Citação de vozes no cotidiano de uma escola

 

Giovanna Ike Coan

 

Introdução

O presente artigo é resultado do estágio realizado para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I (FE/ USP), ministrada pelo Professor Doutor Valdir Heitor Barzotto no primeiro semestre de 2008. Foram cumpridas quarenta horas-aula de observação e vinte horas-aula de regência em quatro salas de 1ª. série do Ensino Médio de uma escola estadual da zona sul de São Paulo, que tinham a mesma professora responsável pela matéria.

A partir de uma visão distanciada de minha experiência no cotidiano dessa escola, pretendo analisar como o conceito bakhtiniano de apropriação do “discurso de outrem” – isto é, a noção de enunciado como um acúmulo de vozes, de discursos prévios – aparece na fala da mídia sobre o colégio e também nas falas de personagens que participaram do estágio, quais sejam: a diretora, a professora, eu (como estudante de Letras e estagiária) e os alunos. Os enfoques são os discursos sobre autoridade, disciplina e êxito escolares e o discurso da Sociolingüística.

Para a realização deste estudo, utilizo as considerações da Análise do Discurso sobre as noções de enunciado, enunciação, polifonia e interdiscurso.

Quanto ao primeiro conceito, tomo o enunciado não como o produto da enunciação, mas como uma seqüência verbal que pode precedê-la. Foucault (apud BRANDÃO, 1995:31) aponta que: “Enquanto que a enunciação se marca pela singularidade, pois jamais se repete, o enunciado pode ser repetido”. Além disso, a contribuição de Bakhtin para os estudos da linguagem mostra que a compreensão de um enunciado deve ser sempre dialógica:

Bakhtin afirma que tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala. (BRAIT, 2003:14 – grifos do original)

A partir dessa concepção bakhtiniana da linguagem como sendo polifônica, Pêcheux (apud CORRÊA, 2002:61) concebe a noção de interdiscurso, a saber, a relação que todo discurso mantém necessariamente com algo que lhe é prévio. Para Orlandi (1999:34), em se tratando do interdiscurso, isto é, da memória discursiva, “é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o ‘anonimato', possa fazer sentido em ‘minhas' palavras”. Portanto, o enunciador (o sujeito falante) atua como um transmissor de enunciados anteriores ao momento da enunciação.

É possível aproximar as considerações da Análise do Discurso com o que diz Certeau (1996:250) sobre os “retornos e voltas de voz”, pois que, em situações-limites, as citações podem escapar ou cortar o discurso, causando-lhe efeitos de alteração (“ela in-quieta o texto”) e deixando de ser, assim, a voz prévia. Logo, segundo o autor, nesses casos, há uma “fratura entre o enunciado (objeto escrevível) e a enunciação (ato de dizer)”, e, portanto, junto à “voz citada”, surge uma “contra-voz” que a altera ou contradiz.

Desse modo, o presente artigo tem o objetivo de identificar nas falas com que tive contato durante o estágio vozes anteriores que as sustentam e as possíveis rupturas de sentido entre o enunciado original e sua apropriação na situação de comunicação.

 

Estudos de casos: estudos de “vozes”

“Um aspecto de escola privada”

A escola onde realizei o estágio é reconhecida por sua tradição[1] e, recentemente, recebeu muita atenção da mídia por ter tido um ótimo desempenho no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) entre os colégios estaduais da capital paulista.

Um dos principais jornais de São Paulo[2] publicou uma entrevista com a diretora da escola e, três dias depois, um artigo de opinião no qual destacava as características da instituição vistas como positivas e como fatores para o êxito no exame; reproduzo, a seguir, alguns trechos do último:

(...)
Sua nota a coloca à frente de muitas escolas particulares.
(...)
Por causa da capacidade dos pais de levantar recursos, a [escola] XXX tem um aspecto de escola privada, com as paredes limpas e pintadas, os jardins bem cuidados.(...) A direção e os professores são os primeiros a reconhecer o impacto positivo da paisagem.
(...)

Se prestarmos atenção ao trecho acima, vemos que os alunos não estão colocados como participantes em tais situações (“capacidade dos pais de levantar recursos”, “A direção e os professores são os primeiros a reconhecer o impacto positivo da paisagem”). De fato, dentre as demais reportagens jornalísticas sobre o colégio a que tive acesso nesse período[3], apenas uma deu voz a um ou dois adolescentes que estudam na instituição, após serem exibidas entrevistas com o vice-diretor e alguns professores. É possível dizer que, por meio do discurso da mídia, estamos diante da palavra daqueles que pertencem ao topo da “hierarquia pedagógica”, ou seja, daqueles que se encarregam de manter a ordem autoritária e o ethos de disciplina no ambiente escolar[4], enquanto os alunos têm suas vozes silenciadas.

Tal desconsideração ao alunado (se assim posso falar) é evidente na exclusão dessa categoria de sujeitos da apreciação dos “jardins bem cuidados” – e aqui me pergunto: a paisagem não causaria a eles também um impacto positivo? E este não estaria relacionado indiretamente ao bom desempenho que têm nos exames? – e ainda no outro ponto a que dou destaque neste artigo, i.e., no referido “aspecto de escola privada”.

Voltando à citação acima, temos que, além dos jardins, o que dá “aspecto de escola privada” a esse colégio são as “paredes limpas e pintadas”. Aqui, analiso como o discurso prévio em que se baseia essa enunciação – a saber, os sentidos históricos que foram construídos em torno do termo escola privada brasileira – está sendo apropriado pelo enunciador e como a análise empírica da situação escolar demonstra haver limites e contradições a seu uso. Minha experiência nas dependências da escola revelou-me que nos corredores, nas próprias salas de aula e no pátio, ou seja, nos ambientes em que os alunos mais ficavam no colégio, as paredes eram, de fato, “limpas e pintadas”, e nada além disso. Os poucos murais da escola tinham avisos sobre concursos de bolsas para cursinhos pré-vestibulares ou anúncios de vestibulares em faculdades particulares, escassas informações sobre o Grêmio Estudantil, e, ainda, informes de festas do colégio ou de competições entre as escolas públicas. Dentro das salas de aula, não havia absolutamente nada nas paredes. O único local em que encontrei fotos e produções dos alunos foi no Centro de Línguas[5] – um espaço de acesso restrito. Esse retrato contrasta muito com a imagem observada no corredor das salas dos diretores, coordenadores e professores (uma área a que os alunos tinham menor circulação), no qual as paredes eram enfeitadas com incontáveis reproduções de quadros de artistas nacionais e internacionais – algo que interpretei como sendo um “capricho narcísico” da direção.

Deixo, então, uma crítica: essa estética de escola privada priva (com o perdão do trocadilho) o alunado do contato com expressões artísticas e conteúdos informativos, além da possibilidade de eles mesmos se expressarem por meio dos murais. Pode ser que, apesar da imagem de escola particular que é passada, os diretores vejam seus alunos como “de escolas públicas”, suscetíveis (isto é um estereótipo que pertence à minha memória discursiva) de praticarem ações de vandalismo.

Por fim, acrescento outra crítica: ao se referir à aparência e ao desempenho de escola privada dessa escola estadual (“a [escola] XXX tem um aspecto de escola privada” e “Sua nota a coloca à frente de muitas escolas particulares”), o veículo de comunicação reitera, na enunciação, uma voz que diz que todas as escolas particulares possuem essas características, sendo, portanto, as “melhores”. Estamos, pois, diante de uma pressuposição. Segundo Ducrot (apud BRANDÃO, 1994), a pressuposição é um caso de dupla enunciação, porque marca a relação do discurso com a exterioridade, isto é, com as produções discursivas anteriores; Fairclough (1992) aponta que as pressuposições são eficientes na manipulação das pessoas – neste caso, os leitores do artigo jornalístico – pois são freqüentemente difíceis de serem contestadas. No texto em questão, pode-se pensar que não seria provável o leitor contestar a “voz de verdade” do jornal e contrariar a idéia de que o êxito de tal colégio se deveu à semelhança às escolas particulares, porque, apoiado em sua memória sócio-histórica, ele as vê como representantes de um sucesso educacional no Brasil e, relacionado ao assunto do artigo, das notas mais altas no ENEM.

Ademais, pode-se dizer que o discurso do jornal também despreza a situação das demais escolas públicas, destacando apenas “a melhor” e esquivando-se, assim, de tratar dos problemas que lhes causam, entre outras “feridas”, uma baixa nota no ENEM, e de tentar reverter a imagem, já arraigada no interdiscurso, que possuem de baixa qualidade de ensino.

 

“O que queremos é disciplina”

O mesmo jornal citado no tópico anterior publicou uma entrevista com a diretora da escola na qual lhe pedia uma explicação para o excelente desempenho da instituição no ENEM; ao que ela respondeu:

O que ajuda muito aqui é a disciplina. Tem horário para entrar. O aluno deve trazer o material certo para cada aula. Se não o faz, a gente chama o pai imediatamente. É um trato ‘tête-à-tête'. Os alunos têm ‘provões' todo semestre.
Tem aluno que vem de escola particular e fala: ‘Pô, escola do Estado desse jeito? Só tirei nota vermelha'. Aqui, são de 42 a 45 alunos por sala. Não dá tempo para brincadeira. Os nossos alunos mais rebeldes chamam a gente de nazista. Mas o que queremos é disciplina.

Nesse trecho, o enunciado da diretora tem relação dialógica com o discurso, a “voz”, de Hannah Arendt a respeito do significado de autoridade ; conforme aponta Dufour (2005:137), “para ela, a autoridade é não compatível com a persuasão (que pressupõe a igualdade) e exclui categoricamente todo uso de meios de coerção (característicos do totalitarismo)”, assim, conclui o autor, a autoridade é “a responsabilidade geracional de introduzir no mundo os recém-vindos”. Arendt (2005:129), no texto “Que é Autoridade?”, apresenta que “o que manda e o que obedece (...) possuem em comum (...) a própria hierarquia, cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado”.

Na fala da diretora, podemos notar a presença da ordem hierárquica no ambiente escolar, contrária à idéia de igualdade ligada à persuasão, em frases como “Se não o faz, a gente chama o pai imediatamente. É um trato ‘tête-à-tête'.”, nas quais observamos o papel daqueles que estão no topo da pirâmide da autoridade (uma imagem usada por Arendt) e que, portanto, ocupam a sede do poder e são reconhecidos por isso. O “trato ‘tête-à-tête'” se assemelha ao conceito de “contrato pedagógico” de que trata Aquino (1998:193), pois, segundo o autor, esse é “um conjunto de regras funcionais que precisa ser conhecido e respeitado para que a ação possa se concretizar a contento” e “os próprios alunos têm uma clareza (...) quanto a essas balizas contratuais do encontro pedagógico”, no que concerne às funções específicas de alunos, professores e diretores.

Por outro lado, é interessante atentar, no trecho da entrevista, para o uso da primeira pessoa do plural (a gente), que ameniza a postura da diretora diante daqueles que ocupam posições consecutivas à sua, como os coordenadores e os docentes (ou seja, ela não quer ter uma imagem de déspota), e valoriza o caráter coletivo da gerência escolar. No entanto, ao dizer que, se o aluno não cumprir seus deveres escolares, seu pai será chamado, a diretora contradiz o “trato ‘tête-à-tête'” da relação pedagógica porque, em vez de cumprir seu papel e resolver a questão problemática nos limites da escola, recorre a outra relação de poder alicerçada pela autoridade: o poder dos pais sobre os filhos na família.

Além disso, podemos identificar outro discurso ecoando nessa passagem: a disciplina a que a diretora se refere é a “disciplina Kantiana”, aquela que “se limita a despojar o homem de sua selvageria; (...). A selvageria é a independência com relação a todas as leis. A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a coerção das leis” (KANT apud DUFOUR, 2005:141). A partir dessa visão, entendemos a introjeção nos alunos de regras e limites e a exigência de seu cumprimento (que são enfatizados como sendo fatores para o êxito do colégio) – atitudes que se resumem na expressão utilizada pela enunciadora: “Não dá tempo para brincadeira”. Entendemos também a referência que “os alunos mais rebeldes” (isto é, os menos disciplinados) fazem aos “nazistas”, uma vez que vêem tais atos de obediência como meios de coerção e, assim, estabelecem uma relação interdiscursiva com o autoritarismo do regime nazista.

Em minha experiência no cotidiano do colégio, pude perceber um compromisso geracional nos responsáveis pela escola que, contrapondo-se às idéias pós-modernas do “aceitar tudo”, do “tudo pode”, e do “imperativo do gozo” na juventude (KEHL, 2004), instituíram esses jovens como alunos (DUFOUR, 2005). Segundo consta do regulamento da escola e conforme observei diariamente, a assiduidade e a pontualidade controladas e a obrigatoriedade do uso do uniforme contribuíam para a construção de um ethos de rigidez e disciplina na instituição.

Contudo, reitero Bakhtin (1997:148) e a noção sobre “o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo” para tecer considerações acerca da presença da diretora no colégio. Apesar de ela receber os louros pelo desempenho dos alunos no ENEM (como vimos nas matérias jornalísticas), pude observar que, em algumas situações, não era ela quem estabelecia a disciplina, mas sim o vice-diretor. Presenciei diversas situações de advertências a alunos e comunicados a professores (chamadas às reuniões, divulgação de informações do Governo do Estado, etc.) nas quais foi ele quem assumiu a responsabilidade.

Talvez aqui pudéssemos recuperar a discussão sobre o uso do termo “a gente” na fala da diretora, interpretando-o como um indicativo de que há uma gestão democrática na instituição e, portanto, a descentralização dos processos de decisão. Porém, o exame de alguns de meus encontros com ela indica (pelo menos a meu ver) uma outra interpretação; vejamos os casos: na minha primeira visita ao colégio, quando entreguei a carta de apresentação do estágio, ela a assinou rapidamente e pouco conversou comigo, porque estava, a pedido de sua filha, tomando conta de sua neta bebê; no outro extremo temporal, quando, ao término de minhas atividades na escola, assinou minha ficha de estágio, ela tomava um cafezinho na sala da Secretaria e também me dispensou pouca atenção. Noto, pois, que o dado empírico provou, nessas situações, a transformação das palavras “da diretora” em chavões ocos[6], uma vez que ela – como representante do topo da hierarquia pedagógica – não demonstrou obedecer plenamente à “disciplina” tão enfatizada na entrevista ao jornal. Houve, portanto, fratura entre o enunciado e seu contexto narrativo (BAKHTIN, 1997).

O último ponto a que gostaria de chamar atenção nesse trecho da entrevista se refere à passagem: “Os alunos têm ‘provões' todo semestre. Tem aluno que vem de escola particular e fala: ‘Pô, escola do Estado desse jeito? Só tirei nota vermelha'”. Aqui, a fala da diretora e, indiretamente, a fala relatada dos alunos realçam na nossa memória discursiva os enunciados que caracterizam a “escola do Estado” como uma instituição decadente e que não avalia o real desempenho do aluno (e.g., os chavões “ali ninguém repete, todo mundo passa”), a qual se opõe à imagem “idealizada” das escolas privadas (“as melhores”). Estamos, assim, diante de outros pressupostos (conteúdos implícitos) que são tomados como verdadeiros.

A construção de tal imagem do colégio em questão corrobora a idéia (enfatizada pela mídia, conforme vimos anteriormente) de que ele representa um caso excepcional de sucesso na educação pública brasileira.

 

“Precisamos saber esses níveis de linguagem”

Mudemos, agora, o movimento do percurso analítico, saindo da observação do fenômeno da citação de vozes nos discursos da mídia e da diretora, que tomam como contexto a escola em si, e passando ao seu exame nos discursos proferidos em sala de aula.

Neste tópico, farei uma exposição de como os preceitos da Sociolingüística (e.g., noção de variedades lingüísticas, distinção de estilos formal e informal, os três verbos-chave: “respeitar, valorizar e adequar”) foram apropriados pela “voz” da professora que acompanhei no estágio. Fazendo uma análise distanciada de minha experiência de regência, vejo que eu também, como recém-graduada do curso de Letras, incorporei esse discurso tão enfatizado no espaço acadêmico e o reproduzi em frente aos interlocutores das classes. Logo, nas duas situações, houve “a diluição da palavra citada” (BAKHTIN, 1997) no contexto de transmissão. Vejamos, a seguir, como isso aconteceu.

Para começar, apresento duas vozes da Sociolingüística em Língua Portuguesa:

Aprender uma língua é aprender a dizer a mesma coisa de muitas formas. Não se deveria imaginar que existe só uma forma de falar (...). Isto é, a língua nos dá sempre várias alternativas, e saber uma língua ativamente e “utilizá-la” como sujeito é em boa parte saber dizer uma coisa de muitas maneiras – inclusive, saber as pequenas diferenças de sentido e de condições de uso que essas várias maneiras implicam e supõem. (POSSENTI, 1996:93, destaque meu)

Um mesmo indivíduo pode optar por diferentes formas lingüísticas de acordo com a variação das circunstâncias que cercam a interação verbal, incluindo o contexto social, propriamente dito, o assunto tratado, a identidade social do interlocutor etc.
(...) o estilo informal , em que é mínimo o grau de reflexão sobre as formas empregadas, e o estilo formal , em que é máximo o alto grau de reflexão que se projeta sobre as formas lingüísticas. (CAMACHO, 2003:53, itálico meu, destaque do autor)

Os preceitos-chave destacados nessas citações foram proferidos (num sentido polifônico) nas classes em que estive presente. Conforme mostram os três episódios ilustrativos abaixo, notamos, pela comparação das duas vozes (i.e., a da Sociolingüística e a da professora) que o enunciado produzido em sala de aula deixa transparecer o interdiscurso, ou seja, a relação do discurso com o que lhe é prévio:

(1) (...) a professora diz: Precisamos ter um português culto informal para entrevistas de emprego, para falar com o professor... inculto e informal falem entre vocês.

(2) Em seguida, a professora comenta: “O aluno tem de saber diferenciar linguagem com os amigos, em entrevista de emprego, em casa, numa palestra... Precisamos saber esses níveis de linguagem.”

Deslocando o foco da análise para as minhas aulas de regência – mais especificamente, a aula em que tratei dos regionalismos e também teci considerações sobre variação estilística – observamos que a voz da Sociolingüística foi apropriada às “minhas palavras” como professora, algo que demonstra meu perfil de graduanda em Letras/ USP, haja vista a ênfase dada a essa linha de pesquisa nas disciplinas que cursei. Essa experiência é interessante também para ilustrar a “disseminação do discurso de outrem” na sala de aula, isto é, como os conceitos de distinção entre os estilos formal e informal e de adequação à situação comunicativa foram deslocados à voz de um aluno. Eis o episódio:

(3) Assumi que, dependendo da situação, eu mesma falo “os menino” e não estou nem um pouco errada; expliquei a redundância do plural. Citei o caso de pessoas que ouvem uma conversa informal e dizem: “Fulano não fala direito... é burro”, e um aluno contestou: “Burro é ele por não saber diferenciar a situação!

A partir do último caso, podemos relacionar o atual enfoque em questões sociolingüísticas no ensino de língua portuguesa (que, no livro didático adotado na presente escola[7] aparece, por exemplo, no capítulo intitulado “Níveis de formalidade e variantes lingüísticas”) com as reflexões de Orlandi (2006:208-9) acerca dos tipos de repetição dos enunciados pelos estudantes e suas conseqüências. De acordo com a autora,

Esses discursos – esse saber – que ninguém pode deixar de ter, se freqüentou a escola, cria o que estamos chamando a “identidade lingüística escolar” (I.L.E.) que não compreende estritamente a língua, mas os discursos produzidos por e na língua que falamos na escola e que nos situam em um conjunto de saber (leia-se dizeres) que constituem a “escolaridade”.

Assim, posso concluir, com base nesse exemplo, que o “saber diferenciar a situação” passou a fazer parte da I.L.E. dos jovens desse colégio.

Voltando às “palavras da professora”, nas demais situações observadas, ao transmitir o discurso da Sociolingüística, ela profere, de fato, uma contra-voz que desloca o sentido da voz original . Vejamos o exemplo abaixo:

(4) Depois, a professora diz: “Dependendo de tempo, lugar, nível cultural, você tem uma forma de falar. O paulistano, independentemente do nível cultural, engole o ‘s', diferente do carioca, que jamais diria ‘as bala', ‘três pastel'. Essa é uma característica do paulistano. Por que nosso presidente foi tão criticado no início do governo? Porque não tem nível adequado à presidência. Hoje melhorou, mas mesmo assim é um escândalo às pessoas de maior nível cultural... diferente do povão. As pessoas são criticadas pelo modo de falar, vestir...”, e, aqui, dá o exemplo do aluno que veste uma bandana, distinguindo seu modo de vestir na situação informal da sala de aula e em uma entrevista de emprego.

Nessa fala, podemos notar, em “O paulistano, independentemente do nível cultural, engole o ‘s', diferente do carioca, que jamais diria ‘as bala', ‘três pastel'. Essa é uma característica do paulistano”, generalizações falaciosas e contraditórias da professora ao dizer que tanto “o paulistano” quanto “o carioca” formam categorias homogêneas de sujeitos (note o uso do artigo definido, da expressão “independentemente do nível cultural”, e do advérbio “jamais”, de forte conteúdo de verdade), cujos “falares exclusivos” são caracterizados por tal contraste na marcação do plural. Ao aluno, poderiam ficar as perguntas: E os tão referidos níveis de linguagem? E o “adequar-se à situação” de interação verbal, a eles não cabe? A questão do plural é, portanto, uma diferença regional? Logo, percebemos, no discurso da docente, uma contra-voz a negar os sentidos dos enunciados da Sociolingüística, que estão presentes em sua memória discursiva[8] e diluídos em sua enunciação.

Além disso, ao dizer “Porque [o nosso presidente] não tem nível adequado à presidência. Hoje melhorou, mas mesmo assim é um escândalo às pessoas de maior nível cultural... diferente do povão”, a professora faz a desvalorização dos sujeitos que só usam a variedade do presidente, o depreciativo “povão”, e, desse modo, valoriza de fato a variedade de prestígio e seus falantes, considerados “de maior nível intelectual”. Portanto, ela liga a hierarquia lingüística à escolarização (e, por que não, à hierarquia social) e deixa a impressão de que esses falantes não se enquadram às noções de adequação. E, então, questiono: onde estariam os sentidos dos três verbos-chave “respeitar, valorizar e adequar”? Temos, mais uma vez, um dado empírico provando a transformação de termos em chavões ocos .

Assim, nas duas considerações acima, comparando a “palavra original” à “palavra citada”, encontramos instâncias do que afirma Barzotto (2004:241): “muitas vozes estão presentes na fala dos professores, mas não na prática”, e, ainda, do que aponta Certeau (1996:253): uma “fratura entre o enunciado (objeto escrevível) e a enunciação (ato de dizer)”.

Em outro episódio, a professora se contradiz ao se referir à noção de “erro”. De acordo com Possenti (1996:80):

Diferenças lingüísticas não são erros, são apenas construções ou formas que divergem de um certo padrão. São erros aquelas construções que não se enquadram em qualquer das variedades de uma língua.
(...) erros de ortografia [são] (...) os que decorrem da falta de correspondência entre sons e letras, mesmo para uma variante padrão de uma mesma região, e os que decorrem da pronúncia variável em regiões ou grupos sociais diferentes.

Nas seguintes passagens, identificamos, em (5), a definição de erro ortográfico a partir de justificativa baseada na pronúncia da palavra – aceitável, portanto, pelo enunciado da vertente de estudo seguida –, e, em (6), o uso do termo “transgressão”, que foge à idéia da não condenação de uma forma sem se ter em conta sua circunstância de uso ou a variedade lingüística utilizada, isto é, toma-se por base o padrão de prestígio (sobretudo na escrita):

(5) A professora ainda diz que, no caso de mal/ mau, ocorre paronímia, a semelhança do som e da escrita.
(...)
A professora, então, comenta: “Com isso se encerra a primeira parte da revisãozinha. Vamos ver se vocês não cometem mais esses errinhos.”

(6) Depois, a professora comenta: “São pequenas dificuldades da Língua Portuguesa. Quando falam em lugar informal, tudo bem. Mas local público, é preciso ter atenção. Quando escrevemos, também não é possível cometer transgressões.”

Essa última fala da professora revela, de fato, reminiscências da “voz normativa” em seu trabalho na sala de aula, apesar de sua “filiação” ao discurso sociolingüístico, sendo que ambas constituem, paradoxalmente, sua identidade como docente de língua portuguesa.

Por fim, atentemos, no trecho abaixo, para mais uma paráfrase do discurso da Sociolingüística:

(7) A professora e os alunos discutem como mudanças na sociedade podem afetar a cultura, os costumes e os usos lingüísticos. A partir desse aspecto, ela comenta o uso de palavrões, como no caso do aluno que gritou “Filho da puta” no corredor do colégio, explicando que a pessoa precisa saber usá-los: “Não pode na escola, mas em casa ou com os amigos pode."

Nesse ponto, é possível fazer uma crítica às duas dimensões da palavra dita, i.e., “o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo” (BAKHTIN, 1997), no que concerne à noção de respeito interpessoal. Ao afirmar aos alunos que dizer um palavrão “Não pode na escola, mas em casa ou com os amigos pode”, a professora dá a impressão de que, além do ambiente da enunciação, não se deve ter em mente o interlocutor da situação de comunicação, ou seja, quanto a isso, “tanto faz”. Se pensarmos na concepção de adolescência como a fase do “tudo pode”, xingar o pai ou um amigo de “Filho da puta” seria completamente “adequado” também em termos sociolingüísticos. Fica, portanto, uma lacuna tanto na “responsabilidade geracional” (DUFOUR, 2005) da relação pedagógica, que pressupõe o “instituir os jovens como alunos”, quanto no papel da professora no ensino específico da língua.

 

Considerações finais

Concluo que, em minha experiência de estágio, estive diante de diversas instâncias daquilo a que me referi, dentro da perspectiva da Análise do Discurso, como citação de vozes.

Com relação ao discurso da mídia sobre o “aspecto de escola privada” do referido colégio público, foi possível perceber a relação do enunciado com a memória discursiva acerca do sistema educacional brasileiro e com a pressuposição de que a rede privada de ensino é “a melhor”. No estudo das palavras da diretora, identifiquei marcas polifônicas e a transformação da “voz citada” em um “chavão oco” no contexto de enunciação.

Durante o estágio, o “discurso de outrem” que mais apareceu (na forma de “voz” e “contra-voz”, reprodução e fratura) dentro da sala de aula foi o da Sociolingüística, sendo seguidas, desse modo, as propostas mais recentes de estudo e de ensino de Língua Portuguesa. Conforme aponta Barzotto (2004), esse é, atualmente, o “líder” cujas palavras passaram a ser reverenciadas em paráfrases por estudantes de Letras (i.e., pela academia), professores e alunos da escola regular, passando a constituir parte da identidade lingüística escolar dos últimos, nos termos de Orlandi (2006). Por fim, ao observar que a citação, em alguns momentos, escapou ao sentido do enunciado prévio, penso nas conseqüências negativas que isso pode trazer à aprendizagem da língua (como a incongruência de um apelo sociolingüístico seguido de um à gramática tradicional) e me pergunto: que discurso o aluno apreende? Qual concepção de gramática ele absorve?

 

Notas

[1] A escola foi fundada em 1963 e oferece apenas o curso de Ensino Médio nos períodos matutino, vespertino e noturno.

[2] Por motivos éticos, oculto os nomes do colégio e do jornal neste artigo.

[3] No total, coletei três matérias de um mesmo jornal de grande circulação em São Paulo (no início de abril/ 2008) e uma reportagem de um telejornal de uma das maiores emissoras de TV do Brasil (no final de abril/ 2008).

[4] “(...) o ethos é a imagem que o enunciador pretende atribuir a si pelo seu discurso, sendo construído pelo co-enunciador no processo discursivo” (GRECO, 2004:410).

[5] A escola possui um Centro de Línguas Estrangeiras que oferece os cursos de Espanhol, Francês, Alemão e Japonês e é aberto para seus alunos e para os alunos de escolas estaduais a partir da 6ª. série.

[6] Hannah Arendt (2005) se remete à “fratura” entre os modelos, os exemplos de relação autoritária, e sua desarticulação posterior como a transformação dos primeiros em “chavões ocos”.

[7] TUFANO, Douglas; SARMENTO, Leila L. (2006). Português: literatura, gramática, produção de texto (volume único) . São Paulo: Moderna.

[8] Vemos, assim, que “a memória discursiva (...) é um ‘espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos'” (PÊCHEUX, apud ORLANDI, 2006).

 

Referências bibliográficas

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