O debate aparece, assim, como a construção conjunta de uma resposta complexa à questão, como instrumento de reflexão que permite a cada debatedor (e a cada ouvinte) precisar e modificar sua posição inicial (Schneuwly, Dolz, 1999, p. 12)

Além dessa qualidade intrínseca ao gênero, acreditamos que haverá maior participação dos alunos e a aula será mais dinâmica.

Ao ouvir a música, o aluno poderá reconhecer nela fatos comuns ao seu cotidiano, porém, em uma realidade “inventada ou recriada” pelo autor.

Em primeiro lugar, discute-se a biografia dos autores da música, cuja pesquisa deverá ter sido previamente solicitada aos alunos, já que são eles que conhecem e sabem como procurar as informações sobre os integrantes da banda. Cabe ao professor organizar e selecionar, para efeito do trabalho escolar, as informações que os alunos trouxerem. Por se tratar de um grupo muito popular na periferia, os alunos têm muitas informações e isso já os estimularia a emitir suas opiniões. O mesmo ocorreria com a leitura e audição (por possuir uma gravação com Vinicius de Moraes) do poema O operário em construção e, logo após este momento, fazer uma breve exposição da biografia do autor.

Para a biografia do grupo de rap Racionais, selecionamos um texto eletrônico. Clique aqui para ter acesso.

 

Atividades 2 e 3 – Produção de Texto

Como tarefa para a aula seguinte, podemos pedir que escrevam o que eles pensam de cada uma das obras. Como eles enxergam a opinião de cada autor, tomando como base o texto e a música. Claro que os alunos já devem ter uma noção de organização de um texto opinitivo. Mas lembramos também que a prática do comentário pode ser exercida a partir de uma forma textual livre. Os textos redigidos podem ser lidos na aula seguinte. Esta atividade dá chance ao professor de saber como está a expressão, a argumentação e a produção de textos dos seus alunos.

 

Atividades 4 e 5 – Análise da Música e Poesia

Nesta aula poderíamos falar sobre as origens e contextos em que foram escritas a música e a poesia.

Sobre O homem na estrada é interessante expor as origens do rap e principalmente da ramificação da qual os Racionais fazem parte: o movimento hip-hop. Não esquecer que sobre rap e hip-hop os alunos provavelmente sabem mais que o professor. Para evitar que a atividade se torne desnecessária e negativamente escolarizada (com o professor polarizando as explicações), deixar que os alunos apresentem suas considerações. O papel do professor pode ser muito importante nesse momento ao organizar as intervenções, apontar semelhanças e as diferenças entre os pontos de vista, mostrar a riqueza da diversidade das apreensões. Muitas informações podem ser obtidas em textos online. Clique aqui.

Quanto a Vinicius de Morais, devido a sua grande obra e aos diversos movimentos em que esteve envolvido, consideramos mais importante lembrar quando ele escreveu O operário em construção, cuja contextualização pode ser encontrada clicando aqui.

As diferenças entre a linguagem oral e escrita é um outro ponto que pode ser abordado, sendo bem apropriada a atividade em que os alunos transcrevem a música (comparada ao poema, é mais próxima da língua oral pelas marcas que possui) para uma forma em prosa, uma prosa poética, por exemplo, ou, ao contrário, um texto jornalístico.

E, por fim, discutir com os alunos como ocorre a distribuição das rimas e sua classificação, conforme a adotada por Said Ali (Versificação em língua portuguesa) como um primeiro passo para o estudo de recursos formais da composição poética.

 

Outras sugestões 

1.

Música: “Índios” – Legião Urbana  

Poema: “Romance I ou da Revelação do Ouro” – Cecília Meireles

O Romance I ou da Revelação do Ouro, em Romanceiro da Inconfidência, primeiro texto da obra, foca a ganância do homem branco e o papel do índio durante esse acontecimento histórico. O poema possui fortes marcas épicas, pois trata da constituição de um povo, situando-se no presente histórico. Índios , da banda Legião Urbana, expõe de maneira mais direta opapel do índio na sociedade, é uma espécie de lírica argumentativa.

Sobre o Período histórico, o professor pede que os alunos leiam a música e, em grupos de três ou quatro alunos, discutam e cheguem a uma conclusão a respeito do período histórico de que a canção trata. Se o professor considerar seus alunos ainda imaturos para desempenhar a tarefa, sugerimos que sejam oferecidas e discutidas opções de respostas. Ex: a) Independência dos EUA; b) 1929; c) os dias atuais; d) colonização do Brasil. Essa atividade servirá como base para que os alunos e adquiram noções de temporalidade (no caso, os verbos no passado da canção e os verbos no presente no poema). Também é possível lidar com as funções da linguagem, sendo as marcas de emissor e destinatário muito marcantes tanto no poema quanto na música.

Comparações que podem ser estabelecidas: ambição desregrada; a natureza envergonhada; injustiça para com os índios.

 

2. 

Música: “A Minha Alma” – O Rappa  

Poema: “Canção do Exílio” – Gonçalves Dias  

Os grupos elaborarão apresentações a partir das semelhanças, diferenças, enfim aspectos levantados a partir do estudo e comparação entre a música e o poema. Essas apresentações serão elaboradas de diferentes formas, à escolha de cada grupo: dramatização, seminário com utilização de recursos gráficos, visuais e/ou auditivos, ou ainda de acordo com a criatividade da turma pode ser sugerida a criação de paródias, tanto da música quanto do poema que serão passados aos demais colegas através de dramatizações e consequente interpretação de seu significado. Sugere-se a maior quantidade possível de atividades escritas.

 

Notas

[1] O poema “Ode ao Burguês” de Mário de Andrade e a música “Geração Coca-Cola”, do Legião Urbana, assim como todos os outros poemas e letras de música, estão anexados ao final deste trabalho.

[2] Antonio Candido, no Estudo analítico do poema, distingue três momentos no estudo do poema: comentário, análise e interpretação, sendo que, para ele, o comentário já uma importante entrada para a compreensão do poema.

[3] MATOS, Gregório. Poemas Escolhidos, Introdução de José Miguel Wisnik. Círculo do Livro, SP - p.8.

 

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. “O Movimento Modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. 5ª edição. São Paulo, Martins, 1974.

ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edusp – São Paulo, 1987.

ARENDT, Hannah. “A Crise na Educação”. In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo. Perspectiva, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. “Os Gêneros do Discurso”. In:- ---- ---. Estética da Criação Verbal. (Trad.) São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1996.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas / FFLCH-USP, 1996.

ESPÍNOLA, Adriano. “Redescoberta do Brasil”. In: Revista Cult 41. São Paulo: Editora Krao, dezembro/2000.

INTERNET. http://www.letrasdemusicas.com.br.

LAFETÁ, João Luiz Machado. “A Consciência da Linguagem”, 1930: “A Crítica e o Modernismo”. São Paulo, Duas Cidades, 1974. “A representação do sujeito lírico na Paulicéia Desvairada”. In: BOSI, Alfredo. Leitura de Poesia. São Paulo, Ática, 1996.

MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. Introdução de José Miguel Wisnik.

NICOLA, José de. Língua, Literatura & Redação. [Edição revisada e ampliada]. São Paulo: Scipione, 1998.

RONCARI, Luiz. Literatura. Dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos. SP: EdUSP/ FDE, 1995.

SCHNEUWLY, B., DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista brasileira de educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1999, nº 11.

SÓ, Pedro. Revista ShowBizz. São Paulo: Abril, Edição 145, agosto/1997.

 

* Este projeto contém arquivos anexos para download. Eles estão disponíveis logo abaixo, em "Baixar anexos".

   

Segunda, 01 Junho 2009 00:00

Oficina de poesia

 

 

 

Adriana Moreira
Carolina Yokota
Letícia Fonseca
Nancy Hino
Teresa Raquel

 

Resumo
Este projeto tem como objetivo despertar o interesse dos alunos por textos poéticos, tanto em versos quanto em prosa. Expõe algumas das características que estruturam o texto poético, como as noções de rima, verso e estrofe, apresentações de poemas de autores destacados no cenário poético do Brasil, pesquisas e leituras de poemas, análises e interpretações, criação e escrita de poemas e recitação. O público alvo para esta oficina são alunos da quinta série, embora, mediante adaptações, ela possa vir a ser utilizada em outras séries.

 

Introdução

 

A elaboração desse pequeno projeto tem em vista dois objetivos: o primeiro, aqui não no sentido mais relevante, é fazer com que os alunos tenham um contato diferenciado com a poesia, de modo a fugir daqueles exercícios de dissecação da estrutura do poema ou mesmo daqueles questionários que alguns livros didáticos fazem questão de colocar logo após os poemas. A idéia é que se trabalhe com o aluno de uma maneira mais livre, mais lúdica e menos escolarizada, por meio de atividades em se tenha a possibilidade de fazer inúmeras leituras sem se preocupar com exercícios chatos que porventura poderiam vir depois delas; em que tente descobrir os significados e sentidos de um poema sem achar que é a professora que detém a única interpretação correta; ou ainda, em que se se possa escrever poemas sem que estes sejam revestidos pelo caráter da “lição para nota” ou “lição de casa”.

O segundo objetivo é fazer com que os alunos se sintam motivados a ler cada vez mais, e por conta própria, textos poéticos; procurar estimulá-los por meio do prazer que a leitura de poemas pode proporcionar; buscar poemas na biblioteca, na internet, nos sebos, nas livrarias, etc.

Nesse sentido, para não correr o risco de perder de vista tais objetivos, é bom ter sempre em mente algumas idéias sugeridas por Hélder Pinheiro:

Não se fixar, de modo absoluto, no que deu ou não deu certo em experiências anteriores; não buscar resultados imediatos e visíveis – nesse campo, há coisas sutis que nem sempre vemos; e ter constância no trabalho – é melhor ler diariamente um poema com seus alunos do que realizar um ‘festival de poesia' e no resto do ano ela ser esquecida.[1]

 

 

 

 

Sequência didática

Atividade 1 – Conversa ou pesquisa sobre poesia

 

A aula se inicia com uma conversa ou pesquisa sobre o que os alunos conhecem de poesia: gêneros, autores, títulos e formas de expressão. A interação professor-aluno deve ser bastante efetiva. A pesquisa pode ser feita durante a aula e, conforme os alunos relatam, o professor registra as respostas na lousa ao mesmo tempo em que explica e exemplifica as idéias levantadas.

O professor pode perguntar se alguém sabe algum poema de cor e se gostaria de recitá-lo. Algumas respostas esperadas dos alunos são as cantigas de roda, versinhos, poemas, textos poéticos, letras de música.

Durante esta pesquisa ou conversa, devemos definir poema e poesia e também trabalhar a função e difusão da poesia. Ou seja: o que ela significa na vida dos alunos, o que eles pensam sobre este gênero e como têm contato com ele. Nesta aula o professor também deverá trabalhar o conceito de linguagem poética, a exploração do sentido conotativo das palavras e a utilização das figuras de linguagem.

Para a aula seguinte, o professor deverá pedir para que os alunos pesquisem em suas casas formas poéticas, do dito popular, da quadrinha, ao soneto, à poesia contemporânea, com rimas, sem rimas.

 

 

Atividade 2 – Apresentação e discussão do material pesquisado

 

Os alunos apresentam o material pesquisado. É o momento em que o professor buscará relacionar os textos e informações trazidas pelos alunos, estabelecendo semelhanças e contrastes.

 

 

Atividade 3 – Figuras de linguagem

 

Através de exemplos dos próprios poemas, prossegue-se com o trabalho inicial de reconhecimento das modalidades poéticas, agora se detendo nas figuras de linguagem.

Entretanto, antes do trabalho com as figuras de linguagem, um rápido jogo de junção de palavras estranhas: juntar palavras estranhas semanticamente, com sentidos aparentemente afastados, para se descobrir o poder sugestivo e inventivo da linguagem, produzindo novos significados na experimentação. Por exemplo, “Amor é fogo”, “Inventa uma lua azul”, “Imensa é a missão dos teus cabelos”, “Só, palavra comprida”, “a vida parou ou foi o automóvel”, “o beijo não vem da boca”, “respiro o sol e adormeço enluarado”, “foi mais que solidão, foi um coice da noite”, “sou menino-passarinho com vontade de voar”, “apago estrelas”. O livro de Gianni Rodari, Gramática da fantasia, traz várias sugestões de trabalho-brincadeira dessa ordem.

 

 

Atividade 4 – A rima

 

Esta aula tem início com a apresentação de uma das características que estruturam o texto poético: a rima. Para introduzir o tema, o professor escreve uma palavra na lousa, por exemplo: papel e pede para que um aluno se levante e escreva outra palavra que rime com papel, por exemplo: mel. Este aluno deve escrever outra palavra, não necessariamente com a mesma rima, para que os outros alunos façam a rima. Teremos então algo assim:

Papel Semente Carro
Mel Dente Barro

Depois dessa introdução, o professor apresenta alguns poemas para discussão e leitura, por exemplo:

 

 

Soneto da Separação

 

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
De repente, não mais que de repente
Fez-se da vida uma aventura errante.

 

(Vinícius de Morais)

 

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa)

É interessante mencionar que antes da invenção da imprensa, a rima tinha um papel importante porque permitia a memorização mais fácil dos versos. Como a música, o poema requer uma seqüência de sons e que se acompanhe uma cadência rítmica na leitura. O ideal é que não se haja regras fixas para a formação do ritmo e que ele apenas flua para uma boa significação.

 

No poema de Bandeira que segue abaixo, a intencionalidade do poeta agiu dando um encadeamento leve e contínuo, como as ondas do oceano, e tornando dinâmica a cadência rítmica do poema. Isso acontece porque os sons se alternam e se sucedem, estabelecendo ao mesmo tempo a intensidade (forte/fraco) e a aceleração (lento/rápido) dos versos. O mais importante aqui é fazer o aluno perceber que, geralmente, o bom poema apresenta um ritmo agradável à leitura.

É interessante fazê-los ler também o poema “Ritmo” de Mário Quintana, atentando para a repetição das estruturas e deixá-los perceber que isso sugere os sons da vassoura, da escova e da roupa sendo lavada.

 

 

A onda

 

a onda anda
a onde anda
a onda?
a onda anda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda anda

 

(Manuel Bandeira)

 

Ritmo

Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco

Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes

No arroio a lavadeira bate a roupa
bate a roupa
bate a roupa
até que enfim
se desenrola
toda a corda

e o mundo gira imóvel
como um pião

(Mário Quintana)

 

Atividade 5 – Verso e estrofe

 

Esta aula privilegia a apresentação dos conceitos de verso e estrofe. É interessante esclarecer neste momento que cada linha do poema constitui um verso e o conjunto deles que, em geral, apresenta um sentido completo, formam uma estrofe.

O verso livre pode ser abordado como aquele que possui leis próprias, sem um ritmo predeterminado ou predefinido, no qual a metrificação obedece a um padrão mais livre, seguindo a sensibilidade do poeta e permitindo uma série de efeitos especiais não anteriormente experimentados pela poesia tradicional.

Um jogo interessante para um primeiro contato com uma estrutura semelhante é o “Cadáver Esquisito” que os escritores surrealistas praticavam como uma espécie de “escrita automática”. Uma folha em branco é passada de aluno para aluno e cada um escreve o que quiser numa linha. É importante que, quando um escreve, o seguinte não veja o que foi escrito. Assim, cada um que escreve dobra o papel de cima para baixo para que a folha vá enrolando e escondendo as frases. As frases soltas, o contraste da conexão de uma com a outra, a ausência de rima (os versos brancos) e a formação lúdica do texto em grupo criam uma atmosfera que lembra a criação poética. Após o exercício, a leitura em voz alta do texto e a diferenciação com um soneto, por exemplo, podem auxiliar no entendimento. Em seguida, sugere-se a leitura do poema “Os ombros suportam o mundo” – em versos livres – para que os alunos verifiquem se há semelhanças com o texto criado.

 

 

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)

 

Atividade 6 – “Poemas concretos”

 

Nesta aula inicia-se o trabalho com poemas concretos. Para introduzir o tema, o professor pedirá aos alunos que elaborem um poema “maluco”, lançando a proposta como um desafio. Pedir para que eles criem algo totalmente novo, inusitado, que deixem perplexos aqueles que forem ler o poema.

Depois da apresentação dos poemas criados pelos alunos, o professor expõe temas criados pelos concretistas e comenta o porquê dos poemas serem apresentados dessa forma. Como, por exemplo, expor a idéia de ruptura com o modo convencional de se escrever poesia, inserindo imagens e dispondo as palavras de maneira inesperada.

 

 

Atividade 7 – Leitura em voz alta

 

Nesta aula, é possível explorar os diversos modos de leitura em voz alta de um poema. Inicialmente, os alunos, que podem estar reunidos em grupos ou não, receberão um poema. É possível distribuir poemas diferentes; no entanto, a atividade talvez fique mais interessante se eles forem iguais, pois assim a distinção de uma leitura para outra ficará mais contrastante. A escolha do poema dependerá do professor, lembrando sempre que, nesse caso, será melhor selecionar poemas de modalidades diversas e que alcancem a sensibilidade das crianças.

Depois disso, o professor exporá algumas maneiras diferentes de ler um poema e pedirá que os alunos escolham uma delas (eles podem até inventar outro jeito). Se quiser, o professor poderá realizar um pequeno sorteio para definir a distribuição dos modos de leitura. Algumas sugestões são: gritando, falando grosso (grave), falando fino (agudo), bocejando, gargalhando, destacando as sílabas, falando de maneira suave, de maneira zangada, cochichando, etc.

Para finalizar, os alunos escolherão o modo que mais “combine” com o poema e, caso se opte por algum poema de Augusto de Campos, poderão ouvir a leitura feita pelo próprio poeta (há um CD que acompanha o livro Viva vaia).

 

 

Atividade 8 – Seleção, leitura em voz alta e discussão em grupo de um poema

 

A atividade estará voltada a um trabalho mais sistemático com a leitura. Primeiramente, em duplas ou no máximo em trios, os alunos deverão escolher, dentre alguns livros de poesia que o professor selecionará anteriormente, aquele que mais os atrair. Realizadas as escolhas dos livros, o professor pedirá que o grupo selecione um poema que achar mais interessante.

A idéia central é que os alunos tenham a possibilidade de ler vários poemas e que possam discutir entre si até chegarem a um consenso quanto ao poema. Depois disso, o aluno ou o grupo, podendo fazer uma espécie de jogral, poderá ler o poema escolhido. A cada leitura, o professor pode estimular alguns comentários por parte dos alunos, questionando a respeito do porquê da escolha, se os outros grupos também gostaram, qual a parte que mais chamou a atenção, etc.

Para finalizar, a classe poderá eleger o poema mais interessante (que decerto será eleito em razão do modo de abordagem dos alunos).

 

 

Atividade 9 – Composição coletiva de um poema

 

Os alunos deverão se reunir em grupos de 4 a 5 alunos. Cada aluno deverá escrever, em um pedaço de papel, uma palavra. Pode ser uma palavra que eles achem bonita pela sua sonoridade, pelo seu significado, que traga alguma lembrança boa, etc. O grupo colocará as palavras em um envelope, que deve ser trocado com outro grupo. Cada integrante do grupo, após a leitura das palavras recebidas do outro grupo, tentará escrever um poema em que todas as palavras sejam utilizadas.

No final, os alunos que desejarem, poderão fazer a leitura dos poemas realizados.

 

 

Atividade 10 – Criação individual de poemas

 

Após todo o trabalho com os diversos tipos de poemas, o contato com livros e as atividades já realizadas em sala de aula, os alunos devem, nesse momento, escrever seus próprios poemas.

Para isso, o professor deverá orientar que cada aluno escreva, em folhas separadas, um ou mais poemas. Nesse processo é fundamental que o professor percorra a classe relembrando aos alunos os conceitos já estudados. Deve fazer isso de forma que esses conceitos possam ser utilizados efetivamente na criação de cada aluno, mas sem que isso se torne luma camisa-de-força para a criação.

Nessa fase, o professor deverá ser solicitado para ajudar a criar rimas, a verificar a extensão das estrofes e até mesmo a ler os poemas para ver se “estão ficando bons”.

Os alunos devem ter toda a liberdade para escolher o tipo de poema: poderão criar um poema concreto, um poema rimado, um poema com versos brancos, etc.

O professor deverá participar ativamente de toda essa aula. Deve percorrer a sala passando de carteira em carteira para ver como andam os trabalhos, deve ir lendo as criações em seu processo de construção, ajudar os alunos quando for solicitado e o mais importante: não deve interferir nos trabalhos se não for convidado a isso. É essencial que os alunos sintam liberdade para criar.

Pelo menos um poema deve ser criado por cada aluno. Depois de pronto o texto, os alunos poderão ilustrar seus poemas com desenhos ou colagens, mas isso só pode ser permitido após o término do texto, para que os alunos não se dispersem da atividade principal. As ilustrações ou colagens também não devem exceder a aula (ou uma aula dobrada) dedicada a essa atividade.

Ao final da aula as crianças deverão entregar os poemas produzidos para o professor.

Fora da sala de aula o professor deverá corrigir os eventuais erros de português dos poemas.

 

 

Atividade 11 - Leitura dos poemas criados pelos alunos

 

Nesta aula o professor distribuirá os poemas corrigidos. Após a distribuição, deve avisar aos alunos que essa será uma aula de leitura dos poemas produzidos.

O professor deve dar aproximadamente quinze minutos para que os alunos leiam seus poemas em voz baixa e individualmente e decidam o melhor meio de fazer a leitura para o grupo. Nessa fase o professor pode ajudar os alunos lembrando-os de que os poemas devem ser lidos com o encadeamento dos versos.

Depois de prontos para começarem a ler, o professor pode dividir a leitura pelos temas dos poemas. Depois disso inicia-se a leitura. Caso haja tempo, depois da leitura individual de todos os poemas, pode ser feito algum jogral com poema produzido pelos alunos.

Após essas leituras, os alunos podem comentar sobre os poemas que mais gostaram e o professor pode chamar a atenção para algum ponto interessante da produção ou da leitura. É muito importante uma discussão ao final dessa aula para que os alunos possam ter, dos próprios colegas, um retorno de suas produções.

Ao final da atividade, o professor deve recolher novamente os poemas e deve pedir aos alunos que tragam, para a próxima aula, cola, tesoura, fita crepe e outros materiais usados em colagens.

 

 

Atividade 12 - Organização de um varal de poesia

 

Nessa aula, que encerra a Oficina de Poesia, os alunos irão, com a ajuda do professor, organizar um varal para a exposição de seus trabalhos.

O professor deve trazer para a sala de aula alguns metros de barbante que serão usados para pendurar as folhas com os poemas. O varal deve ser organizado de forma parecida com um varal para a secagem de roupas.

Nesse momento, as crianças devem se organizar para decidirem o melhor lugar da sala para pendurar o varal com os poemas e colam seus poemas no barbante trazido pelo professor.

Depois da colagem, o professor, com ajuda das crianças, prega o varal na parede escolhida. Também em conjunto, limpam e reorganizam a sala. Assim, é possível convidar a diretoria da escola, outros professores ou até mesmo outras classes da escola. A exposição fica a critério de cada professor e deve depender da disponibilidade de horários, do apoio do corpo diretivo e de outros fatores que envolvem a realização de eventos na escola.

 

 

Notas

[1] PINHEIRO, Hélder (org.). Poemas para crianças: reflexões, experiências, sugestões. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 2000, p. 30.

 

Referências bibliográficas

ANDRADE, C. Drummond de. Sentimento do mundo. Rio: Irmãos Pongetti, 1940.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

BERALDO, Alda. Trabalhando com Poesia. São Paulo: Ática, 1999. v.1

BERALDO, Alda. Trabalhando com Poesia. São Paulo: Ática, 1999. v.2

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas / FFLCH – USP, 1996.

MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas. Rio de Janeiro: Sabiá, 1946.

PAIXÃO, Fernando. O que é Poesia. São Paulo: Brasiliense, 1988.

PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1986.

PIGNATARI, Décio. O que é Comunicação Poética. São Paulo: Brasiliense, 1991.

PINHEIRO, Hélder (org.). Poemas para crianças: reflexões, experiências, sugestões. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2000.

QUINTANA, Mário. Lili inventa o mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. [trad.]. São Paulo: Summus, 1982.
 
    
Segunda, 01 Junho 2009 00:00

A poesia marginal dos anos 70

 

 Mariana Bruno Chaves
Mariana Vitale T. da Silva
Norival Leme Junior

 

Resumo
Este projeto se propõe a trazer para a escola uma abordagem experimental da poesia, o que é amplamente possibilitado pela “poesia marginal” dos anos 70 no Brasil. Essa poesia é arte-ação-pensamento, e só mesmo uma vivência possibilita seu entendimento.

 

Introdução

O assunto escolhido para a elaboração do projeto foi poesia, com enfoque nos poetas marginais dos anos 70. A leitura poética não encontra lugar muito confortável nas práticas escola, além de parecer levantar uma barreira mística em torno de si, que a afasta dos alunos e dos leitores em geral.

Em princípio, o termo literatura marginal encontra um correlato direto na literatura atual, na qual se destacam nomes como Ferrez (Capão Pecado), Paulo Lins (Cidade de Deus), o poeta Sergio Vaz (Sarau Cooperifa), entre outros. A literatura marginal, da qual extraímos o projeto, é, contudo, representada por Cacaso, Paulo Leminski, Ana Cristina César, já falecidos, e, entre outros, Francisco Alvim, Chacal, que está em plena atividade com o C.E.P. (Centro de Experimentação Poética).

A diferença entre esses dois períodos homônimos começa na questão social, que repercute diretamente em suas respectivas literaturas. A geração da década de 70[1] eram, em sua maioria, de classe média, com boa formação acadêmica e tinham experiências culturais fora do mercado editorial formal, o qual censuravam. Logo, tiveram a necessidade de se autopublicarem – foram conhecidos também como geração mimeógrafo. Já nossos contemporâneos deste início de século XXI são de baixa renda e emergem com uma linguagem própria da periferia – com suas gírias, ortografia e assuntos, como violência policial.

Contudo, o recorte feito para este projeto limita-se aos poetas marginais da geração 70 e pode ser aplicado tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental II. Esse recorte levou em conta o falto de ser a poesia de 70 de alta qualidade estética e, ao mesmo tempo, no interior de uma cultura pop e de contestação, o que representa um fator de identidade com o jovem, uma espécie de contestador por natureza nessa etapa da vida.

Trabalhar com poesia não é algo comum na rotina de uma escola – fato constatado nos estágios realizados em sala de aula e nas OCNEM, que chamam a atenção para isso –, pois lida-se com dificuldades de interpretação, abstração, ambigüidade, consequentemente impedindo às vezes a fruição plena do poema e o interesse do jovem.

A escolha pela poesia tem caráter declaradamente ideológico, pois acreditamos que não haja imparcialidade nos conteúdos e abordagens dentro e fora da sala de aula. E também por comungarmos da visão de Antonio Candido quando diz:

“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”[2].  

Acreditando no caráter de formação da literatura e na importância da arte para a formação do indivíduo, vemos no trabalho com a poesia um viés para um projeto que englobe competências lingüísticas sem, no entanto, ficar restrito a elas: como ampliação do repertório, aguçamento da sensibilidade, compreensão e reconhecimento do gênero, bem como sua avaliação crítica.

Contudo, antes de qualquer tipo de análise, faz-se necessário o primeiro e fundamental contato com o poema, que é a leitura desinteressada, mesmo sem reconhecê-lo enquanto gênero. Depois do contato visual e da leitura, serão propostas discussões sobre o que é poesia, sobre os poemas a serem trabalhados, a relação de poesia e espaço e por fim a escolha de poemas pelos próprios alunos para serem divulgados pela escola.

Para a elaboração e desenvolvimento deste projeto, pautamo-nos em algumas referências bibliográficas e em nossas percepções advindas das aulas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, dos estágios realizados e, claramente, de nossa formação. As referências teóricas mais explícitas constam na bibliografia deste projeto, e acreditamos serem necessárias para o professor que pretenda aplicá-lo.

  

Sequência didática

Atividade 1 - Placas pela escola

Para o primeiro contato com o gênero, sugerimos que a primeira atividade aconteça ao longo de uma semana e se dê fora da sala de aula.

Para isso, o professor selecionará alguns poemas marginais – aqueles que acredita instigarem mais os alunos – e preparará placas com esses poemas escritos, as quais serão distribuídas nos diferentes espaços da escola.

Essas placas podem ser feitas dos mais diversos materiais – madeira, papelão, plástico –, de acordo com o que o professor tiver disponível; os poemas podem ser impressos, escritos à mão ou colados. O interessante é que as placas chamem a atenção e os poemas fiquem em sua forma original. Quanto aos lugares a serem penduradas as placas, sugerimos que sejam também inusitados (portas de banheiro, teto, chão, espelho) e que normalmente não sejam utilizados para colar cartazes.

O objetivo dessa atividade é que os alunos vejam essas placas e leiam os poemas durante a semana, sem saber que é uma atividade da aula de literatura e, até mesmo, que se trata de poemas. Assim, na primeira aula de desenvolvimento do projeto, a maioria dos alunos já terá tido um contato com os poemas.

Enquanto as placas estiverem penduradas pela escola, é possível que os alunos interajam com elas, escrevendo, rabiscando, desenhando. Essas intervenções são bem-vindas e não deverão ser proibidas, pois poderão ser usadas no trabalho em sala de aula.

Haja vista a subjetividade da leitura e as diferentes formas de recepção dos textos, esta primeira atividade mostra-se essencial, pois a leitura e a fruição do poema ocorrerão, em um primeiro momento, sem a intervenção ou indução do professor.

 

Atividade 2 – O que é poesia?

Depois de as placas ficarem penduradas pela escola durante uma semana, o professor as recolhe e inicia o trabalho com o gênero em sala de aula.

A primeira atividade proposta tem como base a discussão “o que é poesia?”. Para dar início a essa discussão, o professor apresentará para os alunos o poema Anoitecer[3], de Raimundo Correia – poema este que se encaixa nos moldes tradicionais de rima, métrica, ritmo –, e o poema Mas, de Francisco Alvim . A partir dessas leituras inicia-se a discussão, com a pergunta “qual dos dois é poesia?”. Desta pergunta, a discussão pode tomar diversos rumos, mas a intenção é que o professor seja o mediador e paute as discussões em temas centrais e que proporcionem reflexões como: o que é arte; o que é bonito; quem decide o que é poesia/arte; para que serve a poesia, etc. Para fomentar as argumentações, o professor pode utilizar o poema Sem budismo, de Paulo Leminski, deixando, assim, um gancho para a atividade seguinte.

A discussão proposta nesta atividade não visa determinar conceitos ou dar respostas aos alunos, o objetivo é fazer com que os alunos percebam o alcance das questões e ampliem suas visões, quebrando, assim, alguns paradigmas e construindo outros. Dessa forma, o professor estará preparando os alunos para a recepção de um gênero, de uma estética amparada em diferentes parâmetros.

 

  

 

Atividade 3 – Placas na sala de aula

 

Com base nas discussões surgidas na atividade anterior, o professor trará para a sala de aula as placas com os poemas, que provavelmente já foram vistas pelos alunos. Desse modo, o professor faz a leitura dos poemas com os alunos e os discute com eles, sempre se baseando na proposta da atividade anterior.

Neste momento, caso as placas contenham intervenções dos alunos, o professor aproveita para também analisá-las, questionando o tipo de intervenção e sugerindo que os alunos pensem sobre o porquê de cada intervenção em determinada placa.

Com isso, o professor contextualiza os poemas, introduzindo a poesia marginal e seus autores mais conhecidos no meio literário. Aqui caberá a distinção entre a poesia marginal da geração de 70, cujos poemas estão sendo trabalhados, e a poesia marginal produzida nos dias de hoje. Também é o momento de ser discutida a poética dos autores marginais, seus temas e possíveis leituras, ressaltando-se sempre o gênero poesia. É possível que se façam comparações entre as poesias marginais e outros gêneros de poesia para que os alunos percebam suas características e sejam capazes de reconhecer o gênero que estão trabalhando. Se a atividade for realizada no ensino médio, é provável que os alunos consigam apreender as diferenças entre os gêneros poéticos e suas modalidades e peculiaridades históricas.

A apresentação das poesias marginais é parte essencial do desenvolvimento deste projeto, por isso é importante que os alunos sintam-se à vontade e participem da aula. Para isso, o professor pode utilizar estratégias de leitura em grupo (todos lerem, por exemplo) e também de fruição, possibilitando que os alunos façam seus comentários. Parte-se do princípio que a leitura de qualquer texto relaciona-se com a bagagem de vida dos alunos, e esta, por ser diferenciada, acarretará em distintas formas de receber a leitura. Logo, é importante que o professor permita os comentários, despindo-se de seus preconceitos.

 

Atividade 4 - Placas: da sala de aula para a escola

Nesta etapa, propomos uma atividade que visa à apropriação do gênero por parte dos alunos. Inicialmente, não haveria a sugestão de produção de texto, mas, caso ela ocorra espontaneamente, pode ser incorporada à atividade.

A proposta é que se formem grupos em sala de aula e o professor forneça aos alunos diversos livros de poesia marginal (ter acesso aos livros é fundamental, xerox só em último caso). Então, em conjunto, os alunos fariam uma seleção de poemas para serem colocados nas placas e espalhados pela escola por uma semana. No caso de haver alunos que se sintam inspirados em escrever um poema para virar placa, esta será exposta juntamente com as outras.

Esta atividade pode ser conduzida de diversas maneiras: a turma pode trabalhar com apenas um poeta; cada grupo pode escolher aleatoriamente, pode haver um rodízio de placas de diferentes turmas e até mesmo uma exposição de placas de poemas de alunos. A proposta é que os alunos pensem também no lugar onde as placas serão penduradas, relacionando, pois, o leitor (que varia de acordo com o local em que a placa se encontra) com a leitura que fará. Assim, os alunos poderão decidir sobre o que determinado tipo de leitor lerá em cada local.

Nesta etapa, canetas serão penduradas nas placas, indicando uma possível interferência dos leitores. Então, cada vez que as placas forem retiradas para que se coloquem outras, os poemas com as intervenções e possíveis produções de texto serão levados de volta para a turma que fez a seleção e analisados com a mediação do professor.

Com esta atividade propiciamos aos alunos não só o contato com o gênero, mas a apropriação deste. Também é possível trabalhar com os alunos questões sobre a recepção da leitura dos poemas por outros alunos e questões acerca da comunicação pela escrita. Além disso, no contexto escolar, a atividade propõe uma interação com o espaço físico da escola e, conseqüentemente, a apropriação desse espaço.

 

Notas

 

[1] A geração 70, embora de esquerda e contracultural, era popificada (cultura pop). Dela saiu a chamada poesia marginal, isso porque era marginal aos sistemas vigentes. Sistema editorial, sistema do cânone, sistema da vanguarda concreta. Os poetas e artistas dos anos 70 eram filhos espirituais da geração de 68, mas com ela já não se confundiam em termos de experiência vivida, apesar da identidade de valores.
 
[2] CANDIDO, Antonio. O direito à literatura.
 
[3] Todas as poesias citadas constam em anexo neste projeto.
 
 

 

Referências bibliográficas

 

BRITO, Antonio Carlos Ferreira de.

 

Não quero prosa. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.

CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. São Paulo, Ática, 1998.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia, 2000.

MORICONI, Ítalo. A poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro, Objetiva, 2002.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo, Cosac Naify, 2007.

 

* Este projeto contém arquivos anexos para download. Eles estão disponíveis logo abaixo, em "Baixar anexos".

   

 

 Mara Lucia Faria Costa 

 

Resumo
O projeto propõe um trabalho conjunto entre a literatura, as artes plásticas e a música, focalizando os aspectos sensoriais e sugestivos do Simbolismo na literatura e do Impressionismo na pintura e na música. Pela aproximação dessas artes – literatura, pintura e música, o objetivo é mostrar as diferentes maneiras pelas quais elas abordam os mesmos temas, as diferentes representações como forma de reação aos padrões de determinada época, e destacar a historicidade do movimento literário vinculado às artes e cultura de seu tempo. A escolha do Simbolismo deve-se ao fato de ter sido o berço do modernismo, ponto culminante dos estudos literários no ensino médio. A proposta baseia-se na característica de sugestão presente no Simbolismo e no Impressionismo, a ser desenvolvida em sete etapas, sempre com material e atividades diferentes, de acordo com o objetivo específico a cada uma.

 

Introdução

A escolha do tema deveu-se à necessidade de adequação aos conteúdos tratados naquele momento pela professora com a qual eu estava trabalhando no 2º semestre de 1999. Mostrou-se uma boa oportunidade para por em prática e testar algumas idéias que eu havia vinha pensando em desenvolver, e que eram as relações entre a literatura e outras artes. Para aquele momento, procedi a um recorte que privilegiava os aspectos sensoriais presentes no Simbolismo e no Impressionismo.

Aproximar a literatura da música e da pintura, mostrar de que maneira elas abordam os mesmos temas no período das manifestações artísticas simbolista e impressionista e como representam reações aos padrões de uma época eram os principais objetivos do projeto.

Passei a pesquisar as características mais marcantes dessas manifestações artísticas, para daí decidir o tipo de abordagem que iria adotar. Com a pesquisa sobre o Simbolismo, percebi que uma de suas características importantes era a sugestão. Pareceu-me, então, muito proveitoso usar a música e a pintura impressionista para desenvolver essa idéia, já que o poder de sugestão nessas formas de arte é muito mais perceptível ao aluno do que na literatura.

O Simbolismo fez na literatura o que o Impressionismo estava fazendo na música e na pintura, isto é, promoveu a diluição da figura, a perda dos contornos, a percepção individual da realidade, a influência da luz, o sonho, as imagens etéreas, o subjetivo, o momento, o conhecimento intuitivo. Tanto o Simbolismo quanto o Impressionismo registram a impressão que a realidade provoca no espírito do artista num momento particular, as sensações que ela provoca, ou seja, a realidade subjetiva. O homem se volta para as manifestações metafísicas e espirituais.

Ambos os movimentos são uma reação contra o materialismo e o cientificismo que imperavam na época, fins do século XIX. O artista parte em busca da essência do ser humano, daquilo que ele tem de mais profundo, o homem procura o seu verdadeiro “eu”, e não aquele eu do Romantismo – já desgastado e esvaziado – que se tornara superficial e piegas. Na literatura, a sugestão acontece de várias formas, uma delas se encontra na exploração da musicalidade, da sonoridade, por isso a forte presença de recursos sonoros como a aliteração e a assonância.

A minha proposta é, na verdade, uma tentativa de abordar e explorar as peculiaridades do movimento artístico ocorrido por volta de 1890 e de mostrar aos alunos que a literatura não é acontecimento desvinculado da realidade, ao contrário, ela transpõe as idéias e os anseios de uma época, o estado de espírito do homem diante de sua realidade.

O público-alvo deste projeto é o 2º ano do ensino médio da rede pública de ensino, em razão da programação curricular situar normalmente nesse estágio o estudo do Simbolismo.

O uso de materiais menos padronizados não era uma prática muito comum há dez anos – e não estou certa de que o seja hoje – por isso a minha preocupação em sugerir este projeto sobretudo para o ensino público, como alternativa ao livro didático e aos esquemas de estilo de época. Entretanto, não desejo cometer nenhuma injustiça com aqueles professores que já fazem uso desse tipo de abordagem e de material. Indico, portanto, este projeto para qualquer um que veja nele uma possibilidade de inovação.

Os mais diversos materiais podem ser usados para explorar um tema tão rico como este. Eu utilizei apenas algumas das muitas opções. Da pintura, tomei reproduções de telas[1] de Monet, Manet, Delacroix e Picasso; da música, o material sugerido é o “Bolero” de Ravel e uma música “visionária” de Aurio Corrà que reproduz o som do fundo do mar; da literatura, sugiro o soneto “A catedral” de Alphonsus Guimarães. Esse material será usado em sete etapas, as quais irei descrever mais adiante.

Este projeto de regência foi desenvolvido em sete etapas, sendo que em cada uma delas, tanto o material quanto a atividade seriam diferentes da anterior. Cada etapa desenvolve uma competência diferente; sendo assim, ao final da atividade terão sido trabalhadas a escrita, a leitura, a apreciação crítica e a oralidade, dentre outras competências. Somente na última etapa é que os alunos irão produzir um trabalho escrito, que servirá como forma de avaliação da eficácia da metodologia proposta.

Para que a atividade seja mais produtiva, sugiro que os alunos estejam dispostos de maneira a formarem um grande círculo na sala de aula, para que todos possam ver e ouvir uns aos outros. Essa disposição permitirá também que todos possam manusear e ver de perto as gravuras que serão utilizadas, para que se sintam mais à vontade e mais familiarizados com elas.

De um modo geral a proposta foi muito bem aceita pelos alunos. Ficou-me a impressão de que eles estão sempre dispostos a realizar atividades que permitam a sua participação de forma ativa. Acho que esse é o caminho para promover um interesse maior pela matéria, e conseqüentemente pelas aulas. Entretanto não posso deixar de reconhecer que um trabalho como este demanda uma disponibilidade muito grande de tempo para organizá-lo, o que na maioria das vezes é o que o professar menos tem.

 

Sequência didática

Atividade 1 – Apreciação das obras

Esta atividade consiste, como o próprio nome indica, na apreciação de várias gravuras de Monet e Manet com o intuito de fazer com que os alunos possam identificar algumas características comuns a todas as gravuras. Em virtude de serem classes numerosas, achei conveniente preparar dez gravuras para essa etapa, ou seja, uma gravura para cada três a quatro alunos. Sendo assim, várias gravuras estariam circulando, o que dificultaria a dispersão, pois todos os alunos estariam com alguma gravura. As gravuras vão circulando até que todos as tenham apreciado. Feito isso, começamos a discutir a impressões de cada aluno. Nas minhas turmas, o começo foi difícil, pois todos tinham medo de falar “bobagem”, mas aos poucos eles foram se soltando e expondo as suas opiniões. Nesse ponto é importante lembrar que o professor deve explicar aos alunos que não há nessa atividade respostas certas ou erradas, pois o que vale é a opinião de cada um, e não uma opinião coletiva padronizada. Cada um tem liberdade para dizer o que achou das gravuras, o que elas representam e qual acreditam ter sido a intenção do artista quando as pintou. Nessa etapa, o que vale é a reflexão, a formação de uma opinião própria a respeito do que viu e sentiu, a troca de opiniões entre colegas.

Vários são os aspectos que podem nesse momento ser explorados, como a precisão dos contornos, o uso das cores, os motivos retratados, a presença da luz, o ângulo de observação, o local, a hora, o movimento etc.
 

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Claude Monet — Boulevard des Capucines — 1873.

É uma atividade que deve ser conduzida com calma para dar tempo aos alunos de se adaptarem à proposta de trabalho. Depois da exposição de todos os alunos, o professor irá então falar um pouco a respeito do Impressionismo: a técnica empregada pelos artistas, os aspectos mais importantes do movimento, como registrar o instantâneo, a captação do movimento, a diluição dos contornos, a fusão do sujeito com o ambiente, a mutação das paisagens e a valorização da cor, entre outras características. Isso ajudará os alunos a compreenderem melhor as gravuras que apreciaram pois elas passarão a fazer mais sentido.

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Claude Monet – Ponte Japonesa —1899.

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Claude Monet: O Jargim de Vetheuil.

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Claude Monet: "Les Saules" – 1880.

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Edouard Manet - Bar de Folies-Berg — 1882.

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Edouard Manet — Na praia — 1873.

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Edouard Manet — Le Déjeuner sur l'Herbe — 1862-63.

 

Atividade 2 – Análise do traço

A proposta desta atividade é fazer uma análise comparativa do traço da escola impressionista com os traços da escola anterior e da posterior a ela, para assim perceber o processo de indefinição das formas que culminou com as propostas modernas no Brasil.

Para esta atividade preparei gravuras de Delacroix, do movimento anterior, e gravuras de Picasso, do movimento posterior ao Impressionismo. Assim, munidos de um conhecimento prévio, os alunos puderam observar o processo de indefinição do traço e relacioná-lo ao estado de espírito do artista de cada movimento. Essa atividade fluiu melhor porque agora os alunos sabiam o que procurar. Ficava mais fácil perceber de que forma a arte reflete os padrões e conceitos de uma época, e a luta que trava com as sociedades para se libertar deles. É possível também notar como cada movimento artístico representa um avanço nesse processo de libertação.

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Eugène Delacroix: A Morte de Sardanapal — 1827.

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Eugène Delacroix — Frightened Horse.

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Pablo Picasso: Don Quixote.

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Pablo Picasso: Woman with a Blue Hat.

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Pablo Picasso: Femme Ecrivant.

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Pablo Picasso: Retrato de Dora Maar.

 

Atividade 3 – Apreciação da música

O objetivo desta atividade é mostrar que o processo de reação contra os padrões de uma época é muito amplo e pode ocorrer em todas as manifestações artísticas, inclusive na música. Para demonstrar isso, os alunos escutaram uma música clássica de Maurice Ravel, o “Bolero”. Nessa obra é possível perceber o uso de diferentes acordes, que sugerem uma instabilidade emocional. É como se o autor estivesse vivenciando diferentes emoções no momento da composição da música. Esse bolero foge muito do padrão das músicas clássicas da época, nas quais a linearidade e a uniformidade eram privilegiadas.

Depois de ouvir a música, a classe discutiu a respeito das impressões que tiveram dela, as sensações e o estado de espírito que sugeria, os quais lhes pareceram então semelhantes aos sugeridos pelas gravuras de Monet e Manet – um mesmo sentimento inquietante.

 

Atividade 4 – Leitura e análise do soneto

O poema escolhido para essa atividade foi “A catedral”, de Alphonsus de Guimaraens. Essa escolha não foi aleatória. Pelo contrário, deu-se em função da incrível semelhança existente entre a catedral sugerida nesse poema e a catedral das gravuras de Monet, utilizadas nas outras atividades. A seguir apresento o poema:
 
A catedral
 
Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
               Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
               Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
               “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
O astro glorioso seque a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
               Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
               Recebe a benção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
               “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
               Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
               Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
               “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
               Vem açoitar a rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
               Como um astro que já morreu.
E o sino geme em lúgubres responsos:
               “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”
 
(GUIMARAENS, A. de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1985.)
 
Esse poema permitiu um trabalho bastante amplo, pois vários são os aspectos que nele podem ser abordados, como as figuras de linguagem, a inversão da ordem direta das frases, as analogias, o vocabulário, a idéia de cor e luz, enfim, muitas são as possibilidades de trabalho.
 
Optei por fazer várias leituras antes de começar a atividade. Primeiro cada aluno leu um trecho do poema, depois um aluno o leu inteiro e só por último que a leitura foi feita por mim. A primeira leitura serviu para os alunos elencarem o vocabulário desconhecido. A segunda leitura foi feita por estrofe, para que os alunos pudessem entender o que o poeta dizia em cada uma delas, assim as dúvidas iam sendo sanadas à medida que apareciam. Já a terceira leitura apontou os recursos utilizados pelo autor e a sua intenção com isso. A maioria dos recursos presentes no poema eram totalmente novos para os alunos, que ainda não conseguiam reconhecer as figuras de linguagem. Procurei me deter então um pouco mais nessa etapa, para preencher uma lacuna de conteúdo, uma vez que as figuras são ponto da 7ª. série.

O poema se tornou mais fácil para os alunos, embora eles tenham deixado bem claro que não gostam desse tipo de texto.

Em todas as leituras, assim como em todas as etapas do trabalho, os alunos foram sempre incentivados a falar e participar. Não foram feitas censuras a nenhum tipo de manifestação dos alunos, fato esse que parece ter sido importante para o bom andamento das atividades desenvolvidas em sala de aula.

Provavelmente essa é a etapa que mais tempo e trabalho requer, pois, em relação à música e às artes plásticas, fica evidente a resistência dos alunos à poesia. Entretanto é sempre bom ter um novo desafio pela frente.

 

Atividade 5 – A Catedral de Oensen 

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Esse é o nome da catedral que Monet retratou em uma seqüência de três telas. Cada uma dessas telas, representa a mesma catedral, observada em diferentes momentos do dia, sob ângulos próximos. Fica claro que o artista quis registrar como a sua percepção da catedral variou de acordo com o momento do dia, da quantidade de luz, do seu estado de espírito. 

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Esta atividade visa medir a sensibilidade dos alunos e descobrir se eles conseguem estabelecer uma relação entre as gravuras e o poema. Para isso oferecem-se duas gravuras da catedral aos alunos. Uma retrata a catedral ao amanhecer, exatamente como o poema faz; a outra retrata a catedral ao anoitecer, também como faz o poema. As gravuras devem circular na roda (já que desde o início do projeto é assim que os alunos estão dispostos) para que possam ver de perto os seus detalhes. Em seguida, o professor começa a discutir com os alunos a situação de produção das gravuras, ou seja, o momento do dia em que ele foi pintado e como isso se evidencia; por último, o professor inquire sobre a relação entre as gravuras e o soneto. É bem provável que os alunos não tenham nenhum tipo de dificuldade em perceber e justificar essa relação.

 

Atividade 6 – Música visionária

Sem dúvida esta é a etapa que mais agrada aos alunos, pois é quando fazem uma “viagem” ao seu interior. Em silêncio e de olhos fechados, os alunos ouvem a música e se deixam invadir pelas sensações que ela desperta. A música escolhida é instrumental e reproduz os sons do fundo do mar. É como se déssemos um profundo mergulho no oceano, cujos sons sugerem um estado de paz e calma interior. Os alunos permanem absolutamente quietos e concentrados durante a execução da música e ao final todos estão calmos e relaxados – prontos para fazerem a última atividade.

 

Atividade 7 – Redação

O objetivo da redação é que os alunos possam expressar verbalmente e por escrito as sensações que a música provocou neles – o que não é fácil. Entretanto, ambos os grupos demonstraram ter assimilado bem a atividade proposta e realizaram redações bem interessantes. Alguns tiveram a impressão de estar exatamente no fundo do mar e outros tiveram impressões totalmente diferentes.

 

Notas

[1] Essas gravuras faziam parte de um portfólio contendo reproduções de obras importantes de grandes artistas da história. O portfólio foi distribuído às escolas da rede pública estadual de São Paulo pelo governo, mas parece que em grande parte das escolas esse material não teve aproveitamento, pelo menos foi essa a informação que os estagiários da minha turma de licenciatura de 1999 trouxeram.

 

Referências bibliográficas

ANOS DE 6UERRA 1937-1945. Catálogo da exposição de Pablo Picasso no MASP. São Paulo, 1999.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura Brasileira. 36a. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil; Era Realista Era de Transição. 4ª ed. São Paulo: Global Editora, 1997. v. 4. A literatura no Brasil.

GÊNIOS DA PINTURA. São Paulo: Abril Cultural, v. 5, 1969.

MEGALE, Heitor, MATSUOKA, Marilena. Literatura e linguagem. 4ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. v. 4.

TUFANO, Douglas. Estudos de língua e literatura. São Paulo: Moderna, 1979. v. 4.
 
   
Segunda, 01 Junho 2009 00:00

Por um outro ensino

 

Dirceu Villa de Siqueira Leite
João Batista Vieira Jr.

 

Resumo
Projeto desenvolvido, ou melhor, vivido. Nada que o deixe estanque no passado: traz o conteúdo corporificado, mostra prática significativa e significada, respeita as pessoas do processo educativo – e não os protocolos pertrificados – sem ingenuidade e consumismo pedagógico; por um “outro ensino” tira da cadeira e incomoda com sutileza, propõe ação viva e descortina a escola da fumaça reabrindo suas janelas de cintilação.

*

O telefone sem fio. Essa é uma brincadeira em que dizemos umas palavras no seu ouvido e você passa para outra pessoa, que, por sua vez, passará para outra que passará para outra etc., até que chegue ao fim e alguém diga em voz alta o que acha que ouviu. O resultado é quase sempre o mesmo: não sobrou nada do que havia no início.

Literatura tem sido uma coisa impenetrável para a maioria das pessoas porque é muito comum que elas pensem: “Preciso entender o que o autor quis dizer”, ou algo como “Preciso saber o que está por trás daquilo que ele diz”. O medo associado à incapacidade de compreender não deve ser desprezado.

O primeiro caso não põe em questão um escritor, pois um escritor nunca “quer dizer”; ou ele diz ou tudo está acabado, e talvez ele venda suas coisas e vá viver num retiro para pôr as idéias em ordem, talvez ele se torne um filósofo, pouco importa. O fato é que ele NÃO É um escritor.

O segundo caso nos apresenta uma metáfora? Não. Uma metáfora não esconde nada atrás, ela é o coração de uma verdade, uma síntese drástica, poupando o leitor de ficar lendo dúzias de linhas explicativas e tediosas, além de provocar o efeito de uma sensação. Há a alegoria, mas a alegoria ou se torna explícita por fazer uma coisa abstrata assumir vida como gente, ou se refina por processos de acumulação de significados combinados. Além do mais, faz parte do uso retórico inscrito num recorte cultural quase específico, e a maioria de leitores não especialistas não vai dar com esse tipo de coisa a toda hora (embora, segundo acreditamos, talvez fosse mais proveitoso que as pessoas passassem a ter outros hábitos de pensamento).

Ficamos surpresos que ninguém tenha se oferecido para prestar esclarecimentos tão simples; na verdade, não. Há muitas pessoas ocupadas com crítica literária e novelos de lã.

Há uma figura de linguagem chamada elipse, que serve à ironia seus melhores pratos, e deve fazer sentido pela ausência. Mas a elipse não é uma idiotice de simplesmente se suprimir qualquer coisa. Há a intenção deliberada de um efeito de cumplicidade quando o sentido completo é enfim restituído. A ironia exige que o leitor compareça com seu cérebro ou nada pode ser feito, nem pelo poema, nem pelo leitor. Infelizmente, a literatura continua no esquema do telefone sem fio entre a crítica e o público, para exumação ou exegese, o que é, convenhamos, chato pra danar. Mas experimentamos a ironia em cima de classes de aula da zona Leste, uma delas totalmente desacreditada pelos professores.

A ironia é, talvez em alguns exemplos encontráveis, o tipo de literatura mais enroscado que existe. Entender os poemas de Jules Laforgue, alguns de T.S.Eliot, e as elegias de Propércio são desafios para quem tem um nível respeitável de leitura. Entender esses poemas é fundamental para fruí-los; se você não entende, não acha graça. Há aqueles em que a ironia simplesmente desanca o personagem tratado, e Corbière, autor francês do fim do século dezenove, é mestre nisso, e chamava Victor Hugo de garde nationale épique, e Vigny, inventor da larme écrite.

O caso é que levamos um poema pré-fabricado a partir de um parágrafo de prosa, que resultou num epigrama irônico. A nossa intenção era verificar, com base num trabalho que os alunos entregariam ao fim da aula, a competência que tinham em decifrar e desenvolver a ironia e, mais além, se se davam conta das diferenças entre poesia e prosa, deixando de lado as evidências gritantes da forma no papel (coisa contestada por poetas há mais de um século) e rima (que precisa ter algum sentido para acontecer, desmerecida como enfeite, vista como bijuteria).

Há uma vantagem em se trabalhar com textos pequenos com os alunos: você não mata ninguém de sono nem tédio. Não se deve, entretanto, usar material de segunda-mão; apenas textos bons o bastante para valerem o seu tempo e o dos alunos na sala de aula. Sem adaptações, paráfrases, e todo esse gênero de enrolação. Kafka tem uma história que não passa de dez linhas e vale toda uma discussão a respeito do que é um conto, e, no limite, uma narrativa. Epigramas são pequenos e chamativos, porque, em geral, ou são malignos ou gnômicos, ou seja, formulares, sentenciosos sobre vida & morte, e tudo que preenche esse pequeno espaço.

É preferível um capítulo, dois ou três, do Quixote, do que uma adaptação inteira. O Quixote é perfeitamente legível se se usarem alguns capítulos em separado, que concluam uma aventura, trazendo o que é importante, todo o estilo de Cervantes, que, assim como Rabelais uns séculos antes, estava plasmando a prosa moderna, e se serve de todos os gêneros antigos, desde o idílio pastoral em versos (exatamente como se lê em Virgílio) até o comentário, em prosa. O primeiro capítulo de São Bernardo, de Graciliano Ramos, funciona para uma discussão em torno desse pacto de credibilidade entre escritor e leitor que é a verossimilhança; e assim por diante. O fundamental é usar os próprios autores, sem intermediários.

(Um pequeno parênteses. Está claro, pela proposta, que estamos lidando com uma situação descabelada de emergência. As políticas governamentais para a educação arruinaram a escola, de parâmetros e currículos aos salários dos professores e os prédios. Ninguém recomenda fiapos de texto numa sociedade que tenha um mínimo de brio. Além do mais, trata-se de criar uma situação em que o texto literário seja novamente alvo de interesse, e acreditamos que isso possa ser feito por meio de amostras, ao menos inicialmente).

*

De qualquer forma, foi a primeira coisa que apresentamos a eles, após perguntarmos se gostavam de poesia. A maioria, como todos sabem, simplesmente não responde e fica de muxoxo. Há apenas dois tipos de alunos que respondem: os que fazem o gênero interessado e os que gostam de uma confusão. Todos os outros, nesse momento, não existem. Os da confusão em geral dizem que poesia é um saco, ou despistam com uma piada; os espertos vão logo dizendo um nome ou outro, tipo Carlos Drummond, Vinicius, etc, e querem mostrar que têm alguma espécie de familiaridade com o assunto, que você não está vindo com novidade. Esses dois se envolvem, e deve-se aproveitá-los igualmente no desenvolvimento da aula, porque é evidente que os dois têm coisas interessantes a dizer, e o mais livremente possível. O professor não deve ser uma estátua de gelo, e deve saber que pode rir do que realmente achar gozado.

Pedimos que um de cada tipo lesse um dos dois textos.[1] A constatação do óbvio foi pedida: qual é a diferença entre esses dois textos? Partimos do básico-básico. Essa experiência se repetiu em outras classes, com resultados similares, embora as diferenças sejam de altíssima importância. Todos chegaram à conclusão de que uma coisa era uma poesia, um poema e o outro era um texto, uma descrição, uma narração, ou, mais raramente, prosa. Quando perguntamos por quê, responderam que era porque um deles estava de uma forma e o outro, de outra. Não disseram que um dos textos estava em verso, mas sugeriram que a disposição de um era a de poesia, e alguns acharam bem esquisito o fato de que não havia rimas.

Quer dizer que se esse texto não estivesse recortado nas linhas não era um poema? Essa pergunta gerou certo embaraço nos alunos, que se viram numa enrascada em que eles mesmos tinham se metido. Pedimos para que notassem qual dos textos tinha menos palavras (em uma das salas isso foi notado antes da nossa sugestão, por uma garota) e por que eles achavam que isso acontecia, já que os dois textos queriam dizer o mesmo. Daí, concluíram que o de menos palavras era o poema, pois tinha de ser mais direto. Essa resposta nos deixou muito satisfeitos. Muitos chegaram mesmo a perceber que estruturas típicas da prosa, como a introdução ao assunto (Era uma moça, etc.) não ocorriam no texto poético.

Reunimos as idéias que apresentaram e demonstramos como haviam chegado ao cerne da coisa. Preferimos usar uma ou outra palavra que não conhecessem (e que se sentiram bastante à vontade para perguntar) como concisão, do que só falar o que já fizesse parte do repertório deles. Evidentemente, não se explica nada para eles como se explicaria algo para gente do primeiro ano de Letras. Constatamos que alunos tidos como bagunceiros, desordeiros ou malandros costumam ter alguma verve para ler poesia; evidentemente, não vão demonstrar essas qualidades se se der para os infelizes ler Bilac.

A leitura em voz alta é importante, e é necessário pedir isso aos alunos. Nossa experiência tem demonstrado que, se o contexto criado pelo professor for interessante, eles até mesmo se oferecem. Uma porção de alunos teve leitura acima do que esperávamos.

Nossa proposta de aula foi inseri-los no contexto próprio da literatura. De que modo? Um daqueles que inscrevemos no início do projeto. É impossível lidar com textos clássicos se o professor acha que é preciso caçar características de estilo de época num dado poema — na maioria das vezes, ruim, usado apenas porque parece fácil para a tarefa de pinçar características. Todos os alunos com quem conversamos assinalaram esse como um dos principais motivos do desinteresse pelas matérias escolares em geral: a impessoalidade completa dos assuntos tratados numa aula torna a coisa de ridícula a insuportável.

Um rapaz, considerado pivô do inferno dos professores veio, ao fim da aula (sobre parnasianismo!), nos mostrar um caderno onde escreve os poemas de amor mais deslavados do mundo, numa linguagem que ninguém conseguiria imaginar. O detalhe: nós nem sequer pedimos que os eventuais poetas se apresentassem. Os alunos respondem mecanicamente a uma aula mecânica. Mas isso realmente não significa que estão mortos do pescoço para cima. Muito pelo contrário.

 

*

 

Partimos da discussão sobre o que é poesia para uma discussão sobre a charmosa expressão arte pela arte. O intuito era ver até que ponto eles haviam entendido a alcunha pela qual o parnasianismo ficou conhecido e o quanto de liberdade e irreverência podia levá-los a considerar a expressão uma tolice. A maioria, condicionada por anos de escola acéfala, buscava reproduzir os argumentos que já tinha ouvido ou lido sobre o assunto. Deixamos bem claro que não ligávamos nada para certo e errado, mas que ligávamos bastante para o esforço pessoal de reflexão. Não queríamos a definição escolar tacanha, porque achamos que os alunos podiam ser mais espertos que os autores dos livros didáticos. E o que há nos livros é imprestável: a maioria dos adolescentes repetia arte pela arte sem ter idéia do que dizia, o que ficou patente no momento em que perguntamos que raio de coisa eles entendiam com aquilo. Desconversavam, riam, cobriam a cara ou repetiam o bordão.

Quando dissemos para ignorar o que pudesse já estar escrito e dessem a opinião que tinham a respeito, ouvimos várias opiniões interessantes: “Não, é arte pelo dinheiro”, “Não acho que isso faz sentido, arte pela arte”, “Ah, eles queriam um novo estilo”, “Tenho uma pergunta: por que eles, no Renascimento, quando vão pintar as partes íntimas sempre fazem uma coisa reta? Não tem ninguém que pintou mesmo?”, “O que acontece, na arte pela arte, é que os caras estavam isolados do mundo”. Alguns não conseguem mesmo evitar a contradição: dizem que arte pela arte significa que o autor se preocupa em “expressar” algo; mas a maioria costuma afirmar, em todas as salas em que foi apresentada a aula, que pouco importa o que o autor diz, importa a arte.

Importa a arte, querendo demonstrar que a arte vem separada do conteúdo. Então existe uma forma sem nada dentro, um vazio completo? Esse é outro momento em que os alunos titubeiam. Toda afirmação peremptória que soltam e é retomada pelo professor os faz ficar com um pé atrás. Evidentemente, quando se trata de arte, tanto o absoluto quanto o relativo estão distribuídos aleatoriamente, impossíveis de se determinar por regras ou um método de decorar. Os alunos param e pensam. Um aluno desconfia da armadilha e reclama: “Mas então o que é arte pela arte?” O professor pode muito bem dizer: “Pois é, nem eu sei.” Isso funciona porque os alunos querem que o suplício acabe e venha logo a revelação; você os deixa mais aflitos. Funciona também porque, em parte, é verdade.

Nossa atitude foi mostrar que a expressão foi criada por um filósofo (Victor Cousin, 1792-1867), pressionado, como todo crítico, entre o abrir a boca e dizer uma tolice ou ficar com ela fechada e parecer um tolo: escolheu a primeira alternativa e cunhou o termo que tenta dar contorno a uma geração de artistas que dá de ombros ao que acontece na sociedade inimiga e cuida de fabricar enfeitinhos artificiais, bem do jeito que Bilac fez questão de explicar em Profissão de Fé (na verdade, poema colado do francês Théophile Gautier, de um poema de vinte anos antes que lançara o parnasianismo na matriz, i.é., na França).

Para se ter uma idéia de como a coisa é idêntica, basta ver que Gautier tem um livro com o título sugestivo de Émaux et Camées, Esmaltes e Camafeus. Explicamos tudo isso aos alunos, inclusive para que ficasse clara a filiação da escola poética, que deve tudo aos franceses. Para concluir, foi lido o poema Profissão de Fé, mas não do modo soporífero com que costumam ser executados os poemas em sala de aula; as leituras burocráticas dos poemas (juntamente com a empostação declamatória) precisam ser banidas das escolas em respeito aos ouvidos alheios. Até no Pai Nosso diário é possível encontrar mais fervor e boa-vontade.

A leitura foi acompanhada de esclarecimentos marginais, dando conta rapidamente do vocabulário incompreensível para as massas mais um veloz atendimento quanto a referências mitológicas: isso não interfere na leitura. A quem acha que sim, basta assistir ao Cyrano de Bérgerac com Depardieu para ver como é possível inserir comentários no meio dos versos sem que você pareça uma versão ambulante da Delta-Larousse.

Lá pela vigésima estrofe um aluno boceja; boceje você também e verá que todos vão rir e prestar atenção até o fim. A cada passo onde os motivos principais da escola apareciam, chamava-se a atenção dos alunos para o fato, e foi dito mais de uma vez que o poema resumia, como numa carta de intenções, aquilo que viria a ser o movimento inteiro.

Após a leitura, muitos alunos com os quais conversamos sabiam refazer todo o trajeto dentro de suas próprias cabeças. Por quê? Porque o poema lida com associações, e não com uma elaboração abstrata e duvidosa que tenta lançar de jato uma característica no vácuo. Tudo que fica perdido na abstração de uma fórmula vazia será perdido também na cabeça do aluno; uma imagem eloqüente, jamais. E a serena deusa Forma ficou guardada na cabeça deles sendo aporrinhada por uma multidão de bárbaros (românticos medievalistas inspirados deprimidos satânicos etc), mostrando como Bilac apresentava sua versão helenística da arte e sua aversão por inspirações divinas – o que atinge o ridículo quando Coelho Neto, furioso com o tempo que passava para ele e sua turma parnasiana, se retira furiosamente de uma sala onde se debatia a nova literatura dizendo, ofendido: “Sou o último dos Helenos!”

 

*

A verificação, em todos os casos das aulas que demos, foi realizada como produção textual orientada dos alunos, ou gravação em fita cassete de entrevistas, com perguntas e respostas ou debates sobre tópicos. No caso da aula sobre o que é poesia, pedimos gentilmente que os alunos escrevessem, em grupo em algumas classes, sozinhos em outras, um poema a partir de texto previamente elaborado (tratava-se de verificar o efeito da comparação entre o parágrafo de Maupassant, de O Colar de Diamantes, e o epigrama que extraímos de lá). Os alunos deviam notar uma porção de coisas para produzir algo que prestasse, como:

 

a) a ironia, como dissemos, é elíptica; da mesma fonte da ironia vem a poesia, vêm os sonhos, etc. Freud falou sobre o tema, Ezra Pound também e mais um monte de gente;

b) o verso tem exigências próprias, tanto de prosódia quanto de “acabamento”, isto é, um verso não é uma linha qualquer recortada;

c) um poema, por ser estruturalmente diverso de um texto em prosa, e assim uma estrofe de um parágrafo, demanda que algumas palavras sejam mandadas embora na transposição da prosa para o poema, mas sem danificar o sentido.

Isso é o mínimo para se transpor a prosa para o verso. Não estamos implicando aqui que os alunos formalizassem assim sua tarefa. É normal que um jogador de futebol não saiba descrever matematicamente a parábola que seu chute precisa descrever para encobrir um goleiro adiantado na grande área; mas também é evidente que ele pode realizar isso a despeito de uma improvável erudição numérica. O professor deve medir suas expectativas calculando o alcance de suas conduções e explicações. Um aluno dificilmente adivinha algo, mas é possível conduzi-lo a conclusões que não seríamos capazes de imaginar apenas figurando em nossa mente cheia de preconceitos um adolescente em completo desmazelo e má-vontade. Tanto foi que saímos surpresos, e com boa surpresa. Vamos dar alguns exemplos. O texto básico era este:

Ele falava o tempo todo, com autoridade, de Beethoven e outros clássicos, e gostava se der fotografado junto de pianos e belos instrumentos. Dizia que era um músico dos bons, mas apenas tocava pratos na bandinha da Guarda Civil.

Texto que imita o estilo seco de composição de Maupassant, só que simplificado. A maior parte das composições dos alunos reconheceu com sucesso o modo de transposição, a linguagem econômica do poema, o desenho prosódico de um verso irônico. Uma minoria ficou aquém e a outra, além. O caso daqueles que ficaram além é curioso. Eles não têm nenhuma cultura literária (em alguns é possível perceber um estilo bem aproximado do rap), mas enriqueceram o texto com coisas que não estavam nele, demonstrando uma compreensão bastante impressionante, seja do verso, seja da ambiência maledicente do texto. Por exemplo:

Depressivo e autoritário falava de Beethoven
Julgava-se bom músico,
Gostava de exibir seus belos instrumentos
Mas na banda civil tocava apenas pratos.

 

O verso consegue o efeito de compressão das informações do original em prosa por meio da enunciação direta – vai para o espaço o início “Ele falava o tempo todo”, que é uma elaboração bastante prosaica, em favor da definição seca “Depressivo e autoritário”, invenção dos dois alunos a partir dos dados. A opção foi um quarteto, que é uma forma comum da poesia, digamos, convencional. Eles também não fugiram muito ao esquema do texto de partida, como se pode observar, mas demonstraram captar a intenção da aula de um modo completo, e a intenção da aula era bastante abrangente: eliminar preconceitos formais na definição de poesia e estabelecer as diferenças possíveis com a prosa. Outro exemplo:

 

falava o tempo todo
de Beethoven e gostava de ser fotografado
junto de belos instrumentos

músico e dos bons,
mas apenas tocava pratos
na bandinha da guarda civil

 

que desdobra o texto em dois tercetos, curiosamente, uma forma também muito praticada não só pela tradição ibérica, mas também por toda a latinidade. Menos inventivo no significado, esse poeminha ousa mais na forma. Como muitos poemas modernos, ignora as maiúsculas no início do verso; corta as informações do texto em prosa de uma maneira mais sincopada, distante, observando entretanto as mesmas leis que comentamos a respeito do anterior. Agora, um bastante divertido:

 

Falava o tempo todo
com autoridade de Beethoven
fotografados junto de pianos e instrumentos
músico dos bons, dizia ele ser
tocava pratos na cozinha da guarda civil.

 

Em que pese o português estropiado, vejam só isto: “tocava pratos na cozinha da guarda civil”! É incrível até onde essa dupla levou a ironia no poema, ultrapassando a concepção original e misturando duas noções numa única palavra, “pratos”, que deu um desfecho hilário para o infeliz personagem. Quanto ao português, se estivessem familiarizados com usos mais sutis de linguagem, como os dois pontos e o travessão (que poderia ter sido utilizado com proveito na introdução do terceiro verso), o problema estaria resolvido. É preciso ter em mente que entramos de sola numa classe que era considerada a baderna e o caos, uma classe levada através da neblina irrespirável dos livros didáticos. Mesmo assim, produziram estes textos que estamos mostrando. Esse último caso foi o único: ninguém mais transgrediu a esse ponto e com tal resultado as informações originais. Houve algumas modulações muito interessantes porém:

 

Beethoven era seu senhor
e desejava ser como ele
posando junto aos grandes instrumentos
de um verdadeiro músico.
Bom sonhador, isso é o que ele era
mas a Guarda Civil
era a sua orquestra.

 

que, devemos concordar, é bastante apreciável, apesar de não ter o mesmo pique de impacto dos outros. Remaneja com razoável liberdade os temas do texto, e dá um desfecho que, se não é tão surpreendente quanto o anterior, reforça a ironia por sugerir que o próprio personagem se engana a respeito de onde toca. A palavra “orquestra” é cuidadosamente disposta no último verso para o impacto do ridículo, prática usual entre poetas satíricos. É um poema muito bem arranjado, e os versos são divertidos. E com desfecho semelhante, temos este:

 

Contava para todos
Com a autoridade de poucos
Gostava de ser fotografado
Ao lado de instrumentos caros.

Não tinha muito dom para a música
Mas tinha seu lugar separado
Na bandinha civil
Onde era seu reinado.

Muito bem realizado do ponto de vista do verso, principalmente na segunda estrofe. Fica claro que compôs o poema tendo por base o jeito como se escreve um rap, com frases diretas, abruptas e misturando referências. A recorrência de mais uma forma comum aos brasileiros pela ascendência ibérica, os quartetos; e aqui, um dos únicos a tentar o recurso da rima – que soa bastante natural – entre reinado e separado, e sabemos que é algo de ousadia, uma vez que a rima caiu de moda a ponto de ser considerada inaceitável por algumas pessoas, incluindo poetas. Mas estamos no reino do rap.

Esse aluno também remanejou os dados do texto original, sentindo-se à vontade para escrever algo que considerasse mais seu. Cada verso tem, digamos, sua marca pessoal, a idéia que lhe deu o texto de partida. O curioso é que é um dos alunos considerados mais indisciplinados da sala. Ele se mostrou muito interessado na aula, embora, como toda sua classe e todas as outras classes em que demos as nossas caras, estivesse um tanto cético no início e tirasse barato de tudo que era dito. Aos poucos, chamado a dar sua opinião em diversas questões, seu comportamento mudou e suas intervenções, embora sempre irônicas, se focalizaram no tema da aula. Ajudou muito, confessando que os poemas parnasianos são de lascar, e brincando com as figuras que distribuímos para a sala.

 

*

 

Este foi outro ponto importante. As figuras eram reproduções de alta qualidade de quadros que compreendiam um leque de Giotto a Mondrian, e pedimos que dissessem se viam neles algo que pudessem chamar arte pela arte. Esse tipo de atividade pode ser aplicado a várias finalidades, e é uma variação de bolso da visita a museu; além disso, você divide a classe em grupo e deixa que façam a algazarra que quiserem. O professor passa de grupo em grupo para ver no que está dando. Uma garota ficou muito satisfeita de reconhecer o Nascimento de Vênus, de Botticelli; um grupo estranhou o quadro de Piet Mondrian que representa vários retratos por meio de algumas linhas paralelas e perpendiculares, no estilo que, com reduções ao essencial, seria caracteristicamente o seu – mas se deliciaram com a explicação e se puseram a querer encontrar mais e mais rostos no meio das linhas. Vários grupos gostaram de um quadro de Brueghel, o Embate entre o Carnaval e a Quaresma, onde metade dos personagens se dedica aos prazeres e metade ao comedimento, e no primeiro plano há um gordo sobre um barril se esbaldando de bebidas e carnes, como se estivesse sobre um cavalo, num duelo contra um magrelo descarnado, com poucos apetrechos, representando a frugalidade. Um garoto, vendo o gordo num barril, com uma enorme saqueira, disse: “Ah, esse é o Baco, não é?”, não era, mas o palpite foi muito bom. Outros tinham As Três Graças de Rafael Sanzio – que rendeu muitas piadas porque as três mulheres estão completamente nuas e praticamente abraçadas –, quadros de Munch, Portinari, Chagall, etc.

À nossa questão de arte pela arte, responderiam desta maneira: os que achassem que estavam em posse de um quadro que se encaixasse na definição, ergueriam para toda a classe. Curiosamente, na primeira em que se perguntou isso os alunos ergueram, sem pensar, todos os quadros modernos. “Vocês perceberam que só os quadros modernos foram levantados?” Eles associavam arte pela arte com uma linguagem que consideravam incompreensível, e mulheres nuas todo mundo entende, não entende? Isso foi algo com o que nos deparamos de surpresa, sem nunca imaginar que seria essa a reação, ou que ela pudesse ter algum padrão reconhecível. Discutimos então questões de técnica em pintura, como o estilo dos pintores e suas intenções, e essa discussão encaminhou muito bem as coisas para a conclusão que já apresentaremos.

Vamos considerar mais dois poemas:

Tocava apenas pratos na bandinha,
mas gostava de ser fotografado,
cheio de gracinhas
posava ao lado de pianos e
belos instrumentos da vizinha.

 

Esse merece menção em separado por causa da troca de sentido, além das rimas. Primeiro, as alunas resolveram inverter a ordem do poema, com um efeito muito interessante, deslocando a piada final para outra parte do texto, que reelaboraram para dar destaque a uma apimentada brincadeira sexual, que fica clara no duplo sentido do último verso (notar a rima de gracinhas e vizinha). Rimos muito com esse poema, e, portanto, o consideramos muito bom. Para concluir, vamos ver um que recriou toda a estrutura proposta:

 

Como pode?
Como pode um simples homem
tocador de pratos de uma bandinha
Da guarda civil, se achar músico dos bons?
Como
Como pode?
Como pode tirar fotos junto a
belos pianos e instrumentos,
Falar de Beethoven e outros?
Como pode?
Mas...
Será que ele pode?
Se ele pode, quem não pode?

que investe em outro tipo de construção, com a interrogativa repetida, coisa muito comum nos poemas em latim de Catulo, século I a.C. Evidente que os alunos não sabiam disso, mas essas estruturas permeiam canções populares, e todo o verso posterior. O poema se alonga e ganha um aspecto mais moderno, mais coloquial.

Houve quem nos devolvesse a folha com um texto em prosa; quem aumentasse brutalmente o texto, desconsiderando qualquer coisa que tivéssemos dito no início da aula e discutido com eles, a partir de suas próprias conclusões. Mas o importante a se reter aqui é o precedente. Parece-nos inteiramente indecente dizer que essas pessoas não têm interesse nenhum, seja na escola, na literatura, nos textos clássicos. Verificamos que conheciam quadros clássicos, que estão abertos à arte moderna que não compreendem, que sua espontaneidade interpretativa é, às vezes, muito mais sagaz que a de críticos entupidos de informação e por isso mesmo cegos para a evidência. São alunos considerados casos perdidos e que nos entregam poemas bem feitos, que nos vêm mostrar cadernos cheios de poemas, que vêm conversar conosco sobre os mais variados assuntos (quadrinhos, heavy metal, rap, Cuba, exclusão social), que reconhecem figuras mitológicas nos quadros de cinco séculos atrás.

Damos um exemplo muito específico: a um garoto que, sabe-se lá o porquê, estava sentado distante de todos em absoluto silêncio, renitente a participar da aula, foi entregue, sem identificação, a figura da Sibila de Michelangelo, dos afrescos da Capela Sistina. Dirceu se sentou ao lado do garoto e disse: “Vamos lá, você vai me dizer qualquer coisa que tenha encontrado neste quadro, não precisa dizer pra classe toda.” E o rapaz disse, então: “Ela está assustada com algo que percebe que está vindo”. Para qualquer pessoa que conheça a obra isso terá feito todo o sentido. A Sibila diz o futuro, e Michelangelo a representou com o rosto voltado para algo que só ela vê, daí o susto. Foi o que se disse a ele, o quadro foi explicado e foi possível ver sua satisfação; depois, entregou o poema e pediu que fosse lido, queria saber se o que tinha feito era bom. Um aluno que seria classificado de apático em outro esquema de aula.

A exemplo dessa aula, pudemos testar mais algumas do nosso estoque, lembrando que não estávamos à vontade para fazermos o que quiséssemos, uma vez que era imperativo dar curso ao programa que a professora estava seguindo. Demos aulas também sobre o Simbolismo, e tivemos mais outras surpresas.

Partimos de Baudelaire, das Correspondências, que os alunos receberam bem. Comentamos o ligeiro problema da tradução de Ivan Junqueira, que traduz a expressão forêts de symboles por bosque de segredos, em respeito a uma rima que precisava manter; mas isso lhe custou uma das primeiras aparições da palavra que caracterizaria o movimento posterior a Baudelaire e que o toma como ponto de partida (o manifesto é de Jean Moréas). Lemos Rimbaud, do polêmico poema Vénus Anadyomène.

Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.

Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;

A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa...

Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus
E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.

 

(Tradução de Ivo Barroso)

 

Que os alunos, muito espertos, tendo recebido uma cópia bilíngüe, resolveram ouvir o texto no original. Depois foi pedido que uma garota lesse o texto, exatamente no momento em que o coordenador pedagógico entrava na sala de aula. Ele recebeu a folha e sentou-se. A menina sentiu um desconforto diante do último verso, mas foi em frente corajosamente. O coordenador sorriu. Levamos à lousa o quadro de Botticelli, O Nascimento de Vênus, e pedimos para que comparassem.

Passou-se certo tempo, alguma discussão, até que perceberam que uma era o oposto evidente da outra. Botticelli nos oferece uma deusa, nascida do oceano, de frente para nós, de beleza impecável; Rimbaud lança diante de nós uma prostituta, erguida de uma banheira, de costas, com o corpo castigado, entre outras coisas, por uma úlcera no ânus.

Rejeição à sociedade rica e apodrecida da Europa, o desenho se faz da descrição do símbolo da derrocada, por paródia ao símbolo da beleza aos olhos da civilização. Disso partimos para o que aconteceu no Brasil, muito diferente, mas de matriz semelhante.

Um simbolista brasileiro, Cruz e Souza, explora brancos brilhantes, luzes cintilantes, etc. como lemos em Antífona; já se disse a grande besteira de que isso acontecia porque o homem era negro numa sociedade recém-saída do escravismo. Não ocorreu a esses críticos que todo branco ofuscante esmaece os contornos, dilui a marcação sólida da realidade e introduz a incerteza e o sonho (Camus muuuitos anos depois faria o personagem principal de O Estrangeiro matar por não conseguir ver, cego pela luz). Isso era meta básica dos que se chamavam simbolistas, desde Baudelaire, leitura assegurada de Cruz e Souza, que sustenta o mesmo ponto no poema citado, Antífona.

A aula foi concluída com a atividade de discussão sobre frases famosas ou palavras de ordem de, por assim dizer, “simbolistas”[2]. Utilizamos:

Antes de tudo, a música. Paul Verlaine

É preciso ser absolutamente moderno. Arthur Rimbaud

Os pássaros estão ébrios de ficar entre a espuma desconhecida e os céus. Stéphane Mallarmé

Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Charles Baudelaire

O desregramento de todos os sentidos. Arthur Rimbaud

Sou o império ao fim da decadência. Paul Verlaine

E as respostas que foram recebidas são, entre outras: “Para você sentir alguma coisa não tem regra nenhuma”, “Estava acabando aquela expressão da perfeição, eles estão buscando a perfeição em bens materiais, e que tudo que era perfeito antigamente tinha defeito na verdade”, “Ele está na dúvida se quer descobrir alguma coisa nova ou se fica no céu, aquela coisa maravilhosa. Ele não sabe para onde ele vai.”

A última resposta foi para o verso de Mallarmé, e foi dada por uma garota de dezesseis anos. Ela não havia lido o poema, não conhecia Mallarmé, mas sua resposta foi a única que se sobressaiu diante da dos outros que analisavam o mesmo verso – aliás, propositadamente difícil; queríamos saber até onde era possível contar com a perspicácia deles. O verso, do poema Brise Marine, “Brisa Marinha”, é a resposta de Mallarmé ao poema de Baudelaire que compara o poeta ao albatroz, pois, igual à ave, o poeta voa belamente nas alturas, mas aterrissa ridiculamente entre os homens. Para Mallarmé, o poeta está, na verdade, no perfeito limite, na dúvida entre experimentar uma coisa ou outra. A menina, diante de apenas um verso, foi capaz de reconstruir o sentido inicial, ainda que a palavra “ébrio” confundisse um pouco as coisas. Ela estava tímida no grupo, e só falou quando se desconfiou que seu silêncio era revelador e se perguntou a ela o que achava.

 

*

 

No mundo do ensino, a situação é desamparadora, o governo é horripilante nos três níveis do executivo, os salários nos dão medo, etc., mas é impossível ficar indiferente diante das possibilidades que os adolescentes oferecem de aprendizado. Eles respondem com simpatia e inteligência SE e unicamente SE forem instados a isso.

Vários deles fazem coisas ligadas a alguma arte: tocam no conjunto da igreja e têm seu próprio conjunto, estudam e desenham histórias em quadrinhos (encontramos três com enorme talento e um já quase profissional), escrevem poemas com alguma ambição, apreciam moda, e estavam animados com uma radionovela que gravavam com base em Dom Casmurro (descontada a insatisfação por não poderem adaptar os diálogos) etc. Como esperamos ter deixado mais do que claro, eles nos surpreenderam a toda aula, porque eram, além de tudo, considerados casos perdidos, e reagiram muito bem às nossas propostas.

Eles próprios formalizam a queixa do desinteresse que vai do diretor aos professores (excluindo o coordenador pedagógico, que faz as coisas funcionarem num certo nível e sabe o que está fazendo). A professora senta diante deles, lê o Faraco & Moura e manda que eles façam, de bico calado, o exercício da página tal. Isso não pode ser considerado aceitável, mesmo porque é prática comum na maioria dos colégios e desde há muito (quando estudávamos no colegial já se praticava essa lição de dormir).

É confortável não pôr o cérebro para trabalhar, e reclamar da preguiça dos alunos. É agradável esperar da oficialidade aquilo que se deve ensinar, e jamais questionar o modelo e os textos propostos pela sensaboria geral. O único problema é que esse é o meio mais seguro de garantir que a banalidade, a burrice, a incompreensão e outros derivados do método, sejam perpetuados sob a gentil alcunha de crise da educação.

 

Notas

 [1] O texto em prosa de Guy de Maupassant e o epigrama que foi feito a partir dele, e que será reproduzido mais adiante.

[2] Levaria muito espaço aqui discutir o problema dessas nomenclaturas viciadas. A história de literatura não deveria ser vista como um varal onde penduramos nomes com pregadores; deveria ser a comparação de linhagens estilísticas transnacionais.

  

Segunda, 01 Junho 2009 00:00

Número 4 - Apresentação

 

Este número da Revista MELP, online, está voltado para a publicação de projetos elaborados pelos alunos de Licenciatura da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa (MELP), da Faculdade de Educação da USP. São todos projetos voltados para classes de 6° ano ao Ensino Médio.

Nem todos os sete professores que ministram a disciplina de MELP trabalham com projetos; quando trabalham, introduzem particularidades ditadas por suas linhas de pesquisa, razão pela qual esta revista, por ora, publica projetos de uma só professora. Futuramente, quando novo número for dedicado a projetos da disciplina, esperamos receber produções de outras turmas.

Por ser uma revista que resulta do trabalho realizado no âmbito da Licenciatura, ela inevitavelmente articula docência, pesquisa e extensão, o tripé sobre o qual se posiciona a universidade.

Tematizar aqui a poesia não significa abandonar estudos da língua, uma vez que as formas de composição, o estilo e as escolhas lingüísticas são inerentes à reflexão sobre os gêneros. Ao contrário, a literatura, além das características intrínsecas a ela – aguçamento da sensibilidade, valores, fruição desinteressada, alimento para a alma, etc. – “leva a língua para onde quer”, como diz Umberto Eco. Ela cria identidade e comunidade, “mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo”, mas também a nossa “língua individual”.

A poesia é, pode-se dizer, o grau máximo de densidade poética e, talvez por se prestar menos explicitamente ao vínculo com a realidade imediata, é menos abordada enquanto gênero na escola, e tradicionalmente relegada a alguns procedimentos que visam a um aprendizado técnico, como métrica e rimas, sem conjugá-los à interpretação.

Por fim, devo dizer que os cinco projetos sobre poesia aqui publicados foram coletados ao longo de uma década. Provavelmente, outros se perderam antes que pudéssemos organizar o nosso banco de projetos. Realizados em grupo em determinados semestres, contaram posteriormente com a ajuda de outros alunos para sua edição, cuja forma final foi dada por esta professora abaixo subscrita, e por Richard Marcello e Gabriela Rodella, alunos da pós-graduação.

Neide Luzia de Rezende 

 

Projeto na Licenciatura: a dupla dimensão

O trabalho com projetos tem sido uma constante no sistema escolar atual. Mas, a exemplo do que disse há dez anos (1996) Hernández, um de seus teóricos mais importantes, parece ter-se tornado uma fórmula, uma receita, não um heurístico, desprovido da carnadura que um projeto requer para ser potencializado: a “pedagogia de projetos” em voga hoje na área educacional, como forma de organizar o conteúdo a ensinar, ao ser transformado em fórmula, já não é capaz de propiciar o conhecimento. Em geral, o que se chama de projeto na escola é um esquema de projeto, em que se enunciam o tema, os objetivos, a justificativa, o cronograma, uma bibliografia, tudo organizado em uma, duas, três páginas no máximo, como se o “como fazer” fosse dominado por todos. É claro que é possível encontrar projetos fortes, bem feitos, bem orientados, com elaboração e condução realizadas com responsabilidade pelos profissionais na escola, mas estes constituem a exceção, não a regra. Em razão disso, a “moda” de projetos tornou-se malvista e para estes torcem o nariz aqueles que já consideram “pedagogos” e “pedagogia” cientistas e ciência de importância menor.

O projeto, no curso de Licenciatura, tal qual é concebido na concepção desta professora, deve se referir a uma experiência imaginada, e isso representa um primeiro obstáculo para a sua elaboração pelos alunos das minhas turmas. Como o professor e o licenciando não estão efetivamente desenvolvendo um trabalho real com os alunos na escola, não estão inseridos de fato no universo escolar e cientes do andamento e da rotina, o projeto parece tecer, pois, uma “abstração revolucionária”, como uma vez disse um aluno – ainda que esse aluno tenha um conhecimento de escola básica (que é um conjunto de referências formado por aquilo que guarda do passado, o que conhece do presente, as representações de escola que construiu e pelas quais se pauta, bem como ter para si uma concepção de língua e de seu ensino).

Portanto, tendo em vista esse contexto, ao elaborarmos um projeto para a escola nas aulas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, temos de levar em consideração ainda os elementos a seguir.

Uma concepção de projeto. A concepção de projeto na escola é adotada de Hernández (1996), ou seja, os alunos lêem o texto dele e o discutimos em sala, buscando adaptá-lo para o exercício escolar que estamos propondo. Em essência, o projeto, como proposto pelo autor espanhol, deve responder a uma necessidade da escola e a um interesse do professor, e todos – alunos e professores – aprendem; suas etapas podem ser revistas, planejando-se o conteúdo no tempo e antecipando-se os obstáculos; o percurso por um tema-problema favorece a análise, uma vez que se investiga para encontrar uma solução; busca-se sempre estabelecer relação entre a escola e o que acontece fora dela...

Relação do projeto com a disciplina. O projeto é, antes de tudo, um trabalho acadêmico, ou seja, trata-se de um instrumento de ensino e aprendizagem; portanto, deve responder – e talvez mais do que qualquer outro gênero na universidade, por suas características – àquela dupla dimensão: responder a uma prática social e a uma prática escolar. Disso segue-se que é necessário também verificar a que interesse da disciplina o projeto responde.

Na concepção do autor espanhol, o projeto é interdisciplinar, deve ser fruto de um trabalho em equipe e de responsabilidade da escola. Ora, ele se torna, na disciplina de Metodologia, um projeto de língua portuguesa, portanto espoliado de sua natureza interdisciplinar (se se considerar interdisciplinar aqui como uma inter-relação de disciplinas escolares); contudo, propomo-nos manter uma perspectiva interdisciplinar para que se preserve a essência dessa concepção de projeto, procurando estabelecer uma intrínseca relação entre os diferentes domínios do conhecimento e não uma relação exterior com as disciplinas escolares. Assim, ainda que reduzido a uma disciplina, ele guarda a interdisciplinaridade in nuce, o que permite uma abertura para questões mais amplas, suscitadas durante o desenvolvimento do trabalho.

Um ideal de projeto. Os estagiários de língua portuguesa raramente, pela situação do estágio no nosso contexto, têm a oportunidade de colocar em prática qualquer projeto realizado na Faculdade de Educação. O que fazem (e o que se propõe que façam) é observar e ouvir as necessidades apresentadas pelo professor da disciplina na escola, observar o perfil dos alunos e também suas dificuldades na matéria, além de buscar desenvolver um projeto que responda àquelas necessidades em parte reais, em parte supostas. Ao propormos o desenvolvimento em grupo de um projeto, é evidente que as intenções devem ser compartilhadas e as idéias, negociadas para que se transformem num tema comum. Quer dizer, aquelas necessidades que os estagiários identificaram, associadas a interesses deles por determinados temas, frutos de discussão no grupo, vão constituir um projeto, que decerto não é real, no sentido de se ater estritamente a determinada situação de determinada escola e de procurar dar uma resposta didática a isso; trata-se de partir dessa realidade como uma espécie de situação-síntese dos problemas que podem ser observados em outras situações escolares, distanciar-nos por meio da reflexão e da investigação capazes de revelar aspectos do real que muitas vezes não aparecem quando o observamos muito de perto e estamos mergulhados no universo em questão. Com base no vivido e observável, projeta-se uma realidade, da qual se procura imaginar, de certo modo ficcionalizando, os obstáculos, os problemas e suas possíveis resoluções. Trabalha-se com uma representação de escola e de projeto – o que de resto faz-se sempre, ainda que se acredite “retratar” a realidade escolar.

Ao se propor a elaboração de um projeto para a sala de aula, busca-se um “ideal de projeto” tanto em relação a sua composição quanto a seu conteúdo: ou seja, que ele tenha, do ponto de vista de sua estruturação, de sua organização formal interna uma extensão e profundidade que permitam visualizar um possível desenvolvimento, em suas diferentes partes (apresentação do tema, pressupostos teóricos e metodológicos, justificativa, objetivos, seqüência didática, mecanismos de avaliação...). No cotidiano escolar essa possibilidade – ou potencialidade – de desenvolvimento e previsão dos obstáculos acaba sendo difícil de ocorrer, uma vez que o tempo se transforma num obstáculo quase intransponível, devido à sobrecarga de trabalho que possuem os professores.

Dessa forma, escrever esses gêneros na universidade pressupõe resgatar esse tempo que a tarefa requer e pensar o trabalho à luz das teorias mobilizadas e das críticas levantadas, buscando repensar os problemas e propor soluções que não aparecem ainda ou aparecem de forma simplificada na prática cotidiana do professor, em geral desgastado pelo excesso de trabalho e desprovido do tempo necessário à reflexão e à mudança.

Aproveitar o ritmo da cultura universitária. A reflexão e a crítica têm um ritmo próprio; ir e voltar sobre o mesmo objeto buscando vê-lo sob ângulos diferentes exige tempo. O ato reflexivo e o crítico estão intimamente associados ao trabalho da escrita – como diz Walter Ong, a escrita permite que se estude. Há um tempo exigido pelo trabalho de leitura e um outro ainda maior exigido pela elaboração escrita. Na escola, parece já não haver esse tempo distendido que o estudo requer. Na fala dos professores, revela-se a ansiedade com a falta de tempo para tudo: cuidar da casa, dos filhos, do cônjuge, de tempo para ler, para preparar aulas, para fazer reuniões pedagógicas (muitas vezes o horário reservado a estas se transformam num surrupiado momento de descontração, quando se queixam dos alunos, da própria escola, se trocam receitas, se comercializam diferentes tipos de produto etc.). A escola não encontra tempo para realizar os seus projetos, só pode fazê-lo no ritmo que adotou, por isso não é de surpreender que o resultado sejam os esquemas desvitalizados, a falta de pesquisa e a dificuldade de escrita por parte dos professores. Por isso, realizar espécies de “projetos ideais” no curso de licenciatura é um modo de se oferecer à atividade o tempo que ela requer e que a universidade pode, em princípio, conceder.

Uma combinação da perspectiva de gênero e de projeto. Sugere-se que seja por meio de um ou mais gêneros que se faça a representação das necessidades supostas ou observadas na escola. Essa temática propicia um trânsito entre a escola e a sociedade, contudo aparecem temas de outra ordem que são igualmente redirecionados para essa perspectiva: é importante que haja no projeto a possibilidade de observar, na escola, por meio da língua, o funcionamento das práticas sociais. Como diz Bakhtin, os discursos respondem às variadas esferas das atividades presentes na sociedade.

Dessa forma, pode-se mobilizar diferentes gêneros discursivos, relativamente estáveis, de modo a serem reconhecidos e apropriados para a comunicação cotidiana. Permite, ademais, a elaboração de seqüências didáticas interessantes, nas quais se incluem atividades de leitura, de escrita, de análise lingüística, de saídas da escola para visitas a lugares de estudo, convites a profissionais de diferentes áreas, escritores etc.

Ter como perspectiva um destinatário para o trabalho. Ter em vista um leitor/interlocutor é essencial para direcioná-lo. Mais do que ser “aplicado” é importante que os autores dos projetos saibam que poderão ser lidos e que seus textos poderão gerar reflexões e outros textos. Como diz Umberto Eco, todo escritor, quando escreve, tem em mente um leitor, empírico ou virtual, e é para essa interlocução que o discurso se modaliza linguisticamente. No caso dos projetos, sua circulação e divulgação indicam quem será esse leitor: 1. os projetos mais bem acabados circularão entre os alunos do ano seguinte e poderão fecundar outros projetos (uma idéia parcial ou integralmente retomada em projeto diferente; uma proposta secundária que se torna principal; um aprofundamento do projeto original etc.); 2. uma seleção mais estrita dos projetos para inclusão nesta revista (antes, eram divulgados num site, já desatualizado, da disciplina), onde poderá ser acessado pelos alunos e, sobretudo, por professores; 3. possibilidade de apresentação dos projetos nas sessões de comunicação tanto dos Seminários de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, quanto da Semana de Educação, na FEUSP, que reúnem licenciandos, pedagogos e muitos professores da rede pública e particular.

Para concluir esta parte, gostaria de enfatizar que a escrita desses trabalhos leva à articulação da pesquisa e da prática na licenciatura, sendo essa prática uma representação da aula de língua portuguesa: busca-se recuperar uma natureza do projeto que tem desaparecido na escola, uma vez que o trabalho escolar promove um achatamento dos seus objetos, reduzindo-os a uma estrutura elementar e descarnada. Busca-se então no projeto realizado em sala de aula recuperar um modelo de projeto capaz de tornar mais aprofundado e efetivo o trabalho. 

  

Os projetos sobre poesia

A natureza histórica do poema se mostra imediatamente no fato de ser um texto que alguém escreveu e que alguém lê. Escrever e ler são atos que se sucedem e que são datáveis. São história. De outra perspectiva, o contrário também é certo. Enquanto escreve, o poeta não sabe como será seu poema; saberá quando, já terminado, o leia. O autor é o primeiro leitor de seu poema e com sua leitura se inicia uma série de interpretações e prazeres. Cada leitura produz um poema distinto. (…) O poema é uma virtualidade transhistórica que se atualiza na história, na leitura. Não há poema em si, mas em mim ou em ti. (...) Cada leitura é histórica e cada uma nega a história. As leituras passam, são história e, ao mesmo tempo, a transpassam, vão mais além dela.

(Octavio Paz, Os filhos do barro,  p. 472)


Na perspectiva metodológica decorrente do conceito de gêneros que adotamos, hoje disseminada pela adoção da teoria bakhtiniana[1] quase hegemônica no ensino, é inevitável que práticas sociais e práticas escolares se enredem. Nessa perspectiva, na aprendizagem dos conteúdos escolares pulsa a vida social. É desse modo que propomos aqui o trabalho com a poesia em sala de aula.

Se, como diz Octavio Paz, a poesia só se realiza pela leitura, esta é outra inevitabilidade com que nos defrontamos: na escola é necessário LER a poesia. É verdade que na cultura escolar do século XX, cada vez mais a poesia foi se adaptando, como, de resto, toda a literatura, a uma pretensa visão cientificista, e não é de admirar que “ensinar poesia” é ensinar procedimentos técnicos de composição. Tal representação do gênero se instalou poderosamente no imaginário de professores de português e de autores de livros didático. Entretanto, ultimamente, diante dos novos paradigmas de ensino de língua portuguesa, que privilegiam a construção do sentido, e das novas idéias pedagógicas, que enfatizam o pólo da aprendizagem, esse império tem sido questionado, embora na prática resista.

A construção do sentido e a ênfase no pólo da aprendizagem levam, portanto, a se privilegiar o aluno e, no caso da literatura, a leitura que ele faz do texto; ou seja, não se trata de tomar como objeto de ensino uma tradição literária, um conjunto de textos, mas ver o que essa tradição e esse conjunto de textos – selecionados em função de um determinado objetivo de ensino – propiciaria para a aprendizagem (o que supõe ver aí também uma concepção de aprendizagem: talvez um lugar para o jovem e para o seu presente na história da cultura).

Adotando esses pressupostos, consideramos que a leitura literária é então fundamental para a construção do sentido e do sujeito. Como diz ainda Paz, a leitura de um só poema nos revelará com maior certeza do que qualquer investigação histórica e filológica o que é toda a poesia”. (O arco e a lira, p. 50)

 É claro que falar em “leitura literária” não significa abandonar o estudo do texto; significa, antes de mais nada, que para se falar de um texto é preciso lê-lo, e que esse ler e falar sobre se assentam em determinados protocolos requeridos pelos próprios textos, como nos leva a pensar nossa idéia de gênero. Assim, ler poesia não é como ler uma notícia de jornal (aliás, é a isso que remete belissimamente o poeta Manuel Bandeira em seu “Poema tirado de uma notícia de jornal”): há um tempo e uma vivência que o poema exige ao apresentar imagens que não revelam todo o sentido de imediato, ao mesmo tempo em que, novamente citando Paz, “a experiência do poema – seu deleite através da leitura ou da recitação – também ostenta uma desconcertante pluralidade e heterogeneidade”, ou seja, por força das necessidades de ensino, voltadas para o coletivo, ocorre na sala de aula uma negociação de sentido que considera as referências comuns do grupo de estudantes (a “comunidade interpretativa”, no dizer de Stanley Fish[2]) e as interpretações críticas já convencionalizadas trazidas pelo professor, mas não deve tampouco ignorar as sugestões individuais que o poema propicia, que são, em suma, a essência de sua existência.

Para uns, o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Os jovens leem versos para ajudá-los a expressar ou conhecer seus sentimentos, como se só no poema as confusas, pressentidas facções do amor, do heroísmo ou da sensualidade pudessem contemplar-se com nitidez. Cada leitor busca algo no poema. E não é raro que o encontre: já o levava dentro”. (ibidem)

*

Os projetos aqui apresentados possuíam estruturações as mais diversas, tendo em vista que aos grupos de licenciandos que os confeccionaram não era oferecida uma estrutura muito estrita de composição; esperava-se que explicitassem tema, objetivos, nível de ensino, metodologia e atividades (conteúdo, objetivos, estratégias, desenvolvimento e avaliação). Os quatro primeiros itens ficaram, nesta edição final do trabalho, incluídos na Introdução e a sequência de atividades, sob a rubrica Sequência Didática, com as atividades numeradas. Esta é a configuração formal de quatro dos cinco projetos publicados.

O texto inicial da revista, “Por um outro ensino”, de Dirceu Villa e João Vieira Jr., com estrutura diferente da dos demais, na verdade se apresenta como o relato do projeto desenvolvido por ambos os licenciandos numa escola do estado, tendo sido mantida sua forma original: uma edição mais “didatizada” prejudicaria a elegância da linguagem de seus autores e a fluidez do texto (além do mais, diga-se a bem da verdade, seus autores não autorizaram tal intervenção). Ao decidir abrir a edição com um texto transgressivo e em essência pouco “didático”, é porque compartilhamos da posição manifestada por ambos de que mudanças urgentes na relação professor-aluno e na formação do professor são necessárias, no sentido de torná-los, justamente, professores e alunos, mais livres de uma cultura “canônica” e, sobretudo, de um “ensino canonizado”. Nesse projeto, Dirceu e João enfatizam a surpreendente criação poética de alunos considerados “casos perdidos”.

Outro projeto também colocado em prática na escola é o de Mara Lucia Faria Costa, “Simbolismo e Impressionismo: um apelo aos sentidos”. Este trabalho começou com o grupo em sala, mas ao ir para o estágio e ter a oportunidade de colocá-lo em prática, Mara se viu obrigada a reformulá-lo inteiramente; assim, tendo se perdido o projeto coletivo, optamos por publicar o individual. Para colocá-lo em prática, a autora aproveitou um material que se encontrava esquecido no armário da diretora, um conjunto de reproduções de pinturas do impressionismo, e com ele desenvolveu o projeto relacionando poesia, artes plásticas e música. Tais relações são muito profícuas para o aluno, que vive mais dentro de uma iconosfera povoada por imagens efêmeras da mídia e sons contemporâneos. Aproveitar o encanto da figura e da música, provindas no entanto de uma outra esfera da cultura, age como importante fator de sedução e empatia e contamina com isso também a poesia simbolista, cujas metáforas às vezes se mostram herméticas para o jovem. A ênfase do trabalho recaiu sobre as “sugestões”, que é uma instância pouco mensurável em termos de aprendizagem, mas fundamental para o aguçamento da sensibilidade e para a abertura a novas relações e possibilidades artísticas.

O projeto “Poesia marginal da década de 70” oferece a possibilidade de, como o primeiro, promover uma vivência poética entre os alunos. Aproveita as características da poesia da chamada “geração 70” e suas formas de produção e divulgação “alternativas” ao esquema mercadológico de massa para propiciar aos alunos uma criação poética mais livre ao mesmo tempo em que é capaz de mobilizá-los de um jeito vitalizado, lúdico, permitindo também produzir arte a partir de suportes e materiais menos “nobres”, como se propugna, de resto, desde as vanguardas européias e o modernismo brasileiro.

Os outros dois projetos são, pode-se dizer, mais “didáticos”, no sentido de que recorrem a práticas escolares mais convencionalizadas (ainda que de uma tradição recente): como o varal de poesia ou a abordagem de poemas e letras de música com destaque para a comparação de conteúdo. Com procedimentos didáticos familiares aos professores o “Oficina de poesia” toma o cuidado de não torná-los contudo separados dos procedimentos que a poesia requer, como não desvinculá-los do sentido e da interpretação bem como da leitura fruidora. O último projeto, “Música e poesia”, talvez seja o mais inacabado de todos: o projeto inicial era enorme e desenvolvia de modo extenso mas pouco significativas as comparações entre música e poesia; com muitos cortes, a edição final manteve as atividades com apenas três pares de poemas/letras, manteve-se os outros dois pares como sugestão somente, além de eliminar muito da biografia e comentários históricos, pois acredita-se que o professores e alunos possam fazer disso uma pesquisa bem mais interessante. O projeto foi indicado para publicação principalmente em razão das boas seleções de obras, que oferecem possibilidades inusitadas e ricas de comparação, ainda que vá exigir do professor que a adotar um trabalho intenso de reflexão e planejamento.

Esses projetos nasceram de idéias compartilhadas, de projetos anteriores, de embriões de projetos ou idéias secundárias e decerto ganharão variações nos futuros projetos a serem realizados na disciplina de MELP, são temas que possibilitam infinitas variações. Isso vale também para o professor em exercício que for aproveitar os trabalhos aqui apresentados. As idéias são bens coletivos, das quais nos apropriamos. Portanto, não há nenhum problema em se adaptar uma proposta à realidade de determinada escola ou sala de aula, nem o professor que o fizer deverá se sentir em débito com a produção alheia. Só não queremos que sejam desvitalizados, desvinculados de sentido, reduzidos a um conteúdo mecanizado.

 

Notas

 [1] Entretanto, o conceito de gêneros literários está consolidada há muito (desde Aristóteles) e encontra sua versão mais contemporânea no livro Théorie des genres, que saiu em 1986 na coleção Points, da editora francesa Seuil. Dentre os vários autores que compõem a coletânea de artigos sobre o tema, estão Gérard Genette e Hans Robert Jauss. Lembro também que Tzvetan Todorov escreveu um excelente ensaio (“Tipologia do romance policial”) sobre o gênero policial, publicado em Estruturas narrativas (Trad. de Leyla Perrone-Moysés, Editora Perspectiva, 1979).

[2] FISH, Stanley . "Interpreting the Variorum". In: FISH, S.   Is there a text in this class? : The authority of interpretive communities. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1980.

   

 

Valdir Heitor Barzotto* 
Daniela Aparecida Eufrásio** 

 

Introdução

A preocupação com a formação no curso de Letras como um todo, e com a formação do professor de Língua Portuguesa em particular, nos levou a estudar um conjunto de relatórios de estágio realizados durante a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa[1]. Nosso objetivo foi verificar em que medida relatórios de estágio permitiam perceber a incorporação e a operacionalização dos conhecimentos específicos oferecidos na formação em Letras/Licenciatura. Com isso buscamos indagar se, neste momento da formação, o aluno demonstrava em seu texto características próprias do perfil profissional específico desta área, isto é, se e como o aluno apresentava, no momento em que escrevia o seu relatório, registro e tratamento dos dados coletados em sala de aula que atestassem algum traço característico do perfil esperado do profissional de Letras. Ao estudarmos esses relatórios de estágio o foco de nossa atenção não foi o que o estagiário observava, mas como ele lidava com aquilo que observava e se, para seu registro e análise, mobilizava os conhecimentos adquiridos durante sua formação.

Partimos do princípio de que, ao chegar nesta etapa da formação (os alunos encontram-se no terceiro ou quarto ano quando fazem o estágio), estando prestes a se tornarem profissionais, é desejável que já estejam em condições de apresentar um texto característico de um profissional de Letras. O objetivo desta formação não é apenas ensinar o aluno a ler e escrever, ou instrumentalizá-lo com algum conhecimento normativo para repassar a seus futuros alunos, mas ensiná-lo a entender o conhecimento próprio da área como o que lhe dá especificidade profissional no tratamento das diversas manifestações lingüísticas.

Por isso, estabelecemos como propósito da análise dos relatórios a verificação de como o aluno lidou com os dados de linguagem, neste caso, coletados em um contexto específico – a sala de aula em situação de ensino-aprendizagem. Acreditamos que desta pesquisa pode-se tirar algumas contribuições para refletir sobre o trabalho realizado na disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e no curso de Letras.

 

O contexto de produção dos relatórios de estágio analisados

Os relatórios foram produzidos para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, com duração de 60 horas em sala, à qual o estágio está acoplado, com duração de mais 60 horas, sendo 40 horas de observação e 20 de regência. Ao todo, somam-se 240 horas em um ano letivo.

Durante as aulas são realizados estudos sobre diferentes abordagens do ensino de Língua Portuguesa, bem como são organizadas atividades para o trabalho nas aulas de regência. Para registro das observações, o aluno é orientado a fazer um diário de campo, utilizando algumas noções mínimas de etnografia de sala de aula.

Idealmente, o estagiário deve registrar e documentar todas as situações presenciadas em aula. Desse material, deve selecionar alguns aspectos sobre os quais queira incidir no momento da regência, seja para tentar fazer igual ao professor regente, se achar pertinente, seja para tentar fazer melhor. Então, o aluno prepara algumas atividades, ou o professor regente da sala solicita que ele aplique as atividades que constam de seu planejamento, ministra suas aulas e recolhe resultados para análise e, se necessário, para reconsideração das atividades e de seu procedimento em sala.

Dessa experiência, o aluno estagiário deve ainda destacar um assunto sobre o qual considere relevante um aprofundamento. Então, ele produz um relatório, no qual devem constar como embasamento os textos estudados nas aulas de Metodologia, aqueles estudados nas outras disciplinas da licenciatura, bem como aqueles estudados ao longo do bacharelado. Todo o relatório deve manter como foco central o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa.

Dentre os relatórios estudados para esta pesquisa predominou, como é de praxe, a seguinte composição:

- descrição física e administrativa da escola, bem como de sua inserção no contexto social constituinte do espaço escolar: aspectos econômicos, geográficos, institucionais, entre outros;
- relato das aulas a partir da observação e análises;
- tomadas de decisão sobre as atividades a realizar em função do que foi observado;
- registros do processo de preparação das atividades;
- registro da experiência da regência e análises;
- análise de um aspecto destacado pelo estagiário como merecedor de aprofundamento;
- anexos.

Durante as aulas de metodologia, constantemente foi chamada a atenção dos alunos para a necessidade de dar ao relatório um caráter mais científico do que se costuma dar. Já nas orientações iniciais sobre a produção do relatório, os alunos foram orientados para encarar o trabalho não apenas como um relato simples das atividades presenciadas, mas como uma pesquisa em sala de aula sobre o ensino de língua portuguesa, o que deveria impor ao estagiário a necessidade de tratar mais academicamente tanto a coleta como a análise dos dados.

Em vários momentos, conversou-se também sobre a necessidade de registro das situações observadas para além das impressões. Nenhum aluno poderia afirmar que as atividades aplicadas em sala, pelo professor ou por ele mesmo, deram ou não deram certo sem apresentar os dados e uma discussão que permitissem verificar o sucesso ou insucesso da atividade. Tornava-se, assim, necessário o registro pormenorizado do modo como ocorreu o desenvolvimento da atividade e a produção dos alunos dela resultante.

Entre outros motivos, essas orientações objetivavam provocar o deslocamento do aluno em relação à visão dos processos de ensino e de aprendizagem assumida previamente por meio do senso comum ou das tentativas de discorrer sobre o que é melhor para o ensino sem conhecimento de situações escolares concretas.

 

Concebendo o relatório de estágio como resultado de uma pesquisa

A experiência mostra que o simples contato com o cotidiano escolar e sua conseqüente descrição não fazem do estágio uma atividade essencialmente formadora, uma vez que não incentivam a reafirmação do perfil profissional almejado durante a formação em curso. A aceitação de uma descrição geral dos fatos presenciados como trabalho final da disciplina não exige do estudante uma postura mais ativa enquanto observador e profissional capaz de intervir futuramente nas situações escolares de forma a fazer valer os conhecimentos que lhe foram apresentados durante sua formação. Isso se agrava quando o relatório se aproxima mais de um preenchimento de fichas ou de uma busca de respostas a questões formuladas previamente, que acabam por condicionar o olhar do estagiário para pontos específicos durante a observação, deixando escapar outros que poderiam se mostrar mais importantes na situação concreta de aula.

A observação pontual dos fatos de sala de aula, mediante coleta de dados, serve para subsidiar uma intervenção mais consciente do estagiário, pois possibilita que ele tome decisões mais acertadas, permitindo-lhe incidir em aspectos próximos da realidade nas atividades que irá propor, por exemplo, em sua regência. Será mais consistente a intervenção se os pontos importantes forem localizados em um relato mais abrangente da aula e se não se restringirem ao conjunto de orientações dadas previamente. Desenvolver uma curiosidade investigativa no cotidiano parece eficaz quando se trata de trabalhar em uma sala de aula, pois se toca melhor em sua constante mutação. Isso permite também que não se falseie a imagem do trabalho docente, o que ocorre quando, por despreparo, o professor acredita em soluções gestadas longe de seu cotidiano.

Formar o professor desde seu estágio para realizar intervenções pertinentes a partir da observação sistemática e rigorosa da sala de aula permite investir na possibilidade de atuação docente reforçada por critérios mais solidamente embasados do que naquela calcada apenas na intuição – ainda que esta possa ser um complemento importante para seu trabalho – ou naquela excessivamente direcionada.

Mesmo que, durante o estágio, a situação ideal de poder experimentar na regência propostas elaboradas a partir da observação não possa ser efetivada sempre, pois a alegada necessidade por parte do professor titular de cumprir o programa da escola faz com que isso nem sempre se concretize, o exercício da observação pode apontar para sua importância no levantamento de problemas e na proposição de soluções vinculadas ao conteúdo do programa.

Se, por exemplo, durante a observação um estagiário perceber que os alunos têm dificuldades na leitura de textos simples, mas, por recomendação do professor titular, tiver de ministrar aulas sobre o Trovadorismo em sua regência, é bom que ele esteja em condições de organizar atividades de leitura a partir de um texto pertencente ao trovadorismo, para depois adentrar o tema específico.

Acreditamos que, desse modo, a prática de observação com a meta de averiguar e registrar o que se passa na sala de aula pode já ser um passo na formação de um professor que estudará sua própria sala de aula. Além disso, não se pode abandonar no estágio a idéia de que a Universidade é um lugar de produção de conhecimento e de reflexão sobre os dados da realidade, seja ela satisfatória ou não.

Embora tenhamos uma relativa escassez de produções acadêmicas que tomam relatórios de estágio como objeto de pesquisa[2], no que concerne tanto à sua natureza quanto a seus aspectos formais, encontramos um posicionamento que contempla nossas preocupações em Salomon (2004:215-6):

O relatório de pesquisa e o informe científico ou técnico enumeram-se entre os de maior circulação nas universidades, nos congressos especializados e abertos, e nas associações de classes profissionais de nível superior. Por serem, em geral, de menor envergadura que as teses e monografias, podem ser produzidos com maior freqüência. Tanto a ciência como a tecnologia devem, sobretudo a eles, o grau de desenvolvimento que têm atingido. Não é só o cientista que os escreve. O aluno de curso superior, o iniciante na investigação e o profissional comunicam periodicamente os resultados de pesquisas realizadas. Todos sabemos que não basta adquirir mentalidade científica, saber e realizar investigação: é preciso comunicar. O pesquisador tem compromisso com alguma instituição ou comunidade: há os colegas, o orientador da pesquisa, o patrocinador, como interessados diretos; mas há também os interessados indiretos: o público em geral e o especializado. Ao contrário do que muitos pensam, o grande público é ‘ávido e curioso em penetrar nesses tipos de comunicação' [...].
     Provindos diretamente da pesquisa que acabou de terminar, o relatório e o informe, como todo trabalho científico de primeira mão, tornam-se ‘fontes' de que se servirão outros para ‘extrair' e ‘divulgar' a ciência. Não teria sentido, portanto, que o pesquisador deixasse de informar os resultados de sua investigação. Por mais notáveis que estes sejam, não terão valor se não forem transmitidos.
     Durante o curso superior, sobretudo nos últimos anos, costuma-se incumbir o aluno de realizar uma pesquisa. Seu projeto é montado, desdobrado em partes para ser apresentado em etapas sucessivas até que, ao fim, se transforme no relatório de pesquisa. Muitos desses relatórios são dignos de difusão e de ser confiados à publicação especializada.

Em consonância com o posicionamento acima sobre relatórios científicos e a necessidade de comunicar o trabalho feito no interior das pesquisas, uma vez que não nos dispensamos do compromisso de produção de conhecimentos durante o estágio, vemos como pertinente a discussão e a orientação aos estagiários sobre a possibilidade de caracterização dos relatórios de estágio como um trabalho científico propriamente dito[3].

Estando o relatório alicerçado sobre uma concepção que o entende como produto de um trabalho de campo e de coleta de dados, como um trabalho de análise e interpretação, isso implica entendê-lo como uma atividade de pesquisa, ou que contém uma pesquisa.

Neste sentido, outra dimensão importante é a possibilidade de enfrentamento da diversidade de dados. O relatório é uma oportunidade de o estagiário, enquanto observador e pesquisador, cruzar os dados de sala de aula e os fatos de língua a fim de medir se uma mesma forma de intervenção pode atingir a totalidade de alunos. A análise da heterogeneidade dos dados, no relatório de estágio, pode ampliar a discussão sobre como os alunos respondem diferentemente ao trabalho com língua materna. Enfim, o relatório de estágio é um instrumento privilegiado para se partir do dado concreto de aula e chegar a reflexões de cunho teórico, estabelecendo um caminho interessante de superação da dicotomia entre teoria e prática, ainda presente nas discussões sobre Educação.

 

Um perfil profissional delineado na história

Apresentamos neste item alguns posicionamentos que apresentam o que estamos chamando de traços característicos do perfil profissional de Letras e que nos parecem vastamente aceitos na comunidade da área. Esclarecemos que não é nossa intenção produzir uma definição ou discutir qual seja o perfil apropriado para o profissional de Letras. Os excertos que apresentamos têm a função de ilustrar o que temos em mente quando analisamos os relatórios, buscando verificar em que medida já se pode considerar a presença das características desse profissional na produção do relatório. Trata-se, acima de tudo, de interrogar se esse perfil de ampla aceitação pode ser verificado na produção de textos dos estudantes de Letras.

Contrastando o saber sobre a língua do falante e do lingüista, Coseriu (1979:54), por exemplo, contribuiu para que pensássemos em que medida nosso aluno, após três ou quatro anos no curso de Letras, apresenta um conhecimento diferenciado daquele que já possuía enquanto falante:

A verdade é que os falantes têm plena consciência do sistema e das chamadas “leis da língua”. Não apenas sabem o que dizem, mas também como se diz (e como não se diz); de outro modo não poderiam sequer falar. É verdade, por outro lado, que não se trata de “compreender” o instrumento lingüístico (o que é assunto do lingüista), mas de saber empregá-lo, de saber manter (refazer) a norma e criar de acordo com o sistema. [Grifo nosso]

Por sua vez, Ilari (1989:08), ao falar dos motivos para se defender a presença da Lingüística nos cursos de Letras, aponta dois objetivos formativos: “1) desautomatizar a visão corrente dos fatos de língua; 2) proporcionar ao futuro professor de letras a oportunidade de praticar o método de investigação próprio das ciências naturais”.

Esses dois objetivos são importantes para a reflexão que empreendemos aqui por apontarem para um projeto formativo, que objetivaria levar o futuro professor de língua portuguesa a analisar de forma menos leiga e mais científica os dados de língua.

Além da acuidade no tratamento dos dados de língua, o profissional de Letras lida com uma vasta cultura literária e sobre a falsa separação entre língua e literatura; Brait (2000:197) afirma:

[...] o profissional de Letras terá que conhecer muito bem a língua, as suas variantes, a sua norma culta. Mas terá também de conhecer literatura, como uma das formas de expressar essa língua e tudo que isso pode significar. Terá ainda de estar atento às teorias da linguagem em geral para ser capaz de enfrentar textos e fazer deles seu instrumento de ver e mostrar o mundo.

Sendo assim, entendemos o estágio como um momento em que o profissional de Letras em formação deve utilizar os diferentes conhecimentos teóricos pertinentes a sua área de atuação e não se limitar a fazer um relato episódico, factual, do que observa em sala de aula. Pensamos que o profissional em Letras deve lidar de modo menos leigo possível com as diversas manifestações lingüísticas, sejam elas o texto escrito pelo aluno, o texto literário ou o texto jornalístico, que é enfocado na citação a seguir:

E é aqui que eu proponho que o profissional de Letras atue e, utilizando seus conhecimentos teóricos sobre linguagem, leitura, produção e recepção de textos, aponte, pelas relações estabelecidas entre a materialidade lingüística e a materialidade visual, a reiteração, a ampliação ou o redimensionamento de sentidos, mesmo em gêneros em que o esperado é a transparência textual, a utilização da linguagem como simples instrumento de informação. (ibidem: 202)

De acordo com a citação, entende-se que a especificidade da formação do profissional da área de Letras exige que ele mobilize os conhecimentos específicos da área para a análise do texto jornalístico; do mesmo modo entendemos que essa especificidade exige que o estagiário, prestes a se tornar professor de Língua Portuguesa, também mobilize tais conhecimentos – o que impõe maior rigor na coleta de dados em uma aula observada e em sua análise.

Em 2001, as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e Cultura para o curso de Letras, por sua vez, deram mostras de que há um certo consenso em torno da necessidade de um trabalho mais científico por parte de profissionais formados no ensino superior. Esse documento é importante para o delineamento do perfil do profissional porque procura atender à compreensão que se tem nos mais diferentes cursos do país sobre o que seja o profissional a ser formado:

O objetivo do Curso de Letras é formar profissionais interculturalmente competentes, capazes de lidar, de forma crítica, com as linguagens, especialmente a verbal, nos contextos oral e escrito, e conscientes de sua inserção na sociedade e das relações com o outro.
     Independentemente da modalidade escolhida, o profissional em Letras deve ter domínio do uso da língua ou das línguas que sejam objeto de seus estudos, em termos de sua estrutura, funcionamento e manifestações culturais, além de ter consciência das variedades lingüísticas e culturais. Deve ser capaz de refletir teoricamente sobre a linguagem, de fazer uso de novas tecnologias e de compreender sua formação profissional como processo contínuo, autônomo e permanente. A pesquisa e a extensão, além do ensino, devem articular-se neste processo. O profissional deve, ainda, ter capacidade de reflexão crítica sobre temas e questões relativas aos conhecimentos lingüísticos e literários.[4]

Mesmo que as propostas acima possam ser discutidas, dificilmente argumentos que dizem respeito à cientificidade necessária para o tratamento do objeto próprio da área em que o profissional vai se formar serão destituídos, uma vez que fazem parte da história da constituição de cada profissão.

Os traços do perfil profissional que podem ser depreendidos dos trechos acima são úteis porque permitem discutir o estágio no que concerne à verificação do modo como o conhecimento objeto do curso provoca efeitos na escrita do aluno. A reflexão sobre os relatórios aparece como uma possibilidade a mais de questionamento sobre a formação do profissional de Letras, pois, a partir do que se entende ser o relatório de estágio mais próprio à formação do professor, serão traçados os caminhos para a sua realização e também para a realização do próprio estágio. O que propomos é que nesta etapa da formação não sejam revogados os propósitos mostrados acima, no que diz respeito ao profissionalismo e à cientificidade do curso de Letras.

 

Análise de exemplos extraídos de relatórios

Dados os propósitos deste trabalho e a extensão que este texto assumiria caso analisássemos os relatórios em sua íntegra, decidimos selecionar e apresentar trechos em que os estagiários apresentam os dados das aulas observadas. Dos relatórios estudados, verificamos as características predominantes em cada um e os distribuímos em grupos como segue:

A) Relatórios classificados como “análise”

Os relatórios assim classificados são os de maior número. Ainda que alguns deles sejam bem escritos, falham na delimitação entre objeto de análise e análise propriamente dita. Esses relatórios, em sua maioria, apresentam “discursos politicamente corretos”, em harmonia com as reflexões desenvolvidas na área da Educação; entretanto apresentam como texto uma continuidade de análises que não se originam da observação do dado específico, mas baseiam-se nas impressões da vivência educativa como um todo.

B) Relatórios classificados como “conjunto de dados”

Nesses relatórios encontramos transcrições de situações ou de falas completas, por vezes com alto grau de detalhamento, mas sem o desenvolvimento das devidas análises.

C) Relatório classificado como “ideal”

Em que há boa coleta de dados aliada à aplicação de conhecimentos adquiridos durante o curso

Para entendermos o tipo de relatório “ideal”, é preciso ressaltar que pressupomos como necessário que o estagiário esteja atento aos dados de sala de aula enquanto objeto de estudo. Sendo assim, os relatórios constituídos de dados e análise foram considerados “ideais” por investirmos na idéia de que a especialidade do profissional de Letras está no trabalho com os dados de língua de maneira não leiga e, portanto, mais científica. Isso significa dizer que os dados de aula devem ser analisados pelos estagiários com as categorias de análise e reflexão que aprenderam durante seu curso de origem.

A divisão dos relatórios nesses grupos não pode ser tomada de modo exato, uma vez que todos apresentam, em algum ponto, características daquele que classificamos em outro tipo. Isso nos faz entender que a escrita desse trabalho revela um aluno em formação. Se , por um lado, um trabalho não apresenta as características esperadas, há nele pontos específicos em que essas características estão presentes e que indicam que o processo de aprendizagem está instaurado.

A fim de exemplificar o material estudado por nós, transcrevemos trechos dos relatórios representantes das classificações explicitadas acima, discutindo-os e apontando para os locais que possibilitam a proposição de questões que privilegiam os relatórios de estágio como instrumentos de formação docente.

Vamos apenas mencionar, para refutar imediatamente, aqueles relatórios que podem ser feitos em casa, sem que o relator precise ir a uma escola, dada a superficialidade e a vagueza do texto. Há relatórios que, de tão genéricos, seriam corretos para toda e qualquer aula, tais como: “ A professora passou a lição, os alunos copiaram e depois foi feita a correção. Ou ainda: A professora pediu para fazer a leitura, explicou os exercícios, alguns alunos fizeram e outros ficaram conversando. No final da aula foi feita a correção” . Consideramos que esse tipo de anotação é absolutamente impróprio para relatar o que foi visto em aula, já que prescindem da observação direta.

Esclarecemos que os trechos escolhidos são apenas exemplos e não refletem a íntegra dos relatórios.

 

Relatório classificado como “análise”

Vamos começar citando um trecho de relatório que reflete um pouco melhor o que foi observado, que deixa entrever a situação de aula presenciada pelo estagiário, mas que carece de bastante trabalho para se constituir em um texto com maior grau de informatividade e com melhores condições argumentativas.

Trabalhar com projetos, segundo a direção, é uma forma de negar o ensino dividido por disciplinas, em que cada uma tem sua própria “gaveta” e o momento certo de ser trabalhada, que tem sido condenado à falência. Essa escola tem feito um planejamento contínuo no sentido de trabalhar a Língua Portuguesa como disciplina transversal. No entanto, o que pude ver, no caso específico da professora cujas aulas foram observadas, é que, por mais que a direção e a coordenação pedagógica da escola tentem contribuir para a formação dos professores, toda tentativa se esbarra nos problemas de formação profissional dos docentes. A professora segue o projeto sugerido pela escola, mas vê este como uma tarefa à parte. Foi proposto aos alunos que fizessem uma pesquisa sobre a região Centro-Oeste. O trabalho foi feito individualmente, ficou limitado a cópias que os alunos faziam de algum livro didático, não havendo, assim, criação alguma. A avaliação deste trabalho foi feita por meio dos conceitos de A a D, pelo que notei, os critérios eram assim: letra bonita, organização e volume do texto. Ou seja, não há interdisciplinaridade neste tipo de atividade e o trabalho com a linguagem é totalmente abandonado. Assim, o projeto acaba sendo uma tarefa a mais dentro dos conteúdos tradicionais trabalhados dentro da sala de aula.

À primeira vista pode parecer uma análise, no entanto, é necessário observar que o objeto analisado não é apresentado ao leitor. Em nenhum momento foram expostos dados concretos de sala de aula – nem transcrições de falas, nem descrições de situações de aula completas. Quando aparece no texto menção a alguma situação de aula, como em “ Foi proposto aos alunos que fizessem uma pesquisa sobre a região Centro-Oeste. O trabalho foi feito individualmente, ficou limitado a cópias que os alunos faziam de algum livro didático, não havendo, assim, criação alguma ” , essa situação é colocada conforme pareceu ao estagiário, sem sustentação em recortes mais precisos de dados coletados em sala de aula. Dado e análise vêm sobrepostos, esta última fazendo supor aquele, não havendo explicitação de um processo que parte da investigação para chegar à conclusão, ficando o leitor convocado a acreditar na validade das interpretações apresentadas pelo autor do relatório.

As características do texto obrigam o leitor a pautar-se na “boa fé” do autor para acreditar no que afirma, ao mesmo tempo em que não permite o debate com relação à interpretação apresentada, pois os dados não são expostos, eles estão subjacentes. Fica difícil, por exemplo, discordar da afirmação de que não houve “criação alguma”, pois o processo que permitiu chegar a essa conclusão não está explicitado. Poderiam ter sido apresentadas reproduções de um texto de aluno e um trecho do livro didático; isso daria ao leitor a oportunidade de defrontar-se com o dado e com a interpretação do autor do relatório, concordando ou discordando de forma mais segura.

Além disso, faltam elementos para que analisemos com profundidade a relação professor-aluno, pois não sabemos como os alunos interferem nas atividades propostas, ainda que sejam de cópia.

Quando o autor do relatório afirma que “ toda tentativa se esbarra nos problemas de formação profissional dos docentes ”, também não sabemos de que problemas exatamente ele fala, que ponto específico da formação docente está criticando. O leitor não tem como saber se essa fala é resultado da análise da vivência trazida pelo estágio ou de uma adesão irrefletida a manifestações sobre uma suposta incompetência generalizada dos professores.

Neste ponto, pretendemos chamar a atenção para a ineficácia desse discurso de crítica ao trabalho docente. Ainda que o trabalho da professora observada pelo estagiário não tenha correspondido às suas expectativas, o discurso generalista não possibilita o aprofundamento da discussão, aproximando-se mais das falas correntes, vindas de vários setores da sociedade e bastante difundidas na mídia. Se assim for, essa não é a postura esperada num processo de produção de conhecimento que a universidade deve impulsionar.

A imprecisão no tratamento do dado instiga dúvidas sobre o papel do estágio, pois nos perguntamos em que medida as categorias de reflexão vindas do curso de Letras e da Licenciatura possibilitam uma formação menos moralista e mais investigativa. Observem que o autor do relatório critica a professora observada e logo depois coloca: “A avaliação deste trabalho foi feita por meio dos conceitos de A a D, pelo que notei, os critérios eram assim: letra bonita, organização e volume do texto. Ou seja, não há interdisciplinaridade neste tipo de atividade e o trabalho com a linguagem é totalmente abandonado”.

Considerando-se que o autor do relatório critica o trabalho da professora com o livro didático, esperávamos que o mesmo pudesse trabalhar com os dados coletados de maneira mais própria ao seu papel de observador. Como exemplo, a citação acima demonstra que o autor do relatório não se preocupou em mencionar o porquê de achar que a avaliação da professora se devia à letra bonita, organização e ao volume do trabalho. E mesmo a partir da incerteza dessa constatação, manifesta na expressão “pelo que notei” – de certa forma modalizada –, afirma que “o trabalho com a linguagem é totalmente abandonado”. Precisaríamos, neste ponto, perguntar o que está sendo entendido por trabalho com a linguagem, uma vez que o próprio texto do relatório não apresenta análises calcadas em dados de linguagem. Apesar de realizar a crítica, o autor do relatório não consegue fundamentá-la na análise do dado, o que seria mais próprio a uma especialista da área de Letras. Ou seja, ele não faz diferente daquilo que critica.

Chamamos a atenção, por outro lado, para o fato de que talvez a falta de apresentação de dados corresponda a falhas na própria redação do relatório. Queremos com isso relativizar duas das diferentes habilidades necessárias a um estagiário de Letras: perspicácia na coleta de dados e também na sua transposição ao texto escrito. Sendo assim, as falhas destacadas até então podem ser resultado tanto da coleta de dados quanto da própria escrita acadêmica, o que, de qualquer modo, não compromete as análises realizadas até então; pelo contrário, somente possibilita a ampliação de sua discussão.

Vejamos outro trecho do relatório em estudo:

Nas primeiras aulas observadas, a professora estava trabalhando com pronomes. As aulas foram bastante limitadas aos esquemas tradicionais do tipo: “Complete com os pronomes adequados”, “Coloque IN para interrogativos e IND para indefinidos”. As atividades foram seguidas de uma provinha, “Avaliando o aprendizado”, onde se mantém os mesmos tipos de exercícios e a gramática é trabalhada de forma descontextualizada, com frases soltas esperando classificações.
     Na segunda semana de observação, a professora começou a trabalhar com verbos. As definições já mostram como o assunto foi tratado de forma extremamente abstrata e tradicional: “A palavra que exprime ação na frase”; “Cândida está triste - esta frase declara um estado de Cândida, portanto, existem verbos que exprimem estado”.

Em seu relatório, o autor privilegia a discussão sobre a metodologia usada pela professora em sala de aula ao trabalhar a gramática do português. Percebe-se ainda que a idéia de que se deve criticar o chamado ensino tradicional perpassa os apontamentos do estagiário.

Se considerarmos o estágio mais que uma possibilidade de vivência no ambiente de trabalho futuro, entendendo-o como possibilidade de formação do profissional, estaremos compartilhando da idéia de que o estagiário, enquanto observador, tem a possibilidade de reverter conceitos teóricos aprendidos durante o seu curso em análises que tentam esclarecer possibilidades e limites dentro de uma sala de aula. Queremos com isso colocar o relatório de estágio entre os trabalhos que exigem uma postura investigativa. Sendo assim, no caso em questão, faltou ao estagiário delimitar seu objeto de estudo a fim de cercá-lo com o maior número possível de elementos que pudessem garantir-lhe tratamento mais científico. Faltou também se desvencilhar do automatismo da oposição ao tradicional.

Poderíamos dizer que o trecho supracitado exemplifica um comentário que não pressuporia necessariamente um especialista em Língua Portuguesa. De acordo com a idéia de relatório de estágio como resultado também de projeto de pesquisa, acreditamos que a análise dos dados coletados em sala de aula não termina no comentário generalista. Se acreditarmos que um dos objetivos do relatório em questão era tratar do trabalho com gramática normativa em sala de aula, pensamos que a montagem de um corpus para análise dos dados de língua possibilitaria a discussão de diferentes tópicos, como: 1) domínio da professora em relação às normas gramaticais; 2) posicionamento dos alunos em relação ao estudo dessas normas; 3) diferenças na recepção dessas normas entre os alunos de uma mesma sala; 4) levantamento de hipóteses sobre a formação docente a partir dos dados do corpus analisado.

Sendo esse o objeto do estagiário, poderia ter discutido como o ensino da gramática normativa se deu nesta sala de aula em específico, a partir dos dados recolhidos in loco, promovendo um debate sobre tal questão e não só aceitando posicionamentos construídos por outros. Pensamos que assim o estagiário poderia de fato coletar, analisar e interpretar os dados retirados do cotidiano escolar utilizando o conhecimento próprio de sua área de atuação, fortalecendo assim o que viemos até então chamando de perfil profissional de Letras.

 

Relatório classificado como “conjunto de dados”

Diferentemente do que foi discutido no item anterior, sobre relatórios em que os dados não são evidenciados, apresentaremos aqui um trecho de outro relatório que consiste apenas em dado.

(Os alunos entram bem descontraídos e brincam com a professora quando ela faz a chamada)
Aluno: (para mim) Você é aluna nova?
Eu: Não. Eu estou fazendo estágio com a Juçara.
(O aluno me faz várias perguntas sobre a faculdade)
Prof: Eu só vou fazer uma pergunta para o 2ºA: Mas que agitação é essa?
(Era o primeiro dia do Marcos, um aluno transferido do outro 2º ano. Ele quis a transferência porque seus amigos estavam no 2ºA)
Prof: (para Marcos) A prova do livro será amanhã. Você tem a madrugada toda para ler o livro...(brinca, já que ela adiou a prova dele)
(A professora me apresenta para os alunos e todos brincam e são muito atenciosos)
A1: ‘Inch'Alla' ela seja nossa professora...(freqüentemente os alunos inserem os bordões dos programas ou das novelas atuais)
(A aula é sobre Romantismo)
Prof: Eu só vou fechar as gerações e acaba. A Segunda Geração é o ultra-romantismo. Os poetas mais famosos são Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela...
A1: Fagundes Favela? (brinca)
Prof: Ah, em Portugal não existe terceira geração. Na terceira geração as obras são mais poéticas. Vocês verão as diferenças entre as três gerações. Castro Alves é um exemplo...
A1-1: (baixinho) Quem castrou o Alves?
A1-2: O machado de Assis. (a turma dos meninos começa a rir, mas logo volta a prestar atenção na aula)

Esse fragmento de relatório é exemplo de detalhamento no registro das falas e fatos que envolveram a aula observada pelo estagiário. Chama a atenção por apresentar com minúcias um conjunto de dados no registro das situações e das falas.

Observamos no fragmento acima o recolhimento dos dados de maneira precisa: o estagiário mostrou acuidade na coleta e apresentação desses dados, possibilitando ao leitor um reconhecimento detalhado da situação de aula. Essa maneira de apresentar os dados permitiria ao estagiário realizar uma análise e uma interpretação do contexto escolar com inúmeros desdobramentos, uma vez que o dado retirado da situação concreta de aula permite fazer um interessante elo entre as teorias estudadas no curso de formação e a realidade escolar, verificando como a literatura específica ajuda a entender aquele momento de aula que é único.

No entanto, o relatório em estudo não apresenta a análise das observações feitas. Ainda que o estagiário tenha descrito detalhadamente situações e falas em contexto de aula, o mesmo não se debruçou na análise desses dados, deixando assim de fazer valer os conhecimentos adquiridos em seu curso.

Poderíamos apontar como exemplo o fato de que o estagiário não colocou sob análise a afirmação da professora de que não existe terceira geração do Romantismo em Portugal. Não se esperava aqui apenas uma crítica por parte do estagiário à afirmação da professora, mas a demonstração de que este conhece outras vertentes que apontariam para a existência de uma terceira fase na literatura romântica de Portugal. Júlio Dinis, por exemplo, teria se distanciado do que até então tinha sido feito pelos românticos Almeida Garret e Camilo Castelo Branco, como apontam Benjamim Abdala Júnior e Maria Aparecida Paschoalim: “Mas a esse pessimismo sucede a necessidade de crítica da realidade: constitui-se uma 3ª. fase romântica ou mais propriamente, pré-realista” (1982:80).

Outro elemento que poderia ter sido contemplado durante a análise é a brincadeira que os alunos fazem com o nome próprio “Castro Alves”. Os alunos percebem as mudanças semânticas decorrentes da brincadeira e, por isso, lidam de forma extrovertida com esse fato de língua. A pergunta foi respondida por outro aluno, que transformou o substantivo próprio Machado em substantivo comum. Note-se que o estagiário demonstra ter percebido a brincadeira a ponto de escrever machado com letra minúscula, já que na brincadeira a palavra foi transformada em nome de um objeto, além de fazer uma anotação entre parênteses sobre a reação provocada pela frase. Entretanto, faltou ao estagiário explicitar os mecanismos lingüísticos que provocaram o humor da brincadeira, por exemplo. Essa explicitação possibilitaria o exercício de reflexão diante do objeto de estudo, de acordo com conhecimentos próprios aos profissionais de Letras.

 

Relatório classificado como ideal, reunindo dados e análise

Para melhor ilustrar o que esperaríamos de um relatório de estágio em que já se pudesse verificar que o aluno se apresenta mais próximo do perfil esperado, apresentamos abaixo um trecho de relatório muito próximo do ideal, uma vez que a aluna recolhe dados de sala de aula e demonstra condições de análise da mesma recorrendo aos conhecimentos específicos firmados durante do curso de Letras.

Na maior parte do tempo em que se trabalha com textos, os alunos lêem e escrevem sem compreender muitas vezes o que estão lendo e escrevendo. Como exemplo desta realidade temos a aula do dia 21/05, dada pela professora Vilma, em que uma aluna não compreende uma questão.
     “Que semelhança há entre o avô, o professor e a cronista?”
     “A professora pergunta do que eles falam em comum, a menina responde que é da natureza. ‘Então qual é a resposta?', pergunta a professora, A menina conclui, ‘Natureza'. A professora faz sinal positivo com a cabeça”.
     Deste episódio podemos depreender uma série de fatores. O primeiro que vamos destacar diz respeito à própria questão, que parece confundir a figura do narrador com a da cronista. Perde-se na questão, a noção de que o autor pode inventar um narrador, que muitas vezes é bastante diverso de si próprio e, a partir dele, construir seu texto.
     O livro apresenta uma questão que coloca em igualdade de posição os personagens, o narrador e a autora. É certo que, a partir do momento em que a crônica é narrada em primeira pessoa e apresenta um “eu”, podemos tomar o narrador como um personagem, mas sem esquecer que é através da perspectiva deste “personagem” que passamos a conhecer os fatos e figuras, e este personagem, por sua vez, é construído pelo autor para a obtenção de um efeito determinado.
     Estas noções que identificam o autor por trás do texto e os processos utilizados por ele para a elaboração do mesmo, são preteridas a uma compreensão superficial da história contada e quando muito, observações sobre a construção do texto visando ainda esta compreensão.

O excerto transcrito faz referência à aula do dia 21.05, registrada no diário de campo. Para realizar a análise, a estagiária traz para o seu texto um recorte bastante específico, o qual foi apresentado entre aspas a fim de diferenciar dado e análise. A inexistência, no presente texto, do trecho de aula registrado na íntegra no diário de campo pode facilitar o surgimento de algumas dúvidas. Entretanto, pretendemos afastá-las focalizando nossa reflexão mais na forma como a análise anterior foi estruturada do que exatamente na procedência das afirmações feitas pela estagiária sobre o dado em questão.

Sendo assim, destacamos alguns procedimentos analíticos que nos parecem ter um importante papel formativo no momento em que o estagiário, por meio da escrita do relatório, debruça-se sobre a realidade por ele vivenciada.

O primeiro ponto a ser observado é que a estagiária, diante da diversidade de situações registradas no diário de campo, é capaz de realizar o recorte daquilo que lhe parece apropriado para análise. Sua atitude demonstra um amadurecimento que permite identificar nos registros que fez das aulas observadas uma passagem que se sobressaiu enquanto dado, ou seja, enquanto indício de uma realidade que, segundo a estagiária, merecia ser estudada mais demoradamente. Isso foi possível também devido ao grande volume e à heterogeneidade dos dados coletados.

A emergência desse indício revela um olhar atento, capaz de destacar, dentre fatos que poderiam ser entendidos como uniformes por um observador desinteressado ou, mesmo, despreparado, algo que se revela potencialmente esclarecedor da situação vivenciada, transformando-se, assim, em material digno de ser investigado.

Diante do dado, a estagiária utiliza-se da especificidade da sua formação para analisar a questão trazida pelo livro didático e que foi registrada em seu diário de campo. Nesse momento, de alguma forma, ela demonstra uma maneira pela qual sua formação universitária possibilita definir-se enquanto profissional de Letras, capaz de ver, nos dados coletados, manifestações lingüísticas merecedoras de serem olhadas pelo viés do conhecimento que sua própria área de formação e atuação lhe fornece.

 

Considerações finais

A possibilidade de discutir a formação docente pelo prisma da “cientificidade” é possível porque entendemos que certas atitudes docentes “acríticas” advêm de lacunas em sua formação. Nas situações em que o professor segue um programa ou um livro didático, sem nenhuma interferência nem crítica ao que lhe é oferecido, talvez demonstre a falta do trabalho de observação e análise do material em questão e de sua aplicação, alicerçado em categorias de análise advindas dos diversos domínios do conhecimento que compõem a sua formação. Neste sentido, denominamos como tratamento científico dos dados recolhidos em sala de aula a atitude de o estagiário perceber nas situações observadas uma série de falas e práticas que possibilitam a composição de um corpus para análise, o que exige o registro dos dados da maneira mais fiel possível à realidade observada e utilização adequada do embasamento próprio de sua área de formação. É claro que o recorte a ser analisado já demonstra o ideário de que partilha o estagiário; entretanto, isso não se torna um problema para a concepção de cientificidade aqui defendida, uma vez que estamos incorporando-a enquanto postura e não enquanto verdade absoluta.

O tratamento científico dos dados recolhidos por meio da observação em aula origina-se, assim, de uma postura que pode ser desenvolvida durante o estágio a partir do momento em que o conceituamos como uma atividade de pesquisa que requer a definição de um objetivo, de uma metodologia de trabalho, bem como de um quadro teórico. A concretização dessas premissas ocorre no relatório de estágio, espaço próprio à exposição do material coletado e do desenvolvimento das devidas análises. No entanto, é necessário que o estagiário conte com uma formação anterior a esse momento de sua formação, que tenha permitido construir um perfil de profissional da área.

Ao pensarmos sobre um relatório de estágio que seria ideal, podemos perguntar o quanto um relato como esse serve aos fins de cientificidade que viemos aqui defendendo como traço de especificidade do profissional de Letras. Em outras palavras, se enfocarmos o relatório não somente como uma narração pouco precisa de fatos educacionais, encaminhamos a discussão para a valorização do relatório enquanto possibilidade de formar o educador a partir da análise pontual do dado de sala de aula. Sendo assim, perguntamos se é possível entender o relatório de estágio como um trabalho de análise e interpretação de dados que tome como referencial o tratamento científico de dados coletados em situação de aula. Para tanto, devemos também questionar o que está sendo entendido como tratamento científico dos dados e como ele pode se dar durante o estágio, bem como quais as possibilidades de discussão sobre formação docente a partir deste conceito que viemos aqui chamando de “cientificidade”.

O que estamos fazendo, ao concluir este trabalho, é abrir outra discussão. Embora defendamos a pesquisa como eixo formativo não negligenciável na graduação, concluímos expondo nossa preocupação como o que tem sido chamado de pesquisa científica na universidade hoje, e que merece urgente reflexão.

 

Notas

[1] O estudo incidiu sobre 30 relatórios de estágio escritos entre os anos 2001 e 2002 para as disciplinas Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I e II, ministradas pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto.

[2] Sugerimos a leitura de RODRIGUES, Maria das Graças Soares (2002). A Organização do relatório de prática de ensino de língua portuguesa – um perfil textual do concluinte de Letras. Tese de doutorado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.

[3] Pode-se dizer que essa concepção foi, entre outros, motivo para a criação do Seminário de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa da Faculdade de Educação da USP por parte dos professores que ministram a disciplina, espaço em que os estudantes apresentam trabalhos derivados de seu relatório de estágio.

[4] http:// www.mec.gov.br.

 

Referências bibliográficas

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. (1982). História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática.

BRAIT, Beth. (1995). Língua e literatura: uma falsa dicotomia. In: Revista da ANPOLL. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, n.1.

COSERIU, Eugenio (1979). Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança lingüística. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo.

ILARI, Rodolfo; POSSENTI, Sirio. Ensino de língua e gramática. In: CLEMENTE, Elvo; KIRST, Marta. (orgs.). (1989). Lingüística aplicada ao ensino de português. Porto Alegre: Mercado Aberto.

SALOMON, Delcio Vieira. (2004) Como fazer uma monografia. São Paulo: Martins Fontes.

 

*Professor de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FE/USP.
**Mestre em Educação, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Integrante do GEPPEP – Grupo de Estudo e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise. Professora da Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL.

    

 

Lívia Lima da Silva

 

Minha experiência no projeto “Ler e escrever” foi muito produtiva. O projeto é uma oportunidade de estágio que, como todos deveriam ser, nos ensina muito não somente sobre os conteúdos abordados na Universidade, e que se fazem necessários no dia-a-dia na escola, mas também sobre todas as características que são inerentes ao trabalho escolar, a rotina, o relacionamento com as pessoas que trabalham na escola, desde inspetores, professores, coordenador e diretor.

Sobretudo em relação ao relacionamento, a experiência de conviver com as crianças foi a mais importante. Elas transmitem muita alegria, e isso torna o trabalho com elas muito agradável. É interessante analisar seu comportamento e a forma como vão adquirindo os conhecimentos, dentre eles a leitura e a escrita. Eu, pessoalmente, tive a sorte de ter sido muito bem recebida pelos alunos e pude construir um relacionamento de afetividade mútua entre mim e eles.

Em geral, esse bom relacionamento favoreceu o meu trabalho na sala de aula. Meu papel como aluna-pesquisadora, além de ajudar a professora na preparação das atividades, foi, sobretudo, dar auxílio às crianças, ajudando-as nas dúvidas que freqüentemente possuíam. De maneira geral, acredito que minha presença fez diferença no apoio para a aprendizagem dos alunos.

Acredito que os estudantes costumam ver a aluna-pesquisadora como uma espécie de ponte entre eles e o professor. Eles pediam que eu os ajudasse, para que, assim, pudessem ser aprovados pela professora. Isso também causou efeitos negativos, pois, muitas vezes, se acomodavam e esperavam que eu lhes desse as respostas, sem que precisassem construí-las.

Outra característica negativa é a questão da autoridade. De modo geral, percebi que as crianças não enxergavam a figura do aluno-pesquisador como uma autoridade a quem deveriam respeitar. E, por serem muito pequenos e agitados, era difícil controlar seu comportamento em determinados momentos, ou quando a ausência da professora na sala de aula se fazia necessária.

Essas foram, a meu ver, as principais dificuldades para a realização do meu trabalho de aluna-pesquisadora. Excluído isso, tudo foi muito proveitoso. Em relação à aprendizagem da leitura e da escrita, pude presenciar a evolução da aquisição de algumas crianças, e acompanhar esse processo foi bastante interessante.

É significante analisar que cada criança tem seu modo e tempo de aprender, criando suas próprias formas de se relacionar com esse aprendizado. É importante estar atento aos detalhes que muitas vezes são determinantes para que cada aluno interprete da melhor forma possível como ele deve fazer para conseguir ler e escrever.

É possível ainda identificar traços de um ensino baseado na memória, tal qual o usado nas cartilhas, que fazem com que a criança associe as letras não apenas ao som, mas a um referencial de mundo, palavras como nomes de animais, de alimentos etc.

Percebi que foi difícil para a professora desenvolver as atividades, considerando os diferentes níveis de leitura e escrita dos alunos. Por trata-se de uma turma de 35 alunos, ela não interrompia o curso das atividades, para esperar que todos os alunos pudessem compreender igualmente os conteúdos trabalhados.

Na escola, principalmente na sala de aula, observei que as crianças da primeira série eram muito agitadas. A relação do aluno com a prática de ler e escrever muitas vezes se associa diretamente com o comportamento dele em classe. Constatei que alguns alunos que antes eram bem agitados, conforme se sentiam mais familiarizados com a escrita e a leitura, adquiriam mais capacidade de disciplina e concentração.

A professora procurava utilizar diferentes recursos para que, de modo geral, todas as crianças participassem das aulas e das atividades. Observei que, dependendo da forma como eram trabalhadas, havia uma demonstração maior de interesse, e a capacidade de compreender o conteúdo também se tornava diferente.

Neste artigo analisarei as formas como as narrativas foram abordadas em sala de aula e a reação das crianças em face dessas diferentes formas, sobretudo por meio da linguagem audiovisual da televisão e dos filmes.

Como já apontei, os alunos de primeira série eram mais agitados e acredito que isso se devia em parte pelo fato de eles ainda não estarem totalmente habituados e adaptados à rotina e à disciplina escolares. Contudo, em relação às narrativas, percebi que, de modo geral, as crianças perderam o hábito de ouvir histórias.

Walter Benjamin, um grande estudioso da comunicação e da arte, apontou para o desaparecimento do narrador na sociedade moderna, e como isso se manifestava na literatura. Ele afirma:

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. (...) É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. (1994:197)

Assim como Benjamin aponta, há o desaparecimento do narrador. Também se pode considerar que, junto com este, houve o desaparecimento do “narratário”[1], ou seja, daquele a quem o narrador se destina.

Em outros estudos de Benjamin, alinhados às teorias da Escola de Frankfurt, há a preocupação em analisar a chamada “indústria cultural”. Trata-se de um conceito que considera o conjunto de empresas e instituições que se dedicam à produção de cultura, com fins lucrativos, tais qual a televisão, o rádio, o cinema, os jornais e as revistas.

Todos esses veículos de comunicação estão presentes no cotidiano das crianças de alguma forma. Mesmo que alguns não façam parte diretamente do cotidiano delas, como acredito que venha a ser o caso dos jornais e revistas, pode-se dizer que há um reconhecimento de sua função e de seu papel dentro da sociedade.

Os meios de comunicação são os espaços públicos, onde deveria ser possível a manifestação das diferentes opiniões que surgem em nossa sociedade. Entretanto, uma das críticas à chamada “indústria cultural”, é à homogeneização, como em uma linha de produção, que não considera as distinções por valorizar a quantidade em detrimento da qualidade.

Dentre todos os veículos, a televisão é o de maior destaque em nosso país, por sua abrangência e forma como transmite conteúdos. Como analisa Bucci:

Tire a TV de dentro do Brasil e o Brasil desaparece. A televisão é hoje o veículo que identifica o Brasil para o Brasil, como bem demonstrou Maria Rita Kehl em seu ensaio Eu vi um Brasil na TV. A TV une e iguala, no plano do imaginário, um País cuja realidade é constituída de contrastes, conflitos e contradições violentas. São 156 milhões de habitantes dispersos por 8.547.403,5 km². São costumes e tradições culturais tão distantes quanto os Caiapós no sul do Pará e os imigrantes alemães de Santa Catarina. Sobretudo, são abismos sociais intransponíveis no curso de uma vida: segundo relatório sobre desenvolvimento do Banco Mundial, de 1995, a pior distribuição de renda do mundo é a brasileira. A TV produz a unidade onde só há disparidades. Sem ela, o Brasil não se reconheceria Brasil. Ou, pelo menos, não se reconheceria como o Brasil que tem sido.

Percebi, escutando e conversando com as crianças, que elas despendiam boa parte do tempo assistindo à TV. Os desenhos animados eram os programas a que mais se referiam. Os desenhos são as narrativas às quais as crianças são submetidas diariamente e que são muito mais atrativas que as narrativas tradicionais. Torrent (2007), educador norte americano, estuda esse fenômeno e afirma:

A maioria dos pais está muito ocupada com suas vidas dedicadas ao trabalho. Muitos responsáveis não percebem que o diálogo caseiro foi corroído, expulso de casa pelas mídias eletrônicas/digitais. Não há mais avôs e avós contando histórias para as crianças. Hoje, são as mídias (principalmente, a comercial) as contadoras de história de todas as famílias.

Diante disso, é possível dizer que se trata de um fenômeno realmente reconhecido pelos estudiosos não só do nosso país, o fato de as crianças conviverem cotidianamente com a linguagem audiovisual, sobretudo da televisão.

Uma das situações que me fez refletir sobre esse assunto foi em uma ocasião na sala de aula em que fizemos uma leitura em conjunto de uma história em quadrinhos da Turma da Mônica. A professora realizou em conjunto a formação de uma história, porque não havia texto nos quadrinhos, e as crianças foram, então, relatando o que achavam que estava acontecendo. Tratava-se de uma história simples envolvendo as personagens da Turma.

A professora, então, perguntou aos alunos de onde eles conheciam os personagens. Eles foram respondendo e falaram que os conheciam dos gibis, mas também dos filmes a que assistiam, dos DVDs. Achei muito interessante, porque, em comparação com a minha infância, quando não existiam desenhos animados da Turma da Mônica, a única referência que tinha eram as histórias em quadrinhos.

Acredito que, inserido dentro da proposta de indústria cultural, há uma tendência de transformação de referências antigas para dentro da proposta audiovisual. Assim também acontece com os contos de fadas que foram utilizados pela Disney e que são mais associados aos filmes produzidos por essa empresa do que aos seus autores originais, como Perrault ou La Fontaine.

Como afirma Pillar (2001), a Disney foi e continua a ser uma das maiores educadoras do século:

Os filmes, sobretudos os da Disney, são muito utilizados na escola. Minha professora tem abordado desde o início do ano os contos de fadas e ela realiza diversas formas para trabalhar as narrativas. Ela procura aliar a leitura da história para toda a classe, e quando possível utiliza algum recurso como os filmes. Já assistimos na escola, Branca de Neve, Cinderela, além de Procurando Nemo, na semana do Dia das crianças, que não fazia parte da temática dos Contos de Fada.

No trabalho com a história de Pinochio, por exemplo, observei um fenômeno no comportamento das crianças. A professora trabalhou de formas variadas; primeiro as crianças ouviram a história em um CD de áudio, como já fizeram em outras aulas, com outras histórias. Era costume repetir uma, duas ou três vezes a história porque as crianças ficavam dispersas. Logo depois, a professora leu outra versão de um livro. O comportamento se repetiu, ou seja, elas continuaram distraídas.

Em outro dia, os alunos foram assistir ao filme de desenho animado sobre o Pinochio. Percebi então que as crianças ficam muito mais concentradas. Isso demonstra o que venho afirmando, isto é, que se perdeu a tradição de ouvir histórias, como antigamente, e isso hoje só acontece através da mediação dos meios de comunicação, principalmente a televisão e o cinema.

É interessante notar como, junto com a imagem, a história ganha mais valor. Em um desenho animado, além da imagem, há o apelo da ação, do movimento e do som que fazem com que a criança se concentre mais e preste mais atenção, para não perder nenhum detalhe.

É assim que o filme acaba ocupando o espaço do gibi, do livro, tornando-se mais atrativo, influenciando também o hábito da leitura. Pode-se afirmar que atualmente na sociedade há uma depreciação do costume de ler porque os produtos culturais audiovisuais são muito valorizados. Isso influencia o processo de alfabetização, pois, se não há um estímulo para realizar a leitura, também não o há para a aprendizagem do código. Conforme analisa Baccega (2002):

Ocorre que a lógica da escritura foi colocada em segundo plano nas últimas décadas. Ela foi ultrapassada pela hegemonia audiovisual e isso traz conseqüências. (...) Podemos falar, no caso, da passagem das culturas orais para a lógica da escritura e, por fim, à hegemonia audiovisual, embora tenhamos a convivência de todos esses tempos e destempos em termos de Brasil e de América Latina. Assim podemos assistir à passagem das culturas orais para a hegemonia audiovisual, sem que se passe pela escritura. Aí temos o que se pode chamar de oralidade secundária, mais ligada aos meios de comunicação, sobretudo à televisão, que aos livros. A alfabetização que as crianças trazem para a escola é essa: oralidade secundária, resultado da comunicação generalizada, da sociedade dos meios de comunicação. (...) Os meios construíram, portanto, uma alfabetização múltipla. Eles elaboram novas formas de conhecimento, que não podem ser recortadas, organizadas e controladas pela escola.

Por isso, pode-se afirmar que hoje as crianças já chegam à escola inseridas dentro de um contexto social audiovisual, já estão “alfabetizadas” para ele. Acredito que a escola não deve ignorar isso e, no caso da escola onde fiz o estágio, particularmente, vejo que há diálogo entre a forma tradicional de ensino, baseada nos livros, e a nova forma, a linguagem audiovisual.

Além da questão dos conteúdos, há a relação com as novas formas de narrativa. Como apontei, pode-se dizer que cada vez mais há o desaparecimento dos narradores e dos narratários, perdeu-se o hábito de contar e de ouvir histórias. Acredito que a escola deve tentar se adaptar a essa nova situação. Como os alunos são muito agitados, as inserções de meios de comunicação audiovisuais na sala de aula, às vezes, são práticas que ajudam a tranqüilizá-los, porque exigem mais concentração.

Percebo que a utilização dos recursos audiovisuais não é negativa; pelo contrário, dentro da escola, ela colabora para que o aluno se sinta mais familiarizado com o ambiente que será semelhante ao que encontra em sua casa. A criança reconhece o que faz parte do seu cotidiano, e percebo que isso estimula o interesse para a aprendizagem.

No entanto, acredito que o diálogo entre escola e meios de comunicação pode ser ainda mais explorado, e que isso pode tanto facilitar o trabalho da escola e dos professores, como também a aprendizagem das crianças, para que, mesmo inseridas em uma sociedade na qual a imagem audiovisual tem um grande valor, elas ainda possam aprender a importância de ler e escrever.

 

Notas

[1] Trata-se de um conceito de Gérard Genette. (In: GENETTE, G. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega Universidade, s/d.).

 

Referências bibliográficas

Disponível em: <http://reposcom.portcom.intercom.org.br/

BENJAMIN, Walter (1994). Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin; 7ª ed. São Paulo: Brasiliense. (obras escolhidas; vol.1)

Disponível em: <http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/

GENETTE, Gerard (s/d). O discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade.

PILLAR, Analice Dutra (2001). Criança e televisão: leitura de imagens. Porto Alegre: Mediação. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia/rm_entrevista_conteudo.asp?idioma=1&idMenu=&label=&v_nome_area=Entrevistas&v_id_conteudo=68198>

   

Segunda, 01 Dezembro 2008 00:00

A influência da oralidade na escrita

 

Vinicius Martins 

 

Introdução

As experiências descritas a seguir foram vivenciadas em uma escola municipal de Ensino Fundamental da Zona Norte da cidade de São Paulo no primeiro semestre de 2008, durante o estágio da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I, ministrada pelo Professor Doutor Valdir Heitor Barzotto. Tal disciplina permite ao licenciando, futuro profissional do ensino de Português, uma reflexão acerca dos métodos utilizados na sala de aula para que o aluno melhore seu desempenho lingüístico em sua língua materna. Essa reflexão é fruto das discussões feitas em sala de aula, a partir da leitura de textos e das horas de estágio exigidas pela disciplina, que se dividem entre observação e regência de aulas[1]. O estágio aqui descrito se dividiu da seguinte forma:

  • Acompanhamento da Reunião de Jornada Pedagógica entre os professores e a coordenadora pedagógica, organizada para discutir o livro didático e o conteúdo dos programas preparados para as classes (4 horas);
  • Descrição da escola (2 horas);
  • Observação de 35 aulas nas 5ª séries, 4 aulas nas 6ª séries e 2 aulas na 8ª série (41 horas-aula);
  • Regência de 20 aulas nas 5ª séries (20 horas-aula).

 

Portanto, foi cumprido um total de 67 horas de estágio que deram origem a um detalhado relatório, a partir do qual este artigo foi extraído. O intuito do presente estudo é se concentrar somente no que se refere à influência da oralidade na escrita, tendo como corpus redações de alunos da 5ª. série do Ensino Fundamental (EF), analisando e propondo atividades que visem a proporcionar aos estudantes formas de identificação das principais diferenças entre língua falada e língua escrita, a fim de que eles percebam traços orais que não deveriam aparecer em um texto formal. Dessa forma, fica claro que não será considerado neste artigo nenhum outro aspecto de importância metodológica que não o supracitado.

Acredito que as horas de estágio me proporcionaram um contato mais direto com o ensino de Português na instituição, tal como me aproximaram da perspectiva dos professores, alunos e demais funcionários da casa, possibilitando-me uma melhor abordagem do meu objeto de pesquisa, como bem observam Lüdke e André (1986:26):

Usada como o principal método de investigação ou associada a outras técnicas de coleta, a observação possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado, o que apresenta uma série de vantagens. Em primeiro lugar, a experiência direta é sem dúvida o melhor teste de verificação da ocorrência de um determinado fenômeno. “Ver para crer”, diz o ditado popular. (...).
A observação direta permite também que o observador chegue mais perto da “perspectiva dos sujeitos”, um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações.

Dentro do continuum elaborado por Buford Junker (apud LÜDKE e ANDRÉ; 1986: 28-29), que posiciona o pesquisador dentro de quatro pontos que vão desde a total explicitação até a não-revelação, fui um “participante como observador” para os alunos, pois, apesar de ter-lhes revelado que estava ali para observar as aulas e a classe, não lhes explicitei que também analisaria suas produções escritas; fui um “observador como participante”, já que revelei às classes minha identidade e parte dos meus propósitos, fato pelo qual não cheguei a ser um “participante total”; e fui um “observador total”, porque em grande parte da observação não interagi com o grupo observado.

 

A influência da oralidade na escrita

O tema da influência da oralidade na escrita se constituiu como espinha dorsal das atividades de estágio. O fenômeno foi percebido logo no primeiro dia de observação, quando assistia às aulas das 6as. séries. Posteriormente, conversando com a professora que leciona na 5ª. e na 8ª. séries, ela me relatou que tal influência era perceptível em ambos os níveis. Isso pode ser explicado tendo como base o fato de os alunos se familiarizarem pouco com a escrita e a leitura, ou simplesmente por dedicarem a maior parte do tempo a se comunicarem de forma oral e não escrita, ou ainda por desconhecerem determinadas diferenças entre o registro oral e o escrito, ou por uma série de outras razões.

Discorrendo sobre o tema, Neves (2001:339) faz a seguinte constatação:

Mais uma vez, o que se afirma, aqui, é que cabe à escola dar a vivência plena da língua materna. Todas as modalidades têm de ser “valorizadas” (falada e escrita, padrão e não-padrão), o que, em última análise significa que todas as práticas discursivas devem ter o seu lugar na escola. E mais uma vez se afirma, por outro lado, que à escola, particularmente, cabe o papel de oferecer ao usuário da língua materna o que, fora dela, ele não tem: o bom exercício da língua escrita e da norma padrão.

Para esta análise, considerarei apenas as disposições sintáticas que indiquem influência oral, tal como marcadores conversacionais, desconsiderando demais ocorrências que não se enquadram na norma padrão, principalmente no que diz respeito à ortografia. Feita a ressalva, apresento nove orações selecionadas a partir da produção escrita dos alunos da 5ª. série.

(1) Quando jogaram ela da janela ela estava viva.
(2) (...) e não tivesse pessoas que brigam, ia ser melhor e que não tivesse tanto lixo e assim ela ficaria mais limpa, e que as pessoas não roubassem as coisas dos outros e que dessem uma comida boa (...).
(3) Eu gosto da escola porque eu vejo os meus amigos e porque eu aprendo e também vou nos passeios.
(4) A professora manda lição de casa e eles não fazem a lição de casa.
(5) O que eu não gosto é quando eu chego atrasado.
(6) (...) Um dia eu falei pra uma amiga minha ela falou que não era a mãe dela que pagava por isso (...).
(7) A e também na nossa escola ano passado teve muitas brigas na escola (...).
(8) (...) e saiu correndo o leão aí os cara saiu correndo lá pra casa da menina.
(9) (...) essa tragédia aconteceu faz tempo.

Como podemos observar, nessas nove frases colhidas das redações, a influência oral é bastante evidente. Na maioria delas isso é perceptível devido à quantidade de repetições, tanto de pronomes como de substantivos e preposições. Em (1), a repetição do pronome ela poderia ter sido evitada com o uso do pronome clítico: e.g. Quando a jogaram da janela, ela estava viva. No entanto, como aponta o estudo de Duarte (1989), o clítico no português brasileiro (PB) é condicionado pelo grau de escolaridade, pois na quase totalidade dos casos é adquirido primeiro na escrita e só posteriormente na fala. Isso explicaria o fato de alunos da 5ª. série não dominarem o uso do pronome clítico e repetirem o pronome do caso reto, o que, aliás, é muito mais freqüente no PB.

Em (3), (4) e (7), para evitar a repetição, bastaria simplesmente excluir os pronomes e os substantivos que se repetem, pois tal feito não prejudicaria em nada a compreensão das frases. Em (2), a constante repetição da conjunção coordenativa aditiva (e) e da conjunção integrante (que) mostram que esse apoiador conversacional de grande presença na fala também é levado à escrita.

O mesmo ocorre com os marcadores conversacionais A (7) e (8), aquele é usado no diálogo para indicar que o falante acaba de se lembrar de algo, embora o uso desse marcador não seja aconselhável no registro escrito padrão, em gêneros como a ficção, em que o escritor tem liberdade para usar termos mais próximos da linguagem oral – sobretudo quando se está escrevendo um diálogo – o marcador em questão é transcrito da seguinte forma: Ah, e muitas vezes acompanhado de um ponto de exclamação (Ah!). Quanto ao , esse é um marcador utilizado simplesmente para indicar a continuidade do que se está narrando e também não é aconselhado em um texto padrão.

No registro escrito, ao menos que o escritor queira intencionalmente se aproximar da oralidade, apoiadores e marcadores conversacionais não têm utilidade, seja porque se tornam desnecessários seja porque há na escrita uma série de outras palavras, pontuações etc que substituem esses recursos da fala de maneira mais coerente com o registro escrito.

Em (5), (6) e (9), apesar de não haver repetição de palavras, apoiadores ou marcadores conversacionais, a influência da oralidade ainda é fortemente perceptível, isso porque as estruturas utilizadas nessas frases remetem ao registro oral e muito pouco ao registro escrito padrão. O que se percebe em (5) e (6) é uma prolixidade muito própria da fala, uma vez que na escrita costumamos ser mais diretos: “Eu não gosto de chegar atrasado” e “Uma amiga disse que não era sua mãe que pagava por isso” já seriam suficientes para transmitir a idéia central da frase ao leitor, enquanto que, ao contornar essas idéias com informações e palavras irrelevantes, como foi feito na frase em questão, percebemos que o estudante ainda não possui total domínio da escrita padrão.

Em (9) não há sequer prolixidade, apenas percebemos, como falantes nativos da língua, que o termo faz tempo, como está empregado na frase, se aproxima ao relato oral ou simplesmente se distancia do registro escrito padrão, que prefere a variante “há muito tempo”. Esse termo costuma ser freqüente no gênero fábula ou demais histórias infantis, que por sua vez (devido ao público a que é destinado), está mais próximo de uma linguagem oral do que da escrita padrão. Seria de grande utilidade um estudo que analisasse a influência dos gêneros literários infantis na escrita de estudantes no processo de desenvolvimento dessa destreza, assim, teríamos uma melhor percepção do que é influência oral e o que é influência literária, ainda que de uma literatura mais próxima da oralidade.

 

Um caso específico

Um dos estudantes que teve a redação avaliada é boliviano, tendo, portanto, o português não como língua materna à semelhança dos seus colegas, mas como L2. Chamo atenção para as seguintes ocorrências na redação do aluno em questão:

(10) Tinha uma vez uma menina que se dormio.
(11) A meia noite apareceran extraterrestres.
(12) A menina seguiu dormindo.
(13) (...) de pronto os extraterrestres entran no quarto da menina e a mataron.
(14) E os extraterrestres voltaron para o planeta deles.
(15) Os pais ficaron con medo.
(16) Os extraterrestres fizeron polvo con a pistola que utilizaron para matalo.

É evidente a influência do espanhol na redação do garoto. Em (1) não fui capaz de explicar o uso de tinha na frase, visto que em espanhol, como em português, a mesma construção pode ser realizada com o verbo ser (Era uma vez / Era una vez). Já o se dormio é um evidente reflexivo espanhol. Em (11), (13), (14), (15) e (16) os verbos seguem a conjugação do espanhol e a preposição con também está transcrita no mesmo idioma.

Ainda que a construção em (12) seja possível em português, o verbo seguir utilizado nesse contexto é mais comum em espanhol. Em (13) também temos a presença do advérbio de pronto, e o perfeito uso do clítico acusativo a também pode ser uma influência da língua materna do garoto, já que, contrariamente ao que ocorre no PB, em espanhol o clítico é comum na fala, sem que isso indique marca de registro formal ou informal – a mesma explicação serve para o matalo em (16)[2].

Dessa forma, o trabalho a ser realizado pelo professor com esse aluno deverá levar em conta que ele está em situação de desvantagem aos seus colegas, visto que não é falante nativo do idioma e, muito provavelmente, também não usa o português no ambiente familiar. Também cabe aqui uma reflexão quanto ao uso do livro didático por estudantes de português como L2 inseridos no contexto educacional regular. O livro didático já recebe críticas quanto ao seu conteúdo direcionado para os alunos brasileiros por se dirigir a um estudante idealizado e muito distante da realidade educacional do país. Será que um material que já é acusado de não servir ao seu público-alvo pode ser útil a alunos estrangeiros? Será que o ensino público brasileiro está preparado para lidar com este tipo de alunado?

 

Atividades

Como já citado, as atividades elaboradas durante a regência pretendiam desenvolver nos estudantes a capacidade de identificar as principais diferenças entre língua falada e língua escrita, a fim de que eles percebessem traços orais que não deveriam aparecer em um texto formal. Seria muito pretensioso acreditar que com as poucas aulas sobre o tema os alunos já passariam a não ser mais influenciados pelo registro oral. Talvez, mesmo depois de um ano letivo discorrendo sobre o assunto, um professor não conseguiria obter resultados plenamente satisfatórios devido aos motivos já expostos, isto é, o pouco contato dos estudantes com a escrita e a leitura, o desconhecimento das diferenças do registro oral e do escrito etc. Contudo, não há dúvida de que fazer os alunos refletirem sobre ambos os registros por meio das atividades elaboradas já proporcionaria algum efeito positivo.

A primeira atividade consistiu em colocar o seguinte texto na lousa:

“Português é fácil de aprender porque é uma língua que se escreve exatamente como se fala.”

Pois é. U purtugueis é muinto fáciu di aprender, purqui é uma língua qui a gente iscrevi exatamenti cumu si fala. Num é cumu inglêis qui dá até vontadi di ri quandu a genti discobri cumu é qui iscrevi algumas palavras. Im purtuguêis não. É só prestatenção. U alemão pur exemplu. Qué coisa mais doida. Num bate nada cum nada. Até nu espanhol qui é paricidu, si iscrevi muito diferenti. Qui bom qui a minha língua é u portuguéis. Quem soube sabi iscrevê.

(Jô Soares)

Os estudantes ficaram surpresos diante do texto e, em seguida, tomando uma postura extremamente normativa, começaram a debochar dos “erros” que o autor havia cometido. Uma breve folheada nos livros didáticos nos permite afirmar que a sociolingüística chegou à escola; mas será que os alunos entenderam a mensagem? O fato de eles não terem percebido a ironia e o humor do texto também é lamentável. O momento era perfeito para esclarecer alguns termos (de forma que alunos da 5ª. série pudessem compreender), pois, apesar de tudo, o texto havia chamado a atenção da classe.

Comecei explicando que norma padrão é aquela tida como norma modelo e que, se não seguimos tal norma no nosso falar cotidiano, não significa que falamos “errado”, significa apenas que em determinada situação falamos sem usar o modelo. Disse que a proposta do texto é escrever como se fala e expliquei que na fala, pelo menos os paulistanos, costumamos dizer [u] quando se escreve [o], [i] quando se escreve [e], e geralmente quando a palavra termina em [es] ou [as], colocamos um [i] no meio e falamos [‘mais] ao invés de [‘mas] e [in'gleis] ao invés de [in'gles]. Portanto, ao contrário do que diz o título do texto, a fala é diferente da escrita.

Na próxima atividade, cinco frases retiradas de redações de alunos foram transcritas na lousa e a classe deveria dizer o que estava fora do padrão, segundo a norma da escrita, sabendo que tais frases apareceram quando a professora desses alunos lhes pediu que fizessem uma redação em registro formal.

Expliquei a diferença entre texto formal e informal dizendo que um texto informal é um texto que, geralmente, será lido por alguém que conhecemos que temos certa intimidade e liberdade para escrever do modo que quisermos, enquanto no texto formal devemos seguir algumas regras, ainda que estejamos escrevendo para alguém que conhecemos, deveríamos escrever seguindo as normas gramaticais. A redação que fazemos na escola, embora seja lida por um professor que conhecemos, deve ser escrita como um texto formal, procurando colocar as palavras de acordo com as normas gramaticais, até porque seremos avaliados por isso. As frases eram as seguintes:

(17) “Aqui na escola gosto de todas as pessoas que trabalham aqui”.
(18) “O garoto estava falando com sua mãe, daí apareceu um homem”.
(19) “Espero que esse ano seja tudo de bom”.
(20) “Naquela casa num tinha nada para comer”.
(21) “Eu não deixaria as tias trabalharem”.[3]

Na maioria das classes em que essa atividade foi aplicada, os estudantes tiveram pouca dificuldade em perceber que o problema em (17) era a repetição do aqui, em (18) era o daí, que não deveria aparecer no registro formal, e em (20) era o uso de num por não. No entanto, os alunos não conseguiram perceber que a expressão tudo de bom em (19) era excessivamente informal para uma redação que deveria ser escrita em registro formal e que o termo tias em (21) se referia, na verdade, às serventes da escola e não às irmãs dos nossos pais e, assim, no texto escrito formal as coisas deveriam ser nomeadas de forma a evitar a ambigüidade.

Na última atividade, escrevi oito trechos na lousa; cinco deles foram extraídos de obras literárias, eram elas: O Primo Basílio, de Eça de Queirós; A Revolução dos Bichos , de George Orwell; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Macunaíma, de Mario de Andrade. Os outros três trechos foram retirados de transcrições de fala do NURC/SP, sendo feitas as devidas alterações, isto é, colocando pontuação e retirando as marcas de transcrição. A partir do conteúdo já lecionado sobre as características da fala e da escrita, a classe deveria descobrir quais trechos foram extraídos de obras literárias e quais eram transcrições de fala. Vale lembrar que o trecho retirado de Macunaíma foi estrategicamente colocado em último lugar.

O objetivo desta atividade é fazer com que os estudantes percebam recursos utilizados na escrita e identifiquem as diferenças entre fala, escrita e de registros. Devido ao espaço limitado do presente artigo, ilustrarei a atividade com apenas três trechos, sendo o primeiro de Madame Bovary; o segundo, uma transcrição de fala; e o terceiro uma passagem de Macunaíma.

Trecho 1
O festim foi longo, ruidoso, mal servido; havia tanta gente que mal se podiam mover os cotovelos, e as tábuas estreitas que serviam de bancos ameaçavam quebrar-se ao peso dos convivas. Estes comiam fartamente, tratando cada qual de defender sua parte.

Trecho 2
Dizem né? Você vê, dentro da profissão do vendedor a coisa mais difícil é você manter realmente o indivíduo oito horas em contato direto com os clientes. Uma coisa realmente difícil, então a gente inclusive pede para que o indivíduo não perca tempo nesses horários, certo?

Trecho 3
Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três pra maloca.

De modo geral, os alunos percebiam como características da escrita o excesso de descrições, léxico pouco usual na fala cotidiana, e determinadas estruturas, como, por exemplo, com o passar do inverno , estrutura inicial do trecho transcrito de A Revolução dos Bichos que alguns alunos disseram que “lembrava o começo de uma história”. Na passagem de Madame Bovary, eles perceberam facilmente que se tratava de um trecho retirado de livro, porque descrevia uma cena e pela presença das palavras festim e convivas. No segundo trecho, todas as classes perceberam sem dificuldade que se tratava de uma transcrição de fala devido aos marcadores conversacionais e certo.

No trecho de Macunaíma, os alunos responderam sem hesitar que se tratava de transcrição de fala e justificaram sua resposta com a presença da palavra mano. Coloquei propositalmente um trecho de Macunaíma nessa atividade para mostrar aos estudantes que marcas da oralidade também poderiam ser inseridas para um texto literário, contudo, ressalvei que se tratava de uma obra de ficção, pois em um texto formal as marcas de oralidade (daí, não é, mano etc) deveriam ser evitadas.

 

Considerações finais

A influência da oralidade na fase de desenvolvimento da escrita em alunos da 5ª. série do Ensino Fundamental é bastante evidente. Ela aparece por meio de repetições de pronomes e outros itens léxicais, pela presença de apoiadores e marcadores conversacionais e de determinadas estruturas muito próprias da fala. Obviamente que essa influência faz parte do processo natural da fase de desenvolvimento da escrita; contudo, há indícios de que traços orais continuam presentes em redações de estudantes de níveis escolares mais avançados. Para que isso não ocorra são essenciais atividades que visem a aguçar nos alunos a capacidade de perceber que tipo de palavras e estruturas são próprias do registro oral e devem ser evitadas no registro formal escrito.

Fica claro que tais atividades devem ser elaboradas levando-se em conta as especificidades dos alunos presentes na sala de aula e não se empregando um mesmo modelo a ser dispensado a estudantes com necessidades tão díspares. Nas classes analisadas, por exemplo, embora os estudantes não consigam identificar estruturas muito próprias da fala ( tudo de bom ), foi constatado que eles são capazes de perceber a repetição e os marcadores conversacionais como traços orais que não devem aparecer na escrita formal. Contudo, tais traços aparecem em suas redações; assim, talvez parte dos problemas de escrita dessas turmas já sejam solucionados com uma simples revisão de texto após a conclusão da redação.

A maioria dos alunos que tiveram suas redações analisadas teve um desenvolvimento condizente com o seu nível escolar, o que, infelizmente não é o que ocorre em muitas outras escolas brasileiras, como observa Semeghini-Siqueira (2006:13):

Por outro lado, tais dificuldades [leitura e escrita], se relacionadas com a alfabetização, não serão solucionadas pelo professor de 5ª série, uma vez que esse tópico não faz parte de sua formação inicial. Certamente, esse “impasse” é resultante não só do contexto educacional adverso, mas também da formação inicial do professor de língua materna. Do professor formado em qual espaço?
Neste contexto, cabe também uma pergunta: Por que tantos alunos chegam à 5ª série com restrita capacidade de usar a língua materna ao ler e escrever? Muito além de um método de alfabetização global ou fônico ou misto/eclético, é preciso considerar o grau de letramento/literacia emergente com que a criança de idade X chega à escola, qual é sua imersão no mundo letrado.

O fato de muitas crianças chegarem à 5ª. série com dificuldades de leitura e escrita e de várias dessas dificuldades não poderem ser sanadas devido ao não-preparo do professor de EF e de Ensino Médio (EM), evidencia o trabalho escolar como uma rede pela qual todos estão ligados de maneira direta ou indireta. Para que os docentes de EF e EM possam desenvolver seu trabalho de maneira satisfatória é necessário que os professores responsáveis pela educação infantil tenham executado bem as tarefas que lhe são cabíveis, entre elas a alfabetização dos alunos. Estamos todos de acordo que para a boa compreensão de todas as disciplinas é imprescindível que os alunos dominem de maneira razoável a leitura e a interpretação textual. O trabalho do educador infantil, cada vez mais desvalorizado, é a base da educação de qualquer aluno; logo, também de qualquer professor. É extremamente necessário para o ensino que esses profissionais sejam bem formados, a fim de que se tornem capacitados a alfabetizar os estudantes, proporcionando-lhes um contato íntimo com a leitura e a escrita. A educação infantil não deve ser um simples espaço recreativo, destinado somente a brincadeiras, pintura e artesanato.

 

Notas

[1] Para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I são exigidas um mínimo de 60 horas-aula de estágio, das quais 40 horas-aula são dispensadas à observação de aulas de Português e 20 horas-aula à regência do ensino da língua materna.

[2] Em espanhol não se usa hífen para separar o clítico.

[3] Os alunos foram informados de que esta frase fora extraída de uma redação que tinha como tema “Como Seria Minha Escola Ideal” e que, portanto, se referia ao ambiente escolar.

 

Referências bibliográficas

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia (1989). “Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil”. In: TARALLO, Fernando (Org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas.

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. (1986). “Métodos de coleta de dados: observação, entrevista e análise documental”. In: Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, p. 25-44.

NEVES, Maria Helena Moura (2001). “Língua falada, língua escrita e ensino: reflexões em torno do tema”. In: URBANO, Hudinilson... [et al.]. Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. São Paulo: Cortez, p. 321–332.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (2006). “O poder do passado nas práticas escolares de oralidade, leitura e escrita contemporâneas: reconstituição de alicerces para otimizar o grau de letramento/literacia de jovens brasileiros”. Anais/Actas. XIV Colóquio da AFIRSE “Para um balanço da investigação da educação de 1960 a 2005”. Lisboa: Universidade de Lisboa/FPCE.

    

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