Processos de leitura: por um diálogo entre os estudos da língua e as práticas de ensino

 

 Isabela Trazzi

 

Introdução

Este trabalho de observação e análise da prática docente em Língua Portuguesa foi desenvolvido em classes de 6ª. e 7ª. séries do Ensino Fundamental II na cidade de São Paulo, durante o primeiro semestre de 2008.

Com base em uma entrevista informal do professor acompanhado, em reuniões de planejamento e no registro de observações do cotidiano escolar, procurei verificar em que medida a prática docente dialoga com pesquisas metodológicas que fundamentam as propostas oficiais.

Para uma observação sistemática de como esse diálogo entre a universidade e a escola se dá (ou não), defini como foco de análise a abordagem interpretativa do texto, uma vez que, nos cadernos fornecidos pela atual Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, seu estudo sobrepuja, por exemplo, o da gramática.

A escolha das atividades de compreensão do texto como via de acesso ao estudo do diálogo entre as teorias lingüísticas e a prática de ensino deveu-se, ainda, por já revelar a influência de uma corrente teórica da década de 1960 que instituiu, segundo Marcuschi (2001), como nova unidade lingüística, o texto, cuja análise e produção substituiriam o estudo formal da língua no final da década de 1990. Trata-se da assimilação, pelas propostas oficiais, da nova concepção de língua, que será acompanhada de novas orientações de ensino.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP), conforme assinala Marcuschi (2001), sugere-se que seja ensinada a distribuição (classificação) dos textos em gêneros com características peculiares e socialmente organizados. Essa perspectiva de análise e descrição do texto é também destacada no Caderno do Professor de 6ª. série do Ensino Fundamental, organizado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, no qual figura como um conteúdo a ser trabalhado[1]:

1. Tipologias e gêneros textuais nos dois primeiros semestres;
2. Texto, discurso e história nos dois últimos semestres.

Destaca-se que o fundamento teórico (teoria dos gêneros) da proposta é expresso de forma ainda mais clara com a indicação da fonte: Gêneros textuais e ensino, de A. R. Machado e M. A. Bezerra.

Outras reflexões teóricas – como as reflexões sobre as funções da linguagem de Jakobson (1973) ou aquelas sobre as noções de registro e norma propostas pela Sociolingüística (também elencadas nos PCNLP ) – perpassam as atividades sugeridas pelos autores do Caderno , como se pode observar na seguinte proposta de elaboração de um quadro com os aspectos característicos do gênero a que o texto lido pertenceria:

nome do texto

função comunicativa social

marcadores de tempo

nome do autor

Tema

o tempo verbal no título e no corpo da notícia

referência de publicação

linguagem/ registro

gênero textual

 

A observação do cotidiano escolar, no entanto, aponta grandes diferenças entre a abordagem proposta pelos documentos oficiais e a abordagem do professor acompanhado. Para refletirmos sobre essa distância entre a academia (ainda que opacamente representada pelas propostas oficiais) e a escola fundamental, lembremos do problema destacado por Geraldi (2003) da separação entre o pesquisador (produtor do saber) e o professor (transmissor do saber). Dessa cisão, e da tomada de novidades de pesquisa como algo que anula tudo que se pensava anteriormente, resultam duas reações do professor do primeiro grau: resistência às novidades e insegurança.

Nesse sentido, a postura resistente e despreocupada do professor, refletida em seu desinteresse, por exemplo, pelo material fornecido pelo Estado evidencia os motivos do desprestígio e da crise de autoridade associados à imagem que se tem do professor atualmente[2].

 

Análise

Observando as aulas

Para facilitar a apresentação dos dados coletados e de sua análise, agrupei as aulas cujos contextos eram semelhantes. Primeiramente, serão observadas as aulas em que o professor elaborou questões interpretativas sem conhecer o texto; em seguida, uma aula em que o professor tinha acesso ao texto; posteriormente, aulas em que o professor perguntava o que os alunos achavam que queriam dizer os versículos bíblicos postos na lousa; e, finalmente, aulas em que os alunos responderam a questões dissertativas que acompanhavam os textos dos livros didáticos de Ciências ou História.

Nas situações descritas a seguir, como não havia nenhum livro didático disponível do qual o professor pudesse extrair algum texto que seria passado na lousa e copiado pelos alunos, e, julgando não haver nada de interessante no Caderno que folheava, o professor escreveu na lousa as seguintes questões:

1.  Fale sobre o livro que você leu e mais gostou.
2.  Comente sobre os principais personagens.
3. Se você fosse o autor do livro e tivesse que finalizar o livro de outra maneira como seria?

Semelhante ao desta aula é o contexto de outra aula em que o docente propõe a seguinte atividade: com base no texto passado na lousa por um professor eventual que o substituíra na semana anterior, ele pede que os alunos “respondam à questão”:

1. Crie 5 questões relacionadas ao texto anterior.

Nessas duas situações, como já foi anteriormente introduzido, observamos contextos semelhantes para a formulação de questões: o professor não conhece o texto que deve ser analisado, o que, poder-se-ia supor, o impeliria à elaboração de perguntas tão genéricas e tão voltadas para o gosto do aluno. No entanto, observemos uma situação diversa em que o professor conhece o texto – texto publicitário sobre o Museu Lasar Segall – que fora passado na lousa pela professora eventual e que os alunos tinham acabado de copiar. Eis as questões elaboradas:

1. Qual é o objetivo do museu Lasar Segall?
2. O que chamou mais sua atenção em relação ao texto anterior?
3. Se você fosse artista (plástico, pintor, escultor, etc...) como seria sua exposição em um museu desse porte?

Cabe a pergunta: o que justificaria, então, uma “leitura” tão desvinculada do próprio texto que o torna um simples pretexto para outras discussões que nem sempre acontecem? Para que seja evitada uma crítica (ou lamento) improdutiva do docente, é preciso verificar nas próprias teorias e discursos científicos vestígios de fundamentos dessa forma de “ler”.

Para desenvolver essa questão, estabeleceremos, inicialmente, um diálogo com Todorov (2007), que num balanço de sua relação com a literatura, empreende também uma breve revisão histórica de diversas formas de abordagem do texto literário. Conta o crítico que na década de 1920, assim como os formalistas russos, ocupou-se de aspectos exclusivamente lingüísticos do texto (forma de escapar da defesa literária da ideologia comunista), e que depois sentiu a necessidade (e vontade) de desenvolver novos métodos, na França democrática dos anos 1970, para analisar a literatura, entendida agora, também como um discurso que nasce no meio de tantos outros, dos quais partilha características. No entanto, é preciso ressaltar que essa posição adotada pelo crítico trazia as marcas do contato com os formalistas. Nesse período, estudava-se, na França, em geral, o contexto histórico da obra, sua recepção, a biografia do autor, protótipos das personagens, ou seja, deslocava-se o foco: o que importava não era o sentido do texto, mas o que o havia gerado e seu impacto. Esse exemplo de diferentes movimentos na história da crítica literária serve-nos de base para a análise da abordagem do texto nas salas do Ensino Fundamental.

Conforme afirma Geraldi (2003:171), são também percursos de leitura comuns aqueles guiados por questões que se referem exclusivamente ao que é dito no texto, que proporcionam uma “leitura-busca-de-informações”. A primeira pergunta acima, sobre o museu, induz a esse tipo de leitura do texto. Contudo, caso o professor estivesse disposto, a pergunta poderia estimular discussões como: uma obra de arte é um patrimônio cultural da humanidade e deve ser exposta num museu? Ou, é justo que uma pessoa com dinheiro a compre? (discussão sobre o estatuto de mercadoria da obra de arte). Se a primeira tende a uma leitura que se fixa no texto, a última questão é totalmente desvinculada do sentido construído nele e por ele. Destaco, ainda, a vagueza da segunda questão proposta pelo professor (“O que chamou mais sua atenção em relação ao texto anterior?”) visto que a expressão destacada abre a possibilidade de o aluno indicar algo que não está no texto.

Devo mencionar que, ao ler as respostas às questões elaboradas pelo professor na primeira situação arrolada, verifiquei que quase todos os alunos elegeram como livro predileto Peter Pan[3], que haviam lido no ano anterior. Apenas dois alunos citaram O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien. Logo, constatamos que, no caso da maioria dos alunos, a escola é o único acesso à literatura e tem feito essa mediação de forma bastante superficial. Não se trata de negar a fruição e o prazer pela obra literária, pois pelo contrário, como já disse Barthes (1973), esse impacto deve preceder a análise que não fará muito além de tentar explicar porque a obra despertou tais sentimentos, tais revoluções em nós e em nossa forma de ver o mundo. É fato que a primeira questão explorou de maneira insuficiente a fruição, a segunda levou à mera caracterização física das personagens, e a última questão (“Se você fosse o autor do livro e tivesse que finalizar o livro de outra maneira como seria?”) obteve resposta unânime por parte dos alunos: “não mudaria nada”. O que não é de estranhar... afinal, adoraram o livro?![4]

Assinalo, finalmente, com relação aos casos agrupados nesse bloco, a incoerência da “questão” proposta na segunda situação (“Crie 5 questões relacionadas ao texto anterior.”). Com base no contexto em que foi formulada – o professor interrogava longamente os alunos sobre quem havia destruído o material dos colegas da tarde – podemos afirmar que essa atividade foi proposta apenas como pretexto de “passatempo”, para que os alunos escrevessem algo para ser vistado ao final da aula, enquanto a professora solucionava o impasse da destruição.

Um terceiro contexto de leitura de textos é fundamentado na interpretação de versículos bíblicos que os alunos sorteiam e escrevem na lousa, para que o professor pergunte o que eles entendem da “palavra”, o que, na maioria das vezes, os alunos não respondem ou respondem através de paráfrases que o docente conclui. Destaco que, nesse caso, a leitura realizada se caracteriza pela simples decodificação do código: enquanto o professor pressupõe que os alunos não são capazes de entender e lhes pede para explicar o que parece óbvio, pois acabaram de ler[5] o texto, os alunos se perguntam: “o que ele quer saber?”. Além da concepção de leitura implicada nessa atividade, é discutível também, a inserção desses textos com o objetivo de depreender valores morais; justificar-se-ia, por exemplo, o tratamento da Bíblia como texto literário, cujas imagens poderiam ser analisadas; no entanto, o professor, assumidamente evangélico, introduz o texto dizendo: “Nesse mundo, não é possível fazer nada sem Deus!”.

O quarto contexto identificado corresponde à leitura de textos didáticos de Ciências e História e à resolução dos exercícios que os acompanhavam, e nesse caso, destaco algumas dificuldades encontradas pelos alunos que não se referem a problemas de construção do sentido, mas de desconhecimento da matéria. Como exemplo, posso citar a dúvida levantada por uma aluna que não sabia transformar litros em quilogramas. Saliento que o professor não considerava negativa essa atividade; ao contrário, comentava freqüentemente na sala dos professores que, em suas aulas, ajudava os alunos, pois ensinava-os a lerem os textos das diversas matérias. Com isso, não queria o professor dizer, como se pode comprovar pela observação das aulas, que fornecia diferentes “ferramentas” de leitura para tipos de textos diversos (percurso de leitura defendido por Todorov). Na verdade, a observação das diferentes situações aponta percursos de leitura que não possibilitam a produção de conhecimento, finalidade da leitura descrita por Geraldi (2003), pois a leitura, nesses contextos, é destinada à busca de informações, ou seja, concentra-se no que é dito e não explora as formas de dizê-lo.

 

Elaborando outras propostas

Considerando os problemas levantados por Geraldi e por Todorov, tentei nos estágios de regência, vincular a leitura à produção de textos, como sugere o primeiro, e elaborar questões muito mais específicas por respeitarem o texto analisado.

Apresento aqui, quatro aulas de leitura e interpretação elaboradas ao longo do estágio. A primeira delas, aplicada em duas classes de 7ª. série, corresponde à continuação de uma atividade de produção de textos desenvolvida a partir do jogo do detetive. Como verificara que os alunos se preocupavam em geral apenas com o que deveriam escrever (com as informações que deveriam inserir e que se encontravam na lousa), dando pouca atenção à caracterização dos personagens[6] ou ainda à organização da progressão temporal dos acontecimentos que, na narração indicam, obrigatoriamente, uma transformação de estados (FIORIN, 1991), levei aos alunos dois textos diferentes: uma notícia de jornal, cujo tema era a reconstituição do assassinato da menina paulistana Isabella Nardoni, em março deste ano, e o “Poema tirado de uma notícia de jornal” de Manuel Bandeira. Para facilitar a apresentação dessa proposta, reproduzo a seguir os referidos textos:

 

TEXTO 1: Começa reconstituição da morte de Isabella
(por Juliana Cardilli)

      Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá não participam do procedimento. Defesa dos dois suspeitos alega que a polícia lida apenas com uma hipótese para o crime.
     Começou às 9h40 da manhã deste domingo (27) a reconstituição da morte da menina Isabella Nardoni, no Edifício London, na Vila Mazzei, Zona Norte de São Paulo, onde ela foi assassinada no dia 29 de março.
     Isabella morreu após ser espancada, asfixiada e jogada do 6.o andar do edifício, onde morava o pai e a madrasta dela, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, considerados pela política suspeitos do crime. Eles não participam da reconstituição porque, segundo a defesa, a polícia lida apenas com uma hipótese para o crime e tem versões que divergem com a do casal. [...][7].

Fonte: Folha de São Paulo, março de 2008, destaque meu.

 

TEXTO 2: Poema tirado de uma notícia de jornal

 João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da [Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(In: Libertinagem, de Manuel Bandeira)

Pergunto aos alunos se seria possível identificar, no primeiro texto, uma seqüência de fatos, acontecimentos. Eles respondem afirmativamente e começam a contar o que havia acontecido, baseando-se também em outros textos veiculados pela mídia. Peço para que eles se atenham ao texto da lousa. Eles novamente afirmam ser possível e lêem a frase, aqui, sublinhada. Em seguida, pergunto o quê naquela frase indicava a progressão dos acontecimentos. Um aluno responde que é a vírgula. Concordo e pergunto, finalmente, se seria possível alterar a ordem em que os acontecimentos são colocados nesse texto, exemplificando: “Isabella morreu após ser jogada, asfixiada, espancada”. Os alunos respondem: “Ah! Até é, professora, mas ia ser engraçado!”. Essa reação dos alunos mostra a compreensão de que a ordem é também significativa. Em seguida, uma aluna questiona: “Mas, professora, eu posso escrever: Isabella foi espancada, asfixiada e jogada, por isso morreu?”. Concordo e coloco na lousa as seguintes frases:

Isabella morreu porque foi espancada.
Isabella foi espancada e por isso morreu.

A partir dessas frases, explico que há várias formas de escrever uma mesma informação e que cabe a nós escolhê-las de acordo com nosso estilo e objetivo. Exemplifico: se queremos enfatizar a causa da morte da menina, qual frase deveríamos escolher? Se, ao contrário, queremos enfatizar a informação de que ela morreu, qual frase seria mais conveniente?

Prossigo, então, com uma breve comparação entre os dois textos, com o intuito de mostrar os diferentes efeitos e objetivos a que visam os textos, sendo orientada pelas seguintes questões:

1. Nesse poema de Manuel Bandeira, podemos reconhecer elementos, características de um texto narrativo como: apresentação de personagens e localização do acontecimento no espaço e no tempo. Com base no poema, o que se pode dizer sobre João Gostoso? Esse nome permite que identifiquemos realmente o personagem? O que podemos dizer sobre o lugar onde mora João Gostoso?
2. Com relação ao tempo, podemos identificar exatamente quando aconteceu o suicídio?
3. É possível descrever a ordem dos acontecimentos? Indique a ordem e diga como você chegou a essa conclusão.
4. Vinte de Novembro é data de morte de Zumbi dos Palmares. Qual seria a possível ligação dessa informação com o poema?
5. Na sua opinião, por que o autor nomeia claramente a lagoa Rodrigo de Freitas e não dá nome e sobrenome ao personagem?[8]

Após pedir que os alunos fizessem uma leitura silenciosa do texto e que algum voluntário lesse o poema em voz alta, elaboro algumas questões oralmente. Com relação à primeira questão, pergunto aos alunos se “Gostoso” era sobrenome do personagem. Eles respondem que não, que, provavelmente, era seu apelido. Concordo e pergunto se ele e sua casa seriam facilmente encontrados, já que não poderíamos achar seu nome e endereço numa lista telefônica, por exemplo. Eles respondem que talvez se perguntássemos por ele no morro da Babilônia alguém soubesse nos informar. Concordo, mas replico: “Considerando o título do poema que associa o texto, em certa medida, a um texto jornalístico que informa a morte de alguém (como o que vimos sobre a morte de Isabella Nardoni), vocês acham que esse texto realmente é informativo e poderia aparecer num jornal? Vocês acham que se alguém lesse a notícia poderia sair correndo para avisar a família? Lembremos que no texto não aparecem o sobrenome de João (nome extremamente comum) nem o número de sua casa.” Todas essas perguntas colocam em questão a referencialidade do texto. O texto parece ser informativo, mas apresenta uma imprecisão intencional: João seria alguém que vive no mundo da informalidade, uma pessoa desconhecida que se confunde no meio de tantas outras.

Com relação ao tempo em que é localizada a ação, muitos alunos respondem: “Vinte de Novembro”. Essa resposta revela a falta de atenção ao texto, no qual está expresso claramente que essa data é o nome do bar onde João fora antes de suicidar-se. Na verdade, os alunos mobilizam seu conhecimento enciclopédico – vinte de novembro é uma data, data indica tempo, logo, é quando acontece a ação. Cabe também, ao professor, avaliar sua própria estratégia em relação ao objetivo que define preliminarmente. A elaboração desse questionário, se de um lado, dirige o olhar do aluno para questões importantes do texto, pode resultar na tal leitura-busca-de-informações que o faz achar que a data que aparece no poema é a data da qual fala o professor.

Uma vez identificada por um aluno a indicação temporal do poema “uma noite”, peço que reflitam se essa indicação seria suficiente numa notícia de jornal; se uma pessoa que quisesse ir ao velório de João saberia quando este seria ou se já havia sido. Ainda com relação ao tempo, mais especificamente com relação à progressão temporal, peço para que eles se lembrem do que havíamos discutido sobre o texto jornalístico a respeito da morte de Isabella. Um aluno indica a separação das linhas e outro o advérbio “depois”. Concordo e aproveito o tema para dizer que, no texto oral, podemos marcar a ordem dos eventos com termos como , daí; mas, que esses termos deverão ser substituídos ou eliminados na escrita.

Destaco que a maioria dos alunos apresentou dificuldades para responder à quarta questão. A maioria não viu nenhum vínculo possível entre a informação de que o nome do bar levava a data da morte de Zumbi dos Palmares e o poema. Outros indicaram que os dois haviam morrido na mesma data. Na verdade, esperava-se uma resposta simples: a informação e o poema se ligam pelo tema da morte. Ou, ainda, uma reflexão sobre os mortos: João Gostoso, assim como Zumbi dos Palmares, é um “personagem” simples, pertencente a um grupo marginalizado.

Para estimular a reflexão sobre a última questão, informei aos alunos de que a lagoa já havia sido batizada diversas vezes. Já fora: Lagoa de Amorim Soares (fazendeiro de cana); Lagoa de Fagundes (Fagundes Varella, genro de Amorim Soares) e Lagoa Rodrigo de Freitas (marido da bisneta de Fagundes Varella). Comento que são sempre homens ilustres, pertencentes a classes dominantes que têm seus nomes emprestados a ruas, praças ou lagoas. Indico, ainda, que a origem dos sobrenomes se deu devido à necessidade de se fazerem contratos de casamento entre os ricos para distribuição da herança. Destaco que o resultado não foi tão produtivo, pois os alunos responderam, em geral, que se tratava de uma homenagem a Rodrigo de Freitas.

Ressalto que um dos grandes problemas enfrentados durante a regência foi a impossibilidade de mostrar aos alunos o resultado de seus esforços (ou da ausência deles). Apesar de eu ter lido e comentado a atividade de todos os alunos, o professor disse não ser necessário esse retorno, o qual considerava “perda de tempo”.

Outra aula de leitura e interpretação, cujo tema era “Memória e Sociedade: o viajante, a terra”, elaborada para os alunos da 7ª. série, foi desenvolvida a partir da proposta de oficinas de preparação para a “Olimpíada de Português: escrevendo o futuro”. Como observara que o tema da olimpíada era a relação entre a memória e a sociedade, resolvi elaborar um ciclo de aulas focalizando os narradores de Walter Benjamin[9]. Inicialmente, elaborei uma aula em que escutamos a narração daquele que podemos chamar de “narrador viajante” do célebre poema de Gonçalves Dias “A canção do exílio”. A proposta dessa aula era a discussão de diversos textos relacionados a esse para a confecção futura de uma outra “canção do exílio”. Trata-se de uma proposta pautada na sugestão de Geraldi (2003) de atrelar a leitura à produção, ou seja, de trazer o texto para a sala como um modelo. Entretanto, o professor acompanhado disse que os alunos já estavam cansados de escrever textos e que eu deveria passar apenas algumas questões na lousa.

Primeiramente, pergunto aos alunos se eles conheciam aquele poema; alguns responderam que sim, outros que não. Pergunto se eles conheciam outro texto similar à canção. Um aluno diz que ela parecia o hino nacional. Concordo plenamente e explicito que alguns versos do poema de Gonçalves Dias haviam sido inseridos no hino. Em seguida, peço-lhes que observem a data do poema. Questiono o que acontecera de importante na história do Brasil na primeira metade do século XIX. Os alunos respondem que tinha sido a independência do Brasil. Pergunto que tipo de sentimento em relação ao país eles achavam que as pessoas tinham naquela época. Como nenhum aluno responde, pergunto o que sentimos em relação à pátria na época da Copa do Mundo de Futebol ou ainda quando se declara guerra a outro país. Eles respondem que sentem orgulho, amor. Peço, então, para que, com base nessa observação, eles respondam às questões:

1. O poema opõe dois lugares “lá” e “cá”. Indique as demais oposições. Ex. as aves lá gorjeiam X as aves cá não gorjeiam.
2. Na segunda estrofe, encontramos o termo “nosso” e não mais “minha”. A quem se refere o primeiro termo?
3. Indique quais são os elementos exaltados pelo eu-lírico. Categorize-os. Ex. palmeira – elemento da flora, da natureza do país.
4. Que visão do país tem o eu-lírico?

Nesta aula, é feita ainda a leitura do poema “Minha terra” escrito por uma garota de Manari (PE), Valéria Fagundes, e lido no filme Pro Dia Nascer Feliz (2004) de João Jardim, como exemplo de como a “Canção do Exílio” ainda pode motivar a escrita de outras pessoas, assim como já foi, ao longo dos tempos, uma grande fonte de inspiração para autores como Oswald Andrade, José Paulo Paes, entre outros. Também foram lidos alguns trechos de uma reportagem sobre a cidade de Manari: “Manari, onde o IDH é baixo e água vale ouro”, redigida por Paulo Rebêlo em 2004.

A partir da leitura desses textos, foram levantadas as seguintes questões:

1. Quais são as características da terra exaltadas pelo eu-lírico?
2. Comente a diferença entre dizer:
     “Nosso céu tem mais mais estrelas,
      Nossas várzeas têm mais flores,
      Nossos bosques têm mais vida,
      Nossa vida mais amores"
      e “O céu é menos cinzento”
3. Relatos: você conhece alguém que se viu obrigado a sair de sua terra? Quais são as lembranças que essa pessoa guarda dela?

A escolha desses textos pretendeu estabelecer junto aos alunos um diálogo crítico, que fomentasse o interesse em cada um para também elaborar o seu próprio texto e visou a demonstrar a possibilidade de criar, através da comparação entre diversos textos, relações que extrapolam os limites de uma leitura meramente informativa. Apesar da apatia e do desinteresse comumente observados ao longo das aulas acompanhadas, a seriedade e coerência com que essas novas propostas foram inseridas em sala gerou nos alunos curiosidade e interesse, e, apesar do tempo incipiente, foram acolhidas com respeito e consideração.

 

Conclusão

Como procurei ressaltar ao longo deste trabalho, a simples crítica do docente acompanhado, que ressaltasse apenas sua falta de compromisso, sua superestima com relação a sua formação e subestima com relação aos alunos (eram freqüentes comentários: “Eles são tão fracos!”), não se apresenta como via mais produtiva para a compreensão do fracasso gerenciado do ensino da leitura na escola, já que como se tentou demonstrar, é possível verificar, nas próprias teorias e discursos científicos, vestígios de fundamentos dessa forma de “ler”. Conforme instruem os críticos trazidos a essa discussão, é necessário adotar a novidade sem abandonar o antigo que funciona; é preciso adequar-se ao texto e não adequá-lo a padrões (nesse sentido, cabe a crítica ao modelo de leitura sugerido pelas propostas oficiais em que se pede apenas que os alunos enquadrem os textos em determinados grupos). Essa perspectiva atenuaria implicações da adoção de certas metodologias em detrimento de outras “menos adequadas” ao contexto escolar.

Além disso, deve-se privilegiar o texto como objeto de estudo e não seus estudos, as ferramentas para seu estudo – nesse sentido, ressaltei a tentativa de eliminar, nas seqüências didáticas, o abismo geralmente existente entre o estudo do texto e de elementos externos como o contexto histórico de sua produção; a tentativa de direcionar a atenção dos alunos às formas de dizer e não apenas ao que é dito; e, ainda, a tentativa de vincular a leitura à escrita. Cabe destacar a relevância do desenvolvimento desses percursos de leitura em nosso período de formação, visto que, como assinala Todorov, atribuiu-se ao professor uma difícil tarefa: “intérioriser ce qu'il a appris à l'université mais, plutôt que de l'enseigner, le ramener au statut d'un outil invisible” (2003:33)[10]. Talvez seja essa a maior lição do professor ao pesquisador que procura, hoje, fugir às formas de ler que se fundamentam no que está ao redor do texto ou nas teorias de análise, já que é essa a única forma de leitura e fruição do texto.

 

Notas

[1] Destaca-se que a aprendizagem desse conteúdo seria avaliada numa prova aplicada em todo o estado.

[2] Cabe ressaltar as freqüentes falas do professor que revelam a tentativa de imposição de autoridade: “Eu como psicólogo que sou...”; “Caso você não saiba, eu sou advogado e posso te colocar na cadeia.”; “Já fiz vários cursos, inclusive no exterior.”.

[3] Perguntei aos alunos se era a adaptação feita por Monteiro Lobato da obra de James Barrie, mas não souberam dizer.

[4] Cabe destacar a reflexão que poderia ser feita a partir dessa questão: Qual o papel do leitor? Qual é sua liberdade de interpretação? Sua liberdade de interferência (lembremos, da interferência dos espectadores nos finais de telenovelas)?

[5] Destacamos uma passagem descrita no diário de observação de aulas em que o professor se nega a responder um recado peculiar de uma mãe, uma passagem bíblica um tanto obscura, dizendo ser professor e não analista de Bíblia.

[6] Para fornecer exemplos de como introduzir um personagem na narrativa e de como recuperar pistas que nos permitem caracterizá-los – e aceitá-los como seres (ainda que não reais) – havia selecionado trechos do poema “Morte e Vida Severina (Auto de Natal Pernambucano)” em que o próprio narrador se apresenta. Porém, o professor acompanhado disse que o texto não tinha nenhum vínculo com a matéria e que, por isso, não deveria ser apresentado.

[7] Foi colocado na lousa apenas o terceiro parágrafo, os dois primeiros foram lidos pela estagiária.

[8] Essa questão é substituída, na aula dada em outra sala, por uma questão que me pareceu mais importante e mais clara quanto à reflexão que pretendia suscitar. Ei-la: Na sua opinião, esse texto visa ao mesmo efeito e objetivo de uma notícia de jornal?

[9] BENJAMIN, Walter. (1994). O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura . Trad. Sergio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7ª. Ed. São Paulo: Brasiliense. (Obras Escolhidas; vol.1).

[10] “interiorizar o que ele aprendeu na universidade, mas, mais que ensiná-lo, dar-lhe o status de ferramenta invisível” [minha tradução].

 

Referências bibliográficas

FIORIN, José Luiz (1991). Tipologia dos Textos. In: SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Língua Portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade. São Paulo: SE/CENP. (Projeto IPÊ: Atualização e aperfeiçoamento de professores e especialistas em educação por multimeios).

FOUCAULT, Michel (2001). A verdade e as formas jurídicas. Trad. R. C. de M. Machado e E. J. Morais. Rio de Janeiro: Nau.

GERALDI, João Wanderley (2003). Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes.

ILARI, Rodolfo (2007). Introdução à semântica – brincando com a gramática. São Paulo: Contexto.

JAKOBSON, Roman (1973). Lingüística e Comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix.

MARCUSCHI, Luiz Antônio (2001). O papel da lingüística no ensino de línguas. In: Investigações Lingüística e Teoria Literária. Recife, v.13/14, p. 187-218.

TODOROV, Tzvetan (2007). La littérature en péril. Paris: Flammarion.
   
   
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1 Comentário

  • Link do comentário Reinaldo tomé Paulino Segunda, 12 Novembro 2012 13:36 postado por Reinaldo tomé Paulino

    Parabens pelo trabalho de pesquisa e regência bem feitos, que demonstra a necessidade melhor formação e preparo de professores. Eu trabalho e estudo a implantação da lei 10.639 que trata da introdução e e estudo da história e cultura Afrobrasileira nas escolas, afim de desnudar a invisibilidade dos negros na educação e sociedade, como você fez brilhantemente no poema de Bandeira.

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