Entre a lousa e a teoria

 

Diego Navarro de Barros 

 

Introdução

Este artigo “não-artigo” não apresenta soluções inovadoras para quaisquer dos vários problemas que dominam o sistema educacional de nosso país, tampouco consegue tecer uma crítica profunda sobre as raízes desses males. Pouco importa se o “manual” do bom pesquisador ensina que nunca devemos expor dificuldades próprias em nossos textos, pois é essencial para a compreensão desse documento que seu leitor tenha em mente que o mesmo foi produzido por um estudante de Letras que, em seu segundo ano de faculdade, pôde ter sua primeira experiência em uma sala de aula enquanto educador.

As análises e críticas aqui realizadas são, antes de tudo, um desabafo de todas as experiências pelas quais passei e, conforme demonstrarei mais à frente, falta-me um embasamento teórico bem firmado para conseguir fazer dos relatos aqui presentes algo mais que um diário de bordo. Isso não quer dizer, necessariamente, que todas as observações podem ser sumariamente descartadas, pois nada foi escrito somente para preencher papel, nem há uma vontade de atacar pessoas ou instituições; todo assunto abordado foi considerado, em algum momento do estágio, como ponto-chave para a melhoria do projeto. Enfim, essa “mea culpa” antecipada serve para, de início, lembrar que o artigo foi escrito por alguém ainda novo no caminho da pesquisa científica, o que não significa que não há pertinência naquilo que será trabalhado; quiçá essa inexperiência aja como novos olhos, livres de preconceitos e vícios, para assim poder abordar velhos aspectos sob uma nova ótica.

 

Algumas informações necessárias

A experiência em sala de aula começou no dia 25 de abril de 2007, na Escola Municipal de Primeiro e Segundo Graus Joaquim Bento Alves de Lima Neto, localizada no bairro do Grajaú, zona sul de São Paulo, região extremamente carente da cidade. A escola acolhe as seis primeiras séries do ciclo, o que corresponde a cerca de 210 crianças em fase de alfabetização. A sala do estagiário conta com uma turma de 37 alunos, todos com idade entre 6 e 7 anos. É importante saber que a instituição de ensino é provavelmente o único pólo cultural com que a maioria dessas crianças tem contato.

Falando sobre o aluno-pesquisador, sou bacharelando da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, cursando o segundo ano de Letras com habilitações em Português e Francês. Essas informações[1], aparentemente de cunho apenas técnico, são vitais para a compreensão deste trabalho, e é preciso que se tenha isso sempre em vista.

 

A burocracia (sempre ela)

Não cabe aqui enfocar os detalhes que atrasaram a entrada dos alunos-pesquisadores nas salas de aula, mas é sempre bom lembrar que, graças ao confuso esquema organizado, o projeto se atrasou por quase três meses, tempo significativo quando se trata de trabalho com alfabetização, e que, para resolver certos trâmites legais, foi preciso um esforço homérico da parte dos envolvidos. Por outro lado, em se tratando da escolha dos alunos pesquisadores, não parece ter existido uma preocupação tão grande quanto aos critérios de seleção, já que cada faculdade envolvida parece ter escolhido os estagiários por critério próprio; por exemplo, insiro, abaixo, o programa do curso de Letras do primeiro ano da FFLCH[2], do modo como estava formado quando entrei para o programa[3]:

Introdução aos Estudos Clássicos I e II

Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa I e II

Elementos de Lingüística I e II

Introdução aos Estudos Literários I e II

 

Excetuando-se alguns elementos da disciplina Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa e pouquíssimas coisas de Elementos de Lingüística, nada do curso preparava um estudante a alfabetizar alunos da primeira série. Sabendo disso, a prefeitura informou que os estagiários deveriam freqüentar cursos de formação na faculdade e junto à sua coordenadoria de ensino. Se não há reclamação a ser feita sobre o trabalho realizado pela Universidade de São Paulo, uma vez que os responsáveis pelo projeto não só se preocuparam em indicar uma bibliografia adequada, como também trouxeram diversas atividades de formação, por outro lado, as reuniões de formação realizadas pela coordenadoria foram escassas, não por culpa dos responsáveis, mas, novamente, por processos burocráticos que atrapalharam – mais uma vez, não entrarei nos pormenores, mas vale acentuar que a culpa foi tão somente da burocracia e do excesso de trabalho que cercava a coordenadoria.

Pois bem, o processo de aprendizagem teórica se deu junto com a prática na sala de aula. Conforme mostrarei adiante, essa experiência proporcionou um aprendizado interessante, mas seria um erro não apontar que se, por exemplo, houvesse uma formação prévia à entrada na sala de aula, algumas dificuldades jamais teriam existido; se certas dúvidas fossem respondidas antes do inicio do estágio (como em formações anteriores ao inicio das aulas), o começo deste teria sido bem menos traumático. Também faltou pensar que, para o estagiário fazer realmente parte do sistema escolar, é necessário que ele participe das atividades para além da sala de aula, como eventos culturais e reuniões de JEI. Esses casos foram raros e, na maioria das vezes, promovidos por acordos entre estagiário e escola; ora, uma vez que se cobra desse aluno-pesquisador uma participação efetiva, é mais do que evidente que ele precise agir com o conjunto da escola – posso arriscar dizer que, se uma hora semanal do estagiário fosse reservada para reuniões de JEI, seu entrosamento com o corpo docente seria muito maior.

Resumidamente, devido ao fato de a participação do aluno-pesquisador ser pensada de forma estritamente burocrática – um segundo professor que ganha menos e não tem vínculos com a prefeitura –, faltou uma reflexão e conseqüente formação do trabalho desse individuo dentro do projeto e dentro do colégio. Afinal, qual o real papel do aluno-pesquisador? Ajudar na formação da classe? Ajudar somente as crianças mais problemáticas? Relatar sua experiência através de relatórios mensais? Deve ele somente ajudar a professora ou pode, em determinados momentos, ministrar conteúdos?

Infelizmente, enquanto eram enfatizadas falas sobre como não deveríamos ficar em sala de aula sozinhos ou como não deveríamos fazer horas-extras, pouco sobrava de espaço e tempo para uma reflexão crítica sobre o papel de um segundo professor na sala de aula. Tendo em vista que essa experiência é nova, tal erro acaba se revelando imperdoável.

Todos os problemas mencionados acima parecem intimamente relacionados ao fato de o Projeto Ler e Escrever – Toda Força ao Primeiro Ano do Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental I, ainda ser uma iniciativa nova. Isso não exclui que tais dificuldades devem ser superadas, assim como fica claro que o papel do aluno-pesquisador deve ser mais bem pensado, criticado e aperfeiçoado, afinal, é natural que ainda não haja uma caracterização clara de como esse segundo professor deve agir. Esse não é o problema; problemático é o fato de não haver um lugar de maior discussão entre os participantes do projeto para que, através da troca de experiências, seja possível um avanço na consciência crítica desses pesquisadores.

 

Na sala de aula 

Tendo em vista tudo até aqui colocado, resta agora uma descrição de minha experiência em sala de aula, para poder demonstrar como se deu esse processo simultaneamente teórico e prático, quais foram os problemas encontrados, como foi possível driblar alguns deles e impossível escapar de outros, e, afinal, qual acabou se tornando a minha caracterização enquanto segundo professor e aluno-pesquisador.

Podemos começar pela dificuldade gerada por esses dois termos, pois, enquanto a Prefeitura de São Paulo anunciava a contratação de um segundo professor, contratava seus estagiários como alunos-pesquisadores; ora, é evidente, já pelas nomenclaturas, a diferença entre esses dois cargos. A confusão criada por conta disso abria caminho para que o estagiário tanto se prepusesse somente ao trabalho cientifico, pesquisando, fazendo experimentos e pouco ajudando o professor na sala, quanto indo por outra via, elaborando conteúdo, ministrando aulas etc. É evidente que um meio termo entre essas duas opções acabou se tornando a alternativa mais acertada a se tomar, porém, é bom lembrar que essa experiência em sala de aula foi a primeira para muitos dos estagiários, como também suas primeiras experiências como pesquisadores. Sendo assim, o estagiário teve que se adaptar logo a duas funções, sabendo casar a prática na sala de aula com uma posterior reflexão crítica daquilo trabalhado. Novamente, afunilando esses fatos para minha própria experiência, devo confessar que o lado pesquisador teve de, na maioria das vezes, ceder espaço para o lado professor, já que este demandava um esforço grande e diário, enquanto o primeiro se limitava a um relatório mensal do estágio. Obviamente, uma vez que o professor era muito mais cobrado do que o pesquisador, minha atenção acaba recaindo sobre aquele que demandava cuidado imediato.

Logo de inicio, as preocupações geradas pela sala de aula foram os principais temas de meus relatórios, pois as dúvidas de como deveria lidar com o processo de alfabetização eram muitas. Para começar, estava diante de um método que sequer havia ouvido falar e era totalmente diferente daquele pelo qual fora alfabetizado; na sala de aula, esse método competia com o tradicional, porque muitas crianças já haviam começado a ser alfabetizadas em casa através do “ba-be-bi”; além disso, os próprios professores pertencentes ao projeto ainda estavam se adaptando à cartilha construtivista. Mais uma vez, o meio termo foi a medida escolhida para lidar com o problema: uma vez que não possuía embasamento cientifico para ajudar as crianças somente através do método escolhido pela Prefeitura, optei por trabalhar com as ferramentas que tinha à mão. Isso significou ser, às vezes, antiquado, se era assim que funcionava com o aluno. Com o passar dos meses, pude entender melhor os pressupostos construtivistas e trabalhar com eles.

Esse aprendizado se deu por duas vias principais:

  • Leitura de uma bibliografia básica: Tanto o material cedido pela prefeitura, quanto os responsáveis pelo projeto na Faculdade de Educação indicaram uma vasta bibliografia que tratava sobre o tema. Apesar de ter realizado uma parte dessa leitura e ela ter, de fato, ajudado substancialmente nesse processo de aprendizado, a verdade é que o fato de ser um estudante de Letras atrapalhou, pois essa era uma leitura desligada de boa parte de meu curso e este já cobrava uma leitura intensa de outras literaturas.
  • Elaboração de conteúdo: Saber entrelaçar o papel de professor e pesquisador se mostrou um ponto-chave nessa empreitada. Uma ferramenta extremamente útil é, junto com o corpo docente, elaborar as atividades passadas em sala de aula. Essa experiência fez com que aprofundasse muito mais minha pesquisa, pois saber pensar o que é ou não interessante para ser passado às crianças não só faz pensar sobre aquilo que ensinamos, como também nos torna uma verdadeira engrenagem do sistema escolar.

 

As muitas dúvidas presentes no começo do estágio aos poucos foram sendo acobertadas por outro fator presente na vida escolar: a rotina. Isso não quer dizer que os problemas foram sanados; pelo contrário, por vezes essa rotina só serviu para prejudicar o caminhar das aulas.

Há sempre o problema do comodismo: se o estagiário começa sem vícios e preconceitos, logo depois de alguns meses pode estar sujeito a acatar certos clichês do sistema educacional: “Esse aluno não tem jeito mesmo”, “Fulano é um caso perdido”, e tantas outras frases conhecidas. Obviamente, tudo isso está intimamente ligado ao precário sistema de ensino que temos hoje – e foi motivo das paralisações que tivemos durante o ano –, assim como é conseqüência de vivermos em uma sociedade de terceiro mundo, onde fatores básicos como educação e saúde são esquecidos. Não cabe aqui uma análise profunda desses problemas – apesar de a compreensão deles ser essencial para entendermos a sala de aula –, mas o que quero expor é que, devido a tudo isso, o estagiário em seu primeiro ano, pode acabar vítima das diversas armadilhas a que são expostos os professores e, portanto, logo poderá se tornar disseminador das crenças preconceituosas que hoje estão impregnadas nas escolas. Parece-me que, nesse caso, o aluno-pesquisador possui um papel privilegiado, uma vez que ainda está sendo inserido nesse mundo e pode enxergar com maior clareza problemas e, até mesmo, encontrar soluções. Não se deixar levar pela rotina, muitas vezes estressante, do sistema é vital para um bom rendimento do estágio.

Como tenho destacado, a questão central do estágio se mostrou, ao longo do tempo, ser o embate entre a inexperiência e um sistema burocratizado que acaba trazendo uma má experiência. Saber lidar com essas nuances sem, aos poucos, ser tragado por lugares-comuns que acabam consumindo qualquer potencial, enfrentar alguns problemas de frente e não fugir devem ser objetivos. Afinal, acaba sendo mais fácil para qualquer um inserido nesse contexto encarar tal rotina como algo comum, ou seja, descartar os alunos mais problemáticos e lidar somente com os mais dispostos, tomar como experiência única aquela a qual somos expostos na sala de aula, ver a teoria como pura utopia, deixar de questionar os aparatos burocráticos e, enfim, se tornar parte do problema e ignorar possíveis soluções.

Seria um ato de má fé dizer que consegui burlar todo o sistema, que meu trabalho realizado em sala de aula foi perfeito e que, de fato, consegui soluções para vencer a já tão citada burocracia. Com efeito, já posso perceber certas tendências em minha prática na sala de aula que cederam a esse mal, e devo admitir que os resultados obtidos com minha turma não são nada mais que regulares; porém, irei expor aqui algumas idéias que podem ser úteis ao Programa Ler e Escrever.

 

Pensar além (ou alguns esboços de sugestões)

Mais uma vez, é bom salientar dois fatores: em primeiro lugar, essas idéias foram surgindo ao longo de meu estágio como possíveis melhorias no programa, principalmente quanto ao papel do segundo professor em sala de aula; porém, para ter certeza do sucesso dessas empreitadas, são necessárias experiências reais, ou seja, um embasamento sólido. Além disso, não é certo acreditar que essas modificações sanariam todos os problemas presentes tanto no programa, quanto na sala de aula, afinal, o ensino fundamental é problemático porque vivemos em uma sociedade precária, e toda complicação que cerca os projetos da rede municipal apenas copiam – são frutos – de todo um sistema que não é pensado para melhorar alguma coisa, mas tão somente para reproduzir a estrutura de poder que nos oprime.

Tendo em mente tudo isso, vamos às idéias:

Como já expus anteriormente, algo vital para o bom aproveitamento do estágio é que o aluno-pesquisador seja encarado como parte integrante da escola, apesar de, em um primeiro momento, ter sido natural o estranhamento com aquela figura nova na instituição, em que os professores não entenderam muito bem se o tal segundo professor seria alguém para ajudar na sala de aula ou uma figura infiltrada que estaria ali para delatar possíveis erros, e os próprios alunos não entendiam se seria aquele alguém para ajudar nos exercícios ou um colega de sala crescido – um “tio” – isso devido muito ao fato de o próprio estagiário não conseguir delimitar bem suas linhas de ação no trabalho. Para que isso não volte a ocorrer, é necessário que ele participe de mais reuniões de formação, se possível, até daquelas feitas com os professores, além das já lembradas reuniões de JEI; assim, o simples convívio já pode quebrar certos preconceitos existentes. Sacrificar uma hora de estágio dentro da sala para que o estagiário tenha contato com o fora da sala, até mesmo participando de festas e gincanas, pode melhorar o relacionamento entre escola, corpo docente e aluno-pesquisador.

Ademais, também se faz necessária uma cobrança maior dos envolvidos no estágio, não o tipo de cobrança obtusa e meritocrática cobrada tantos dos alunos quanto dos professores, nem as cobranças de resultados de sondagens como as dúzias de provas durante o ano (Prova Brasil, Prova São Paulo etc.). Esses tipos de exames, ao imporem certos tabus, só servem para ferir a autonomia dos cobrados, que, via de regra, não participam da elaboração de tais testes e sequer podem opinar sobre os mesmos. Pelo contrário, creio que professores e alunos-pesquisadores devem ter a oportunidade de poder pensar melhor sobre seu papel como educadores, ou seja, por meio de reuniões conjuntas ou exposições de trabalhos, poderem trocar experiências e procurar soluções para os problemas que os cercam.

Outro passo importante é saber dar mais espaço ao estagiário, incentivar a criação de projetos próprios, ter tempo para ministrá-los em sala de aula. Assim, estará sendo cobrado do estagiário que ele pense mais sobre sua função, tanto como educador quanto como pesquisador, ajudando a construir um profissional que reflita sobre sua função.

Também é evidente que o aluno-pesquisador deve ter um maior preparo ao começar seu estágio. Se não for possível cobrar isso dos candidatos, que, ao menos, estes passem por algum treinamento antes, algo mais do que uma ou duas reuniões, isto é, um tipo de formação que explique a idéia construtivista, faça um retrospecto do sistema de ensino, e, enfim, prepare o aluno minimamente para seu estágio.

Em resumo, é preciso fazer com que o aluno-pesquisador seja parte da escola, para que, desse modo e junto com seus colegas, possa pensar exatamente sobre qual seria a sua função, quais seriam os melhores métodos para usar, qual o tipo de trabalho a ser realizado, quais as dificuldades que deverão ser fatalmente enfrentadas, pois, somente quando esse tipo de reflexão estiver sendo elaborada é que se conseguirá aprofundar a consciência crítica dos envolvidos. Com sorte, se tais indivíduos forem formados a partir de uma base mais democrática e aprenderem sempre a construírem um pensamento autocrítico, esses futuros educadores conseguirão efetuar melhoras significativas na educação nos próximos anos.

 

Notas

[1] Referentes ao ano de 2007.

[2] Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP.

[3] Para maiores informações sobre o programa entrar em http://www.fflch.usp.br.

 

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