A linguagem audiovisual no processo de alfabetização

 

Lívia Lima da Silva

 

Minha experiência no projeto “Ler e escrever” foi muito produtiva. O projeto é uma oportunidade de estágio que, como todos deveriam ser, nos ensina muito não somente sobre os conteúdos abordados na Universidade, e que se fazem necessários no dia-a-dia na escola, mas também sobre todas as características que são inerentes ao trabalho escolar, a rotina, o relacionamento com as pessoas que trabalham na escola, desde inspetores, professores, coordenador e diretor.

Sobretudo em relação ao relacionamento, a experiência de conviver com as crianças foi a mais importante. Elas transmitem muita alegria, e isso torna o trabalho com elas muito agradável. É interessante analisar seu comportamento e a forma como vão adquirindo os conhecimentos, dentre eles a leitura e a escrita. Eu, pessoalmente, tive a sorte de ter sido muito bem recebida pelos alunos e pude construir um relacionamento de afetividade mútua entre mim e eles.

Em geral, esse bom relacionamento favoreceu o meu trabalho na sala de aula. Meu papel como aluna-pesquisadora, além de ajudar a professora na preparação das atividades, foi, sobretudo, dar auxílio às crianças, ajudando-as nas dúvidas que freqüentemente possuíam. De maneira geral, acredito que minha presença fez diferença no apoio para a aprendizagem dos alunos.

Acredito que os estudantes costumam ver a aluna-pesquisadora como uma espécie de ponte entre eles e o professor. Eles pediam que eu os ajudasse, para que, assim, pudessem ser aprovados pela professora. Isso também causou efeitos negativos, pois, muitas vezes, se acomodavam e esperavam que eu lhes desse as respostas, sem que precisassem construí-las.

Outra característica negativa é a questão da autoridade. De modo geral, percebi que as crianças não enxergavam a figura do aluno-pesquisador como uma autoridade a quem deveriam respeitar. E, por serem muito pequenos e agitados, era difícil controlar seu comportamento em determinados momentos, ou quando a ausência da professora na sala de aula se fazia necessária.

Essas foram, a meu ver, as principais dificuldades para a realização do meu trabalho de aluna-pesquisadora. Excluído isso, tudo foi muito proveitoso. Em relação à aprendizagem da leitura e da escrita, pude presenciar a evolução da aquisição de algumas crianças, e acompanhar esse processo foi bastante interessante.

É significante analisar que cada criança tem seu modo e tempo de aprender, criando suas próprias formas de se relacionar com esse aprendizado. É importante estar atento aos detalhes que muitas vezes são determinantes para que cada aluno interprete da melhor forma possível como ele deve fazer para conseguir ler e escrever.

É possível ainda identificar traços de um ensino baseado na memória, tal qual o usado nas cartilhas, que fazem com que a criança associe as letras não apenas ao som, mas a um referencial de mundo, palavras como nomes de animais, de alimentos etc.

Percebi que foi difícil para a professora desenvolver as atividades, considerando os diferentes níveis de leitura e escrita dos alunos. Por trata-se de uma turma de 35 alunos, ela não interrompia o curso das atividades, para esperar que todos os alunos pudessem compreender igualmente os conteúdos trabalhados.

Na escola, principalmente na sala de aula, observei que as crianças da primeira série eram muito agitadas. A relação do aluno com a prática de ler e escrever muitas vezes se associa diretamente com o comportamento dele em classe. Constatei que alguns alunos que antes eram bem agitados, conforme se sentiam mais familiarizados com a escrita e a leitura, adquiriam mais capacidade de disciplina e concentração.

A professora procurava utilizar diferentes recursos para que, de modo geral, todas as crianças participassem das aulas e das atividades. Observei que, dependendo da forma como eram trabalhadas, havia uma demonstração maior de interesse, e a capacidade de compreender o conteúdo também se tornava diferente.

Neste artigo analisarei as formas como as narrativas foram abordadas em sala de aula e a reação das crianças em face dessas diferentes formas, sobretudo por meio da linguagem audiovisual da televisão e dos filmes.

Como já apontei, os alunos de primeira série eram mais agitados e acredito que isso se devia em parte pelo fato de eles ainda não estarem totalmente habituados e adaptados à rotina e à disciplina escolares. Contudo, em relação às narrativas, percebi que, de modo geral, as crianças perderam o hábito de ouvir histórias.

Walter Benjamin, um grande estudioso da comunicação e da arte, apontou para o desaparecimento do narrador na sociedade moderna, e como isso se manifestava na literatura. Ele afirma:

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. (...) É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. (1994:197)

Assim como Benjamin aponta, há o desaparecimento do narrador. Também se pode considerar que, junto com este, houve o desaparecimento do “narratário”[1], ou seja, daquele a quem o narrador se destina.

Em outros estudos de Benjamin, alinhados às teorias da Escola de Frankfurt, há a preocupação em analisar a chamada “indústria cultural”. Trata-se de um conceito que considera o conjunto de empresas e instituições que se dedicam à produção de cultura, com fins lucrativos, tais qual a televisão, o rádio, o cinema, os jornais e as revistas.

Todos esses veículos de comunicação estão presentes no cotidiano das crianças de alguma forma. Mesmo que alguns não façam parte diretamente do cotidiano delas, como acredito que venha a ser o caso dos jornais e revistas, pode-se dizer que há um reconhecimento de sua função e de seu papel dentro da sociedade.

Os meios de comunicação são os espaços públicos, onde deveria ser possível a manifestação das diferentes opiniões que surgem em nossa sociedade. Entretanto, uma das críticas à chamada “indústria cultural”, é à homogeneização, como em uma linha de produção, que não considera as distinções por valorizar a quantidade em detrimento da qualidade.

Dentre todos os veículos, a televisão é o de maior destaque em nosso país, por sua abrangência e forma como transmite conteúdos. Como analisa Bucci:

Tire a TV de dentro do Brasil e o Brasil desaparece. A televisão é hoje o veículo que identifica o Brasil para o Brasil, como bem demonstrou Maria Rita Kehl em seu ensaio Eu vi um Brasil na TV. A TV une e iguala, no plano do imaginário, um País cuja realidade é constituída de contrastes, conflitos e contradições violentas. São 156 milhões de habitantes dispersos por 8.547.403,5 km². São costumes e tradições culturais tão distantes quanto os Caiapós no sul do Pará e os imigrantes alemães de Santa Catarina. Sobretudo, são abismos sociais intransponíveis no curso de uma vida: segundo relatório sobre desenvolvimento do Banco Mundial, de 1995, a pior distribuição de renda do mundo é a brasileira. A TV produz a unidade onde só há disparidades. Sem ela, o Brasil não se reconheceria Brasil. Ou, pelo menos, não se reconheceria como o Brasil que tem sido.

Percebi, escutando e conversando com as crianças, que elas despendiam boa parte do tempo assistindo à TV. Os desenhos animados eram os programas a que mais se referiam. Os desenhos são as narrativas às quais as crianças são submetidas diariamente e que são muito mais atrativas que as narrativas tradicionais. Torrent (2007), educador norte americano, estuda esse fenômeno e afirma:

A maioria dos pais está muito ocupada com suas vidas dedicadas ao trabalho. Muitos responsáveis não percebem que o diálogo caseiro foi corroído, expulso de casa pelas mídias eletrônicas/digitais. Não há mais avôs e avós contando histórias para as crianças. Hoje, são as mídias (principalmente, a comercial) as contadoras de história de todas as famílias.

Diante disso, é possível dizer que se trata de um fenômeno realmente reconhecido pelos estudiosos não só do nosso país, o fato de as crianças conviverem cotidianamente com a linguagem audiovisual, sobretudo da televisão.

Uma das situações que me fez refletir sobre esse assunto foi em uma ocasião na sala de aula em que fizemos uma leitura em conjunto de uma história em quadrinhos da Turma da Mônica. A professora realizou em conjunto a formação de uma história, porque não havia texto nos quadrinhos, e as crianças foram, então, relatando o que achavam que estava acontecendo. Tratava-se de uma história simples envolvendo as personagens da Turma.

A professora, então, perguntou aos alunos de onde eles conheciam os personagens. Eles foram respondendo e falaram que os conheciam dos gibis, mas também dos filmes a que assistiam, dos DVDs. Achei muito interessante, porque, em comparação com a minha infância, quando não existiam desenhos animados da Turma da Mônica, a única referência que tinha eram as histórias em quadrinhos.

Acredito que, inserido dentro da proposta de indústria cultural, há uma tendência de transformação de referências antigas para dentro da proposta audiovisual. Assim também acontece com os contos de fadas que foram utilizados pela Disney e que são mais associados aos filmes produzidos por essa empresa do que aos seus autores originais, como Perrault ou La Fontaine.

Como afirma Pillar (2001), a Disney foi e continua a ser uma das maiores educadoras do século:

Os filmes, sobretudos os da Disney, são muito utilizados na escola. Minha professora tem abordado desde o início do ano os contos de fadas e ela realiza diversas formas para trabalhar as narrativas. Ela procura aliar a leitura da história para toda a classe, e quando possível utiliza algum recurso como os filmes. Já assistimos na escola, Branca de Neve, Cinderela, além de Procurando Nemo, na semana do Dia das crianças, que não fazia parte da temática dos Contos de Fada.

No trabalho com a história de Pinochio, por exemplo, observei um fenômeno no comportamento das crianças. A professora trabalhou de formas variadas; primeiro as crianças ouviram a história em um CD de áudio, como já fizeram em outras aulas, com outras histórias. Era costume repetir uma, duas ou três vezes a história porque as crianças ficavam dispersas. Logo depois, a professora leu outra versão de um livro. O comportamento se repetiu, ou seja, elas continuaram distraídas.

Em outro dia, os alunos foram assistir ao filme de desenho animado sobre o Pinochio. Percebi então que as crianças ficam muito mais concentradas. Isso demonstra o que venho afirmando, isto é, que se perdeu a tradição de ouvir histórias, como antigamente, e isso hoje só acontece através da mediação dos meios de comunicação, principalmente a televisão e o cinema.

É interessante notar como, junto com a imagem, a história ganha mais valor. Em um desenho animado, além da imagem, há o apelo da ação, do movimento e do som que fazem com que a criança se concentre mais e preste mais atenção, para não perder nenhum detalhe.

É assim que o filme acaba ocupando o espaço do gibi, do livro, tornando-se mais atrativo, influenciando também o hábito da leitura. Pode-se afirmar que atualmente na sociedade há uma depreciação do costume de ler porque os produtos culturais audiovisuais são muito valorizados. Isso influencia o processo de alfabetização, pois, se não há um estímulo para realizar a leitura, também não o há para a aprendizagem do código. Conforme analisa Baccega (2002):

Ocorre que a lógica da escritura foi colocada em segundo plano nas últimas décadas. Ela foi ultrapassada pela hegemonia audiovisual e isso traz conseqüências. (...) Podemos falar, no caso, da passagem das culturas orais para a lógica da escritura e, por fim, à hegemonia audiovisual, embora tenhamos a convivência de todos esses tempos e destempos em termos de Brasil e de América Latina. Assim podemos assistir à passagem das culturas orais para a hegemonia audiovisual, sem que se passe pela escritura. Aí temos o que se pode chamar de oralidade secundária, mais ligada aos meios de comunicação, sobretudo à televisão, que aos livros. A alfabetização que as crianças trazem para a escola é essa: oralidade secundária, resultado da comunicação generalizada, da sociedade dos meios de comunicação. (...) Os meios construíram, portanto, uma alfabetização múltipla. Eles elaboram novas formas de conhecimento, que não podem ser recortadas, organizadas e controladas pela escola.

Por isso, pode-se afirmar que hoje as crianças já chegam à escola inseridas dentro de um contexto social audiovisual, já estão “alfabetizadas” para ele. Acredito que a escola não deve ignorar isso e, no caso da escola onde fiz o estágio, particularmente, vejo que há diálogo entre a forma tradicional de ensino, baseada nos livros, e a nova forma, a linguagem audiovisual.

Além da questão dos conteúdos, há a relação com as novas formas de narrativa. Como apontei, pode-se dizer que cada vez mais há o desaparecimento dos narradores e dos narratários, perdeu-se o hábito de contar e de ouvir histórias. Acredito que a escola deve tentar se adaptar a essa nova situação. Como os alunos são muito agitados, as inserções de meios de comunicação audiovisuais na sala de aula, às vezes, são práticas que ajudam a tranqüilizá-los, porque exigem mais concentração.

Percebo que a utilização dos recursos audiovisuais não é negativa; pelo contrário, dentro da escola, ela colabora para que o aluno se sinta mais familiarizado com o ambiente que será semelhante ao que encontra em sua casa. A criança reconhece o que faz parte do seu cotidiano, e percebo que isso estimula o interesse para a aprendizagem.

No entanto, acredito que o diálogo entre escola e meios de comunicação pode ser ainda mais explorado, e que isso pode tanto facilitar o trabalho da escola e dos professores, como também a aprendizagem das crianças, para que, mesmo inseridas em uma sociedade na qual a imagem audiovisual tem um grande valor, elas ainda possam aprender a importância de ler e escrever.

 

Notas

[1] Trata-se de um conceito de Gérard Genette. (In: GENETTE, G. O discurso da narrativa. Lisboa: Vega Universidade, s/d.).

 

Referências bibliográficas

Disponível em: <http://reposcom.portcom.intercom.org.br/

BENJAMIN, Walter (1994). Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin; 7ª ed. São Paulo: Brasiliense. (obras escolhidas; vol.1)

Disponível em: <http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/

GENETTE, Gerard (s/d). O discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega Universidade.

PILLAR, Analice Dutra (2001). Criança e televisão: leitura de imagens. Porto Alegre: Mediação. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/portal/riomidia/rm_entrevista_conteudo.asp?idioma=1&idMenu=&label=&v_nome_area=Entrevistas&v_id_conteudo=68198>

   

Ler 19440 vezes

Deixe um comentário

Verifique se você digitou as informações (*) requerido onde indicado.
Basic código HTML é permitido.