Adaptação do cordel ao gênero teatral

 

Cecilia Helena dos Santos Fico
Éwerton Silva de Oliveira
Livia Mara Ganzella
Rita de Cássia Fernandes de Souza
Thaís Keiko Matsuy

 

Resumo
presente projeto traz para a sala de aula um processo de adaptação do gênero cordel ao gênero teatral. Primeiramente, os alunos reconhecerão a importância cultural do cordel por meio de leituras e debates relativos a textos propostos. O mesmo acontecerá com as peças teatrais. Por fim, baseando-se nos conhecimentos adquiridos ao longo dessas aulas, os alunos, divididos em grupos, farão suas próprias adaptações, apresentando-as, ao final, na forma de cenas dramáticas.

 

Palavras-chave
adaptação textual, literatura de cordel, cultura popular, teatro

 

Introdução

A fonte de inspiração para o tema deste projeto foi uma reportagem de capa da Revista Discutindo Literatura, cujo assunto era a importância do cordel para a literatura brasileira. Indo ao encontro da matéria, chamaram nossa atenção os comentários sobre adaptações de cordéis para outros gêneros, tendo destaque, entre esses, o dramático. Achamos interessantes, também, as referências a inúmeros escritores canônicos, como Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Castro Alves, Dias Gomes, Ariano Suassuna e Jorge Amado, que, além de terem sido profundos conhecedores da literatura de cordel, escreveram obras reconhecidas neste gênero, colocado, muitas vezes, à margem das letras brasileiras[1].

Por ser uma produção originária do Nordeste, o cordel revela a realidade e a cultura de sua região, emanando um conhecimento sobre outro e, consequentemente, sobre nós mesmos, uma vez que os nordestinos tiveram papel ativo na história de São Paulo. Candido, em A literatura e a formação do homem, comenta esse poder que a literatura tem de revelar uma realidade e uma cultura:

"Isto posto, podemos abordar o problema da função da literatura como representação de uma dada realidade social e humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta realidade." (1972, p. 808)

Sendo o cordel uma manifestação cultural considerada “popular” e tendo suas origens na tradição oral[2], adaptá-lo torna-se um desafio, principalmente quando, assim como ocorre em nosso projeto, o produto final é “erudito”. Contudo, esse desafio faz parte da pluralidade que é própria da cultura brasileira, comentada por Bosi:

"Ocorre, porém, que não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e dos nossos discursos (...). A cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se, em certas situações, com a cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice-versa." (1987, p. 7)

No campo das habilidades específicas, estamos interessados em possibilitar aos alunos a participação em um processo intenso de reescrita, seja na elaboração do cordel, seja na adaptação desse ao teatro. Sobre a importância da reescrita, que deve ter função formativa, e não somente avaliativa, Schneuwly comenta:

"Dito de outra forma, o escritor pode considerar seu texto como um objeto a ser retrabalhado, revisto, refeito, mesmo a ser descartado, até o momento em que o dá a seu destinatário.” (2004, p. 112)

Antes de escrever, porém, eles também desenvolverão o ato da leitura. Por meio dela é que poderão tomar nota das estruturas e peculiaridades de ambos os gêneros, tendo, assim, condições de diferenciá-los e, mais importante que isso, sentir como um ecoa no outro. Sobre a importância da leitura para a escrita, Garcez comenta:

“Nosso convívio com a leitura de textos diversos consolida também a compreensão do funcionamento de cada gênero em cada situação. Além disso, a leitura é a forma primordial de enriquecimento da memória, do senso crítico e do conhecimento sobre os diversos assuntos acerca dos quais se pode escrever.” (2008, p. 23)

Essa leitura anterior à produção escrita poderá proporcionar aos alunos a oportunidade de ampliarem seus repertórios de temas a serem desenvolvidos em textos futuros, assim como poderá mudar seus pontos de vista acerca da importância da literatura para a aquisição de informações.

Sugerimos os cordéis Preservando para melhorar[3], de Elmo Nunes, e Proezas de João Grilo[4], de João Ferreira de Lima. Já com relação aos textos teatrais, sugerimos Sonho de uma noite de verão[5], de William Shakespeare, O Auto da Compadecida[6], de Ariano Suassuna, e O pagador de promessas, de Dias Gomes. Considerando que adaptar um texto requer enorme esforço e envolvimento, tanto de leitura e pesquisa na sondagem, quanto de escrita e criação na transposição, o professor poderá trabalhar com cenas em vez de peças integrais. Ou, então, para homogeneizar o conteúdo, poderá dividir entre as turmas as cenas de uma mesma peça. Fica a critério de cada um.

 

Sequência didática

Módulo I – Conhecendo os gêneros

Parte 1 – Cordel 

Após uma breve introdução, por parte do professor, do gênero cordel, atentando para sua origem, principais características e temas mais frequentes, a classe será dividida em grupos para a realização de duas atividades: uma primeira relativa a leitura e uma segunda a escrita. Na primeira, o professor distribuirá diferentes fragmentos de cordéis, alternando entre Preservando para melhorar e As proezas de João Grilo. Para direcionar os alunos nesse contato inicial, poderão ser feitas perguntas acerca do conteúdo e da forma dos textos:

1. Qual é o tamanho do cordel?
2. Como é a ilustração (como ela foi feita e quais suas características)?
3. É escrito em prosa ou em verso?
4. Como ele é dividido?
5. Qual é o esquema rímico?
6. Tem uma metrificação uniforme? Se tem, qual é?
7. Qual é o tema?
8. Quem conta a história? Ela está em primeira ou terceira pessoa?

 

Os alunos debaterão as impressões que tiveram e farão uma apresentação daquilo que ganhou mais destaque e que levantou maior curiosidade. Seria interessante, também, que cada grupo lesse o fragmento que recebeu, dividindo os novos conhecimentos e enriquecendo o trabalho, já que o cordel, gênero fundamentado na oralidade, possibilita esse exercício com extremo requinte. A quantidade de aulas para realização dessa atividade é relativa; dependerá do rendimento e do envolvimento das turmas e da disposição do professor em investir mais ou menos neste projeto.

A seguir, vem o primeiro contato com a escrita. Os mesmos grupos produzirão uma estrofe que possua ritmos característicos do cordel. O tema de cada grupo será fornecido pelo professor. Dentre os temas poderão estar questões atuais, como ecologia – o desmatamento e a seca –, a saúde pública, a vida cotidiana, etc. Ao término dessa atividade, o professor poderá fazer uma correção mais detalhada das estrofes, com indicações e sugestões, e separar a aula seguinte para que haja um reencontro dos alunos com seus textos. Desse modo, terão como refletir sobre os erros e reescrever uma nova versão, revisitada e com melhor acabamento. Ao final, farão a leitura dessas produções para a sala.

 

Parte 2 – Texto teatral

Mais uma vez as atividades serão voltadas à construção do saber pelos próprios alunos. Um novo questionário poderá guiá-los no contato com as cenas distribuídas, as quais serão, preferencialmente, aquelas já adaptadas do cordel, como O Auto da Compadecida e O pagador de promessas:

1. Existem diferenças em relação aos tamanhos do texto teatral e do cordel?
2. No texto teatral, como estão indicadas as ações das personagens?
3. É escrito em prosa ou em verso?
4. Como ele é dividido?
5. Possui um narrador? Se possui, qual é sua função para o desenvolvimento da cena?
6. Qual é o tema?
7. Aponte outras diferenças entre o texto teatral e o cordel.

 

Apêndice – Além da sala de aula.

Sugerimos, para que os alunos possam enriquecer suas experiências, uma possível visita a uma peça teatral. Inúmeros portais divulgam peças por toda a cidade, com imensa variedade de conteúdos e preços. Não sendo possível, o professor poderá passar algum filme que tenha sido feito a partir dos textos estudados em classe, a fim de explicar as formas e as diferenças das linguagens teatral e cinematográfica. São opções: O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, e O Auto da Compadecida, de Guel Arraes.

 

Retornando à sala de aula, o professor poderá conversar com os alunos sobre a peça ou o filme a que assistiram. Após isso, os grupos seguirão o molde da Parte 1 e apresentarão seus pareceres, lendo, também, os fragmentos das peças que utilizaram. Pode-se salientar com mais profundidade, nesse momento, questões referentes a entonação, cadência e pontuação, além das posturas vocais e corporais, tão importantes em uma dramatização.

 

Módulo II – A adaptação

Caminhando para a produção final, os alunos poderão escolher um novo cordel a ser utilizado. Começarão, em sala de aula, a adaptar esse texto ao gênero dramático. A duração deste módulo também é relativa e imprevisível, sendo importante garantir ao menos um reencontro deles com seus textos.

Essa etapa é certamente a mais complexa, pois mobiliza elementos lingüísticos da peça teatral que é preciso ensinar aos alunos. O professor, para organizar o trabalho, poderá optar basicamente por dois caminhos: 1. propor aos alunos uma pesquisa sobre a estruturação de um texto teatral, ou seja, as partes que o compõem e suas características; 2. realizar ele próprio essa pesquisa e expô-la para a classe. A opção dependerá em grande parte do tempo disponível, mas não há dúvida de que, sendo pelo primeiro caminho, o aprendizado terá sua qualidade mais garantida.

Depois de conhecer a natureza do gênero a ser produzido, é preciso cuidar do processo de transposição, o que, claro, só poderá ser feito em grupo, pois nesse caso a interação e a negociação dos pontos de vista só tornarão mais rico o trabalho. Mas é sempre bom lembrar que trabalhar em grupo não é algo que se aprende de uma hora para outra; talvez seja o aprendizado mais difícil (o próprio professor conhece a dificuldade de trabalhar em equipe) e o mais profícuo.

Terminada a adaptação, haverá uma troca, nos moldes da dramaturgia coletiva, entre todas as cenas. Ela se dará através de um sorteio. Cada grupo, logicamente, deverá ter em mãos uma cena que não a sua. O projeto se encerrará com as apresentações, que poderão se expandir para toda comunidade escolar e até para festivais, como os do SESI, por exemplo.

 

Notas

[1] “Qual seria então o lugar do rap, da literatura de cordel, das letras de músicas e de tantos outros tipos de produção, em prosa ou verso, no ensino da literatura? Sem dúvida, muitos deles têm importância das mais acentuadas, seja por transgredir, por denunciar, enfim, por serem significativos dentro de determinado contexto, mas isso ainda é insuficiente se eles não tiverem suporte em si mesmos, ou seja, se não revelarem qualidade estética. Gramsci, em 1934, já estabelecera uma diferença entre valor cultural e valor estético: 1. Muitas obras de grande valor cultural têm escasso valor estético, até mesmo porque não se propuseram a isso. É o caso, por exemplo, dos escritos de José do Patrocínio; outros, mesmo produzidos por artistas não letrados, mas que dominam o fazer literário – ainda que quase instintivamente – certamente deverão ser considerados no universo literário. Patativa do Assaré, por exemplo, e tantos outros encontrados no nosso rico cancioneiro popular”. (Orientações Curriculares Nacionais - grifos nossos)

[2] A literatura de cordel é um tipo de poesia popular, originalmente oral e depois impressa em folhetos rústicos, os quais eram expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, fato que deu origem ao nome. O cordel chegou ao Brasil no período colonial, difundindo-se, como sabemos, na região Nordeste.

[3] Trata o tema da preservação do meio ambiente, tão recorrente na atualidade.

[4] Aqui há um exemplo típico de adaptação, já que a peça O Auto da Compadecida teve origem direta do cordel. Outro texto desse tipo, importante para inspirar os alunos, pois aparece nos dois gêneros estudados, é O pagador de promessas.

[5] Material interessante por conter questões ligadas à juventude e por ter sido escrito por um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, William Shakespeare.

[6] O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, sofreu influência dos seguintes cordéis: Proezas de João Grilo, de João Ferreira Lima, O cavalo que defecava dinheiro e O dinheiro (o testamento do cachorro), ambos de Leandro Gomes de Barros

 

Referências bibliográficas

BOSI, Alfredo. Plural, mas não caótico. In: _______. (org.). Cultura brasileira; temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. p. 7-15.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e Cultura, 24(9), setembro de 1972. p. 803-809.

GARCEZ, Lucília Helena do Carmo. Técnica de redação; o que é preciso saber para bem escrever. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Os Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

 

Bibliografia de apoio

Revista Discutindo Literatura. São Paulo, Escala Educacional, Ano 4, Número 19.

Disponível em: www.discutindoliteratura.com.br.

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BELINKY, Tatiana; GOUVEIA, Júlio. Teatro para crianças e adolescentes: a experiência do TESP. In: ZILBERMAN, Regina (org.) [et al]. A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.

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Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf

CALKINS, Lucy McCormick. A Arte de ensinar a escrever: o desenvolvimento do discurso escrito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.

HAVELOCK, Eric. A equação oralidade-cultura escrita: uma fórmula para a mente moderna. In: OLSON, D. R.; TORRANCE, N. (org.). Cultura Escrita e Oralidade. São Paulo: Ática, 1995.

HERNÁNDEZ, Fernando. Os projetos de trabalho e a necessidade de mudança na educação e na função da escola. In: ______. Transgressão e mudança na educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

MATEUS, J. A. Osório. Notícia de um folheto de cordel. In: ______. Escrita do Teatro. Amadora: Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand (Impressa Portugal-Brasil), 1977. p. 107-121.

NOVELLY, Maria C. Jogos teatrais para grupos e sala de aula. Trad. Fabiano Antonio de Oliveira. Campinas: Papirus, 1994.

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Corpus

GOMES, Dias. O Pagador de promessas. São Paulo: Agir, 1961.

LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2001.

NUNES, Elmo. Preservando para melhorar; diálogo Ecológico. Buritizal, Poranga. Ceará, Fortaleza: Tupynanquim Editora, 2007. 1a ed.

PACHECO, José. O grande debate de Lampião com São Pedro. São Paulo: Luzeiro, s/d.

SHAKESPEARE, William. Sonho de uma noite de verão. São Paulo: Scipione, 1986.

SUASSUNA, Ariano. O Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2002.

    

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