Josi Thomé Zerbinati
O presente artigo é o resultado de inúmeras reflexões que surgiram durante os estágios realizados no ano de 2008 para as disciplinas Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I e II da Faculdade de Educação da USP, ambas ministradas pela Profª. Drª. Idméa Semeghini-Siqueira, bem como durante a produção dos relatórios de conclusão dos estágios, de onde os dados que compõem este texto foram extraídos.
As escolas onde os estágios foram realizados são bastante diferentes, tanto na localização espacial, como no ambiente em que o processo de ensino/ aprendizagem acontece. Sendo assim, o estágio de observação e regência do 1º. semestre de 2008 ocorreu numa escola estadual da cidade de Santa Cruz das Palmeiras, interior do Estado de São Paulo, aqui denominada escola A, enquanto que, no 2º. Semestre, o estágio consistiu na realização de um projeto (Projeto CADIS, que será explicado mais adiante) com crianças da 5ª. série de uma escola municipal da cidade de São Paulo, aqui denominada escola B.
Além de discutir as diferenças instigantes que promovem a singularidade de cada escola, centrar-me-ei na questão da constituição das salas de aula e de suas “personagens”. As diferenças e semelhanças das escolas causam graves conseqüências, que são refletidas nos maiores interessados do processo em questão, ou seja, os alunos. A primeira escola (A) possui salas comuns, enquanto a segunda (B) possui salas-ambiente. A defasagem da escola A em relação à B já se evidencia nesse contraste da constituição das salas de aula, pois os alunos da última têm a chance de estar num ambiente propício para o aprendizado das diferentes disciplinas, já que o espaço está devidamente equipado para desenvolver as mais variadas atividades de cada uma.
Assim, a sala de Língua Portuguesa da escola B possui material de TV e vídeo; diversas produções que os alunos confeccionaram penduradas nas paredes, como adorno do ambiente; espelhos no fundo da sala para que o professor observe sua postura frente aos alunos a todo momento; e, também nesse lugar, há uma estante com livros e um armário para guardar os livros didáticos, para que os alunos não precisem carregá-los nas mochilas. Enquanto isso, na escola A, para assistir a um determinado vídeo, é necessário que se faça antecipadamente uma reserva da sala de vídeo, localizada no mesmo ambiente da Biblioteca Escolar. Dessa forma, os poucos alunos que freqüentam a biblioteca não têm o silêncio necessário para realizarem suas pesquisas e/ ou leituras.
Em comparação, na escola B, à medida que chegavam na sala de aula, os alunos se sentavam em suas carteiras, distribuídos de acordo com a seqüência do número que lhes correspondia na lista de chamada. Assim, evitava-se que os “bagunceiros” se concentrassem no “fundão” e os “bons alunos” ficassem na frente. A sala, portanto, por si só, possibilitava que eles se acomodassem de maneira heterogênea, o que permitia que alunos com diferentes graus de letramento pudessem interagir uns com os outros, sem a formação das chamadas “panelinhas”, que tendem a excluir os mais fracos.
Outro aspecto bastante positivo que foi observado foi o fato de a professora de língua portuguesa dessa escola fazer a chamada dos alunos durante a realização das atividades, fato que corroborava para não diminuir o pouco tempo que se tinha para o desenvolvimento de outras tarefas. Diferentemente desse modelo, na escola A, a professora insistia em conferir a presença de seus alunos no início das aulas, enquanto eles ainda estavam bastante agitados. Devido a essa agitação da troca das aulas, a professora se irritava e tentava conter as conversas, perdendo ainda mais tempo. Os alunos da escola B, no entanto, extravasavam a agitação das trocas de aulas enquanto tinham de se deslocar de sala, aproveitando o tempo também para conversar e, então, chegavam ao seu destino um pouco menos agitados, o que já se tornava extremamente positivo para o desenvolvimento da aula.
Logo, os dados colhidos durante os estágios ao longo do ano de 2008, nessas duas escolas, parecem indicar que a educação pública do Brasil não vai tão bem. O momento, no entanto, não deve ser reservado para que culpados sejam encontrados, mas sim, para que modos de solucionar os problemas e reverter estragos maiores sejam considerados. Por meio desses dados, a analogia entre os dois ambientes escolares observados não pôde deixar de ser realizada. Assim, aspectos como formação inicial e continuada de professores e formação de alunos como leitores eficientes, bem como o ambiente da escola e suas salas de aula, são fatores-chave para promover um melhor desempenho no processo de ensino/ aprendizagem da clientela escolar e devem ser revistos para que se possa dar início à empreitada de resolução de tais distúrbios, que parecem corromper toda a rede de ensino.
Além desses fatores, sabe-se que existe uma série de outros problemas recaindo sobre o sistema educacional. Como exemplo, tem-se a variação constante de programas, desenvolvidos pelo governo em “prol” da educação, cuja maior parte não possui uma sistematização nem uma regularidade. Cada novo governo quer partir quase do zero, sendo que grande parte das soluções se dá a longo prazo.
Como prova disso, tem-se o planejamento estadual para o ano de 2008: no 1º. bimestre, foi apresentado aos professores e alunos o Jornal/ Cartilha “São Paulo faz Escola”; por outro lado, para o 2º. bimestre, o material parecia uma espécie de “apostila”, que era entregue somente aos professores e, com uma certa constância, os alunos passavam a realizar cópias de conteúdo da lousa. Desse modo, nem professores, nem alunos tiveram o tempo necessário para a adaptação aos novos programas. Por sua vez, os dirigentes não se mostram interessados em saber a opinião daqueles que realmente usam os materiais propostos, ou seja, docentes e discentes. Em virtude disso, não se vê o propósito de tanta mudança, visto que a melhoria dos materiais de ensino não é uma das prioridades do governo.
Feitas essas considerações, passo, agora, para a análise da questão do ambiente onde professores e alunos atuam: a sala de aula. Pode ser que nesse local se concentre a solução que explica o desempenho satisfatório da escola municipal (B) em relação ao desempenho razoável dos alunos da escola estadual (A). A sala de aula comum, presente na escola estadual do interior de São Paulo, é um ambiente que não é capaz de se adequar aos gostos dos alunos, visto que ela já vem pré-formatada e imutável. Os alunos, de certa forma, são fixos em suas carteiras. Poucas foram as vezes em que se observou a professora dividindo seus alunos em grupos e realizando atividades uns em parceria dos outros, estimulando, assim, a interação. A justificativa é que muita bagunça se formava durante a realização das tarefas.
As salas de aula ambiente, por sua vez, organizam o espaço de ensino/ aprendizagem muito bem: cada disciplina usa da melhor forma o espaço que lhe pertence, com disposição de materiais instigantes, evidenciando uma espécie de “conforto” na sala, em detrimento de suas características tradicionais: um espaço cheio de carteiras, lousa e cortinas. As salas-ambiente possibilitam o desenvolvimento de diferentes estratégias, bem como seqüências didáticas[1] mais interessantes, enriquecendo o ambiente escolar e motivando o aluno a aprender mais e, além disso, ensinando-o a aprender como aprender, tornando-o sujeito autônomo para uma constante aprendizagem.
No entanto, como se sabe, a maior parte das escolas tradicionais ainda não implantou as salas de aula ambiente. O que acontece é um grande desperdício de interação que poderia ocorrer entre os alunos, sendo que, para Semeghini-Siqueira (2006a), a interação verbal é extremamente importante, visto que promove o verdadeiro objetivo da língua, que é a comunicação. Contudo, uma das docentes acompanhadas durante o estágio na escola A se preocupava com a desordem provocada pelo barulho nas salas de aula e, por isso, não trazia atividades mais motivantes e/ ou em grupo. Resta lembrar, no entanto, que silêncio não é sinônimo de aprendizagem.
Além disso, outra justificativa possível para que se explique a opção pelas salas de aula comum em detrimento das salas de aula ambiente é que se perde muito tempo durante a transferência dos alunos de uma sala para a outra. Contudo, essa perda de tempo também acontece nas salas comuns, onde é o professor quem se desloca até os alunos. Assim, como o quadro abaixo, referente à escola A, evidencia, é o professor quem perde bem mais tempo tentando controlar a “desordem”, isto é, as participações exuberantes durante a interação de seus alunos, chamando-lhes a atenção, inutilmente, pois não existe muita motivação em assistir à aula se todos os dias é a mesma rotina. Deve-se levar em consideração que foram observadas 30 aulas e a duração de cada uma era de 50 minutos, dando um total de 25 horas de observação.
Fala do professor referente ao clima relacional[2] entremeada por conversas paralelas dos alunos |
2h |
Fala dos alunos sobre questões da aula |
35' |
Fala dos alunos sobre questões fora da aula: o professor continua a aula ou espera silêncio |
28'
|
Outra: cópia de questões para interpretação interpretação de texto chamada |
45' 44' 1h33' |
Tabela 1
Fala do professor sobre o assunto/ conteúdo da aula |
4h45' |
Fala do professor referente ao clima relacional entremeada por conversas paralelas dos alunos |
2h |
Fala dos alunos sobre questões da aula |
35 ' |
Fala dos alunos sobre questões fora da aula: o professor continua a aula espera silêncio |
28 '
|
Leitura de livro didático [LD]: textos exercícios outro |
19 ' 10 ' ---- |
Leitura de livros de literatura [ ] Como? |
---- |
Leitura de: gibis; jornal revistas outro programa do governo “Apostila” (fábulas/ relato etc. textos do Jornal / Cartilha |
---- ---- ---- ---- 1h14 ' 19 ' |
Escrita(autoria): individual em dupla em grupo |
2h21 ' ---- 27 ' |
Escrita (cópia): LD =texto LD = exercícios de gramática 3 Atividade extra-programa |
14 ' ---- 50 ' |
Escrita (cópia): lousa = texto lousa = exercícios de gramática 3 |
3h03 ' 1h11 ' |
Gramática 3: exercícios do LD exercícios da lousa Outro: análise |
---- ---- 37 ' |
Gramática 3: aula expositive |
2h26 ' |
Gramática 2: reescrita (autoria): individual em dupla em grupo |
---- ---- ---- |
Outra: cópia de questões para interpretação interpretação de texto chamada |
45 ' 44 ' 1h33 ' |
Atentemo-nos para o fato de que, do total de 25 horas observadas e disponibilizadas para que se ensinasse o conteúdo necessário, a professora dessa escola utilizou apenas 4h45'. Em relação ao problema da cópia, por sua vez, os mesmos dados evidenciam quanto tempo os estudantes passam copiando textos da lousa: são mais de cinco horas desperdiçadas apenas para a cópia de textos e tarefas.
Diferentemente da escola A, o que se observa na escola B é um extremo interesse dos alunos. Eles correm, sim, pelos corredores, gritam e conversam até chegarem às salas de destino, mas talvez estas sejam atitudes normais e saudáveis de crianças e adolescentes, às quais não seria necessária tanta repressão, como acontecia nas aulas observadas da escola A.
Os alunos da escola B, então, parecem ser estimulados a buscar, sem a ajuda do professor, pelo conhecimento, diferentemente do que acontece na outra instituição, em que poucas são as tarefas realizadas em casa, o que não contribui para uma rotina de estudos fora da sala de aula, ou seja, o aluno não é acostumado a estudar em outro ambiente que não seja o da escola. Dessa forma, não há meios para que ele aprenda como estudar de forma autônoma e avance na aprendizagem, sendo que, segundo o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a criação da autonomia é um dos objetivos primeiros da escola, para que, assim, sejam formados indivíduos críticos e criativos para enfrentar as situações díspares do mundo atual.
Visto que “a linguagem tem papel decisivo na construção do conhecimento” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2006b:01), um dos deveres da escola, em comunhão com professores, é dar subsídio para que os alunos exerçam seus direitos como cidadãos, isto é, que sejam capazes de refletir sobre fatos e tomar decisões, usar a linguagem para clarificar suas idéias e atitudes. Resta, no entanto, a capacidade concreta desses professores para conceder esse letramento necessário. Ainda, segundo Semeghini-Siqueira (2006:03), cabem aos professores dois papéis: “o de gestor dos processos de ensino e aprendizagem e o de gestor do clima relacional existente na sala de aula”. Esses dois fatores são, portanto, essenciais para a melhor simbiose entre professor e aluno: eles formam uma unidade para que os melhores resultados, ou aqueles desejados, sejam obtidos.
Para o aluno, então, desenvolver o conhecimento, é necessário também que ele seja capaz de ler, interpretar, estudar de modo independente e pesquisar. Aprender a refletir sobre seus próprios erros é imprescindível para que as crianças avancem na formação. Mas, o que foi observado nas salas de aula da escola A foi exatamente o contrário: atividades de reescrita, por exemplo, não foram pedidas ou estimuladas pelas professoras, e as de leitura ficaram restritas somente ao material usado durante as atividades, como se nota no quadro abaixo:
Leitura de: gibis jornal revistas outro programa do governo “Apostila” (fábulas/ relato etc) textos do Jornal / Cartilha |
---- ---- ---- ---- 1h14 ' 19 ' |
Notas
[1] Seqüências didáticas, como o próprio nome diz, são um conjunto de atividades planejadas para ensinar um determinado assunto.
[2] Clima relacional diz respeito ao tempo perdido pelo professor na tentativa de manter a sala em silêncio.
Referências bibliográficas
SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (2006a). Atividades de oralidade, leitura e escrita significativas: a construção de minidicionários por crianças com a mediação de professores. In: CATANI, D. & VICENTIM, P. Formação e Auto-formação: saberes e práticas nas experiências dos professores. São Paulo: Escrituras.
_____. (2006b). O poder do passado nas práticas escolares de oralidade, leitura e escrita contemporâneas: reconstituição de alicerces para otimizar o grau de letramento/literacia de jovens brasileiros. Anais/ Actas. XIV Colóquio da AFIRSE “Para um balanço da investigação da educação de 1960 a 2005”. Lisboa: Universidade de Lisboa/ FPCE.
SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa; BEZERRA, Gema Galgani; GUAZZELLI, Tatiana. (2001). Revitalizando a formação docente inicial e contínua: comunicação a distância entre alunos do EF mediada por professores e estagiários. Anais. Simpósio Internacional Crise da Razão e da Política na Formação Docente. Rio de Janeiro: UFF.
PEREIRA. Camila. (2008). 100% Lá X 48% Aqui. Revista Veja. São Paulo, n. 2063, p. 168-170, jun.