Terça, 30 Novembro 1999 00:00

Leitura e argumentação: aplicação de uma sequência didática

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 Caroline Seixas

 

Resumo

Este artigo apresenta a descrição e a análise de uma sequência didática elaborada para alunos do 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública da Grande São Paulo. Os objetos de ensino aplicados no Projeto foram técnicas de leitura e os argumentos do gênero “artigo de opinião”. Buscamos observar a aplicação da sequência didática a partir das atividades realizadas pelos alunos e da participação destes em aula.

 

Palavras-chave: Argumentação, Ensino de português; Estágio Supervisionado; Leitura.

 

Introdução

 

Pelo presente artigo, pretendemos descrever e analisar as atividades desenvolvidas a título de estágio supervisionado da disciplina de Metodologia do Ensino de Português II (MELP II). Para tanto, foram realizadas cinquenta horas de observação de aulas de português, em turmas do terceiro ano do Ensino Médio, em uma escola pública na Grande São Paulo, além da elaboração e da aplicação de um Projeto de Ensino cujo objeto foi a leitura e a argumentação textual.

O objetivo do trabalho foi, a partir das observações feitas inicialmente, elaborar um Projeto de Ensino voltado ao contexto em que se realizou o estágio e, ao final, analisar as atividades desenvolvidas.

 

 1  Caracterização global do contexto escolar

 

O estágio foi realizado com o professor Pedro[1] nas turmas do 3º ano do Ensino Médio do período noturno, em uma escola estadual localizada em um bairro periférico do município de Osasco, região metropolitana de São Paulo. As informações descritas a respeito do mestre foram colhidas por meio de conversas ocasionais durante os HTPCs[2]. Pedro é professor há vinte e cinco anos e trabalha na rede pública estadual desde 1996. Perto da aposentadoria, Pedro afirma estar, atualmente, um pouco cansado de lecionar, e acredita já ter “cumprido sua missão de professor” durante os diversos anos dedicados ao ensino da Língua Portuguesa. Hoje, trabalha apenas no período noturno na escola onde ocorreu o estágio, dando 20 aulas semanais para todas as cinco turmas do 3º ano do Ensino Médio, contudo, diz já ter feito até “tripla jornada” durante a carreira docente, o que significa lecionar no período matutino, vespertino e noturno em um mesmo dia, com a intenção de compensar o baixo salário.

O professor prefere trabalhar com os alunos do 3º ano do Ensino Médio por serem mais maduros e preocuparem-se com o aprendizado da língua pela proximidade dos exames vestibulares e para se prepararem para o mercado de trabalho. Pedro trabalha apenas com as últimas turmas do Ensino Médio há cerca de cinco anos. No entanto, é justamente com elas que acredita ser mais difícil ensinar literatura, pois, segundo ele, os alunos não demonstram muito interesse: “O que eles querem mesmo é aprender a escrever, por literatura eles não se interessam muito[3], afirma. Aparentemente, Pedro ainda não conseguiu mostrar aos seus alunos que, na literatura, encontramos rico acervo para enriquecer nossa escrita, não só no que se refere aos aspectos linguísticos, mas em relação ao patrimônio cultural, à visão crítica da realidade e à capacidade criativa.

Ao observar a documentação escolar, nota-se que o planejamento enviado aos órgãos responsáveis faz referência direta à proposta oficial da Secretaria Estadual da Educação, podendo, inclusive, ser caracterizado como uma paráfrase do texto oficial. A proposta fala sobre regras para a norma padrão da língua e também para os enunciados que circulam no cotidiano, podendo ser classificada como uma postura normativa dos padrões para o ensino da língua materna. O conceito de letramento aparece descrito como a variedade de gêneros que uma pessoa conhece e são propostos alguns gêneros específicos para serem trabalhados com o Ensino Fundamental II (6º a 9º anos ou 5ª a 8ª séries). Para o Ensino Médio, observamos que a proposta de ensino é dividida em três campos de estudo:

 

I) linguagem e sociedade: propõe uma análise externa da linguagem e da literatura, focada em sua dimensão social;

II) leitura e expressão escrita: trata das características dos gêneros a partir do lugar do receptor na materialidade escrita. Os gêneros são definidos como acontecimentos sociais nos quais interagem suas características marcantes, as quais são definidas como elementos sociais;

III) funcionamento da linguagem: recomenda a análise interna da língua e da literatura como realidades;

IV) produção e compreensão oral: neste ponto, o texto oficial não faz nenhuma recomendação como proposta de trabalho, mas apresenta uma paráfrase do nome do campo de estudo.

 

Na escola em questão não existe o costume de trabalhar projetos interdisciplinares ou temáticos. Cada professor é responsável pelo conteúdo ministrado em sala de aula, podendo ou não ser utilizado o material didático oferecido pelo Governo do Estado. As avaliações também ficam a critério de cada docente, porém 4,0 pontos (do total de 10,0) da média de todas as matérias são compostos com a nota de uma prova interdisciplinar, o chamado “provão”, na qual estão presentes questões de todas as disciplinas.

Ao observarmos como as práticas de letramento configuram-se no ambiente escolar, vimos que não há uma homogeneidade nesse sentido. Os muros da escola, por exemplo, são brancos, sem desenhos ou grafites, contando apenas com a placa que nomeia a escola. Andando pelo pátio (onde os alunos se concentram no período anterior ao início das aulas e durante os intervalos), observamos poucos cartazes concentrados em uma área específica, na qual existe uma espécie de pequeno palco. Nesses cartazes temos uma propaganda de excursão para o parque de diversões Playcenter, um anúncio convidando os alunos a estagiarem no setor público por intermédio da FUNDAP, uma propaganda sobre o ensino técnico estadual e um cartaz feito à mão, informando da obrigatoriedade do uso da camiseta do uniforme escolar e do porte da carteirinha da escola, sem a qual, segundo consta, os alunos não podem entrar.

Os corredores das salas de aulas, por sua vez, não possuem qualquer cartaz, anúncio ou aviso, tendo apenas os números de cada sala pintados em tamanho grande acima das portas. A sala dos professores tem as paredes mais preenchidas da escola. Nela observamos cartazes escritos à mão com os horários de todas as turmas de todos os períodos; um cartaz, também escrito à mão, com os horários em que representantes de uma escola de informática passariam nas salas de aula; um grande relógio de ponteiros; dois computadores com acesso à internet; uma grande televisão, em geral, ligada em jornais ou novelas; diversos armários de uso dos professores, nos quais encontramos o nome de cada professor, além de adesivos de bichos, desenhos e um escudo de time de futebol; um cartaz impresso atentando os professores à manutenção da ordem no ambiente de trabalho; um grande anúncio da APEOESP[4] (manifestando indignação com relação ao último aumento salarial anunciado pelo governo do Estado). Ainda na sala dos professores, existem livros diversos (material didático de disciplinas diversas fornecido pela secretaria estadual, alguns exemplares de Iracema, de José de Alencar, materiais para o ensino de inglês, entre outros) em caixas nos cantos da sala.

As salas de aula também são variadas em relação à configuração das práticas de letramento. Todas as salas possuem duas lousas, contudo, apenas uma é utilizada pelos professores. A outra (que fica numa parede lateral) geralmente é pichada com nomes e recados, além de ser utilizada para exposição de trabalhos. Na sala do 3ºB, por exemplo, encontramos, na lousa lateral, cartazes escritos à mão, com regras normativas de uso da vírgula, porém não foi trabalho realizado pelo professor Pedro, mas pelos alunos de outro período. As carteiras dos alunos também apresentam pichações diversas. Em algumas salas de aula também está disposto um cartaz impresso em folha sulfite, com informações acerca da excursão ao parque Playcenter.

No que diz respeito à interação na escola, observamos que os professores e os alunos interagem juntos apenas durante o período em que estão na sala de aula, com exceção de dois professores que comparecem no colégio aos sábados de manhã para jogar futebol informalmente com alguns alunos. Em geral, durante o período em que não estão na sala, os alunos interagem conversando em pequenos grupos, além de ouvirem músicas e falarem ao celular. Durante o período entre as aulas, alguns alunos concentram-se nos corredores, onde interagem com os colegas de outras turmas. Entre si, os professores aparentam interagir de maneira harmoniosa. Assim também acontece na relação entre os professores e os demais funcionários da escola. Todos se concentram na sala dos professores ou no refeitório, no qual podem apreciar uma refeição servida antes de cada turno.

  

2   A observação

 

Os alunos em geral eram bastante jovens. Não foram encontrados alunos que aparentassem ter idade acima da média dos demais. As turmas podem ser classificadas como tranquilas, sem grandes problemas de indisciplina, com exceção do uso insistente do celular durante as aulas, em geral, para tocar música em alto volume, o que não desgasta o professor Pedro que, muitas vezes, não se posiciona contrariamente em relação a isso.

Os estudantes mostram-se dispostos a realizar as atividades propostas pelo docente, tirando dúvidas e participando, mesmo com os celulares ligados (às vezes tocando duas músicas diferentes ao mesmo tempo).

O professor, por sua vez, apresenta um semblante cansado, apesar de manter uma relação próxima com os alunos, que o cumprimentam com apertos de mão calorosos e com gestualidades marcadamente “adolescentes”. Os alunos aparentam gostar das aulas de Pedro e o professor aparenta se esforçar para manter com eles uma relação harmoniosa. Quanto aos colegas de trabalho, o docente também mantém uma boa relação, fazendo comentários engraçados e irônicos durante as reuniões de HTPC.

 

2.1    A sequência didática observada

 

No que se refere à sequência didática do professor Pedro, observada durante o estágio, a princípio destacamos que todas as horas, tanto de observação quanto de regência, serão realizadas às sextas-feiras, fato importante já que é caracterizador da escolha dos tópicos de ensino pelo professor.

Às sextas-feiras, é observada na escola, tanto por parte dos alunos, quanto de alguns docentes, uma conduta de ausência marcante. Tal fato gera um contexto especial nesse dia da semana, no qual observamos salas de aulas com poucos alunos. Dificilmente são ministradas todas as cinco aulas previstas, tendo em vista que os professores “adiantam” aulas dos colegas que faltaram e todos são dispensados mais cedo. Notou-se que tal conduta parece estar “internalizada” e banalizada tanto nos professores, quanto nos alunos, bem como na administração escolar; todos já esperam por ela a cada sexta-feira e estranham quando o turno não acaba mais cedo.

Na sequência didática bimestral do professor Pedro não é aplicada prova, tendo em vista que os alunos já realizam, a cada bimestre, uma prova interdisciplinar, denominada provão, a qual determina parte da nota de todas as matérias. O restante da nota de língua portuguesa dos alunos de Pedro é composto por exercícios dados no fim de toda aula: os alunos devem resolvê-los em uma folha à parte e entregar para o professor. Pedro afirma que alguns desses exercícios são apenas “vistados” (marcados com o visto do professor na folha e contabilizados para nota pela única razão de terem sido feitos), enquanto outros são efetivamente corrigidos. Assim, durante todas as aulas observadas, foram feitos exercícios a serem entregues no fim de cada aula como parte da composição da nota final do bimestre.

As aulas tinham, em geral, uma entrada ortográfica e eram desenvolvidas em torno da elaboração do exercício para nota, antecedido pela exposição oral do professor sobre o tópico gramatical em questão. Em razão de serem turmas menores às sextas-feiras, o professor acompanhava quase individualmente a produção dos alunos que, aos poucos, conforme acabavam o exercício, levavam a folha na carteira do professor, que lia e conversava com cada aluno sobre sua produção. Alguns alunos, contudo, copiavam as respostas de algum colega e entregavam ao professor no fim da aula, quando não era possível ler e comentar, em razão do tempo.

Depois de algumas semanas de observação, os alunos acostumaram-se com a minha presença na sala de aula e chegaram, inclusive, a procurar-me para tirar dúvidas, individualmente, sobre os exercícios. Esse foi um determinante para a escolha da sala de aula para a qual foi destinada a regência: a turma escolhida foi o 3º ano do Ensino Médio B. Os objetos de ensino observados durante o estágio foram:

AULA

TÓPICO ORTOGRÁFICO

TAREFA[5]

1

Acentuação

Elaborar uma lista de palavras paroxítonas, terminadas em   – l, que, necessariamente, sejam acentuadas.

2

Crase

Re-escrever uma lista de frases passando para o feminino, adequando os termos que passarem a necessitar de crase.

3

acentuação gráfica

Formar dez frases com os verbos reter e convir na terceira pessoa do singular no presente do indicativo.

4

Grafia

Elaborar uma lista de palavras adjetivas terminadas em –z.

5

Grafia

Passar para o plural uma lista de dez palavras terminadas em –ão.

6

acentuação gráfica

Re-escrever uma lista de frases das quais foram omitidos os acentos gráficos, adequando a ortografia.

7

acentuação gráfica

Elaborar uma lista de palavras paroxítonas, terminadas em   –r, que, necessariamente, sejam acentuadas.

8

acentuação gráfica

Colocar acentos em uma lista de palavras.

9

morfemas gramaticais

Elaborar uma lista de palavras iniciadas pelo prefixo re-, observando a nova ortografia oficial.

10

--

Apresentação de filme: O Alienista

TABELA 1: Objetos de ensino da sequência[6]

As aulas foram aplicadas de duas formas diferentes: na primeira, o professor permanecia em sala de aula durante todo o tempo desta, por não haver necessidade de “adiantar” aula em alguma outra turma; na segunda, para as turmas nas quais era necessário “adiantar” aula, o professor adentrava, passava a descrição da tarefa na lousa, se necessário, dava alguma orientação oral e retornava para outra sala. A turma com a aula “adiantada” ficava muito tempo sozinha, pois o professor retornava apenas no fim da aula para recolher as folhas com a tarefa solicitada.

Dessa forma, observamos que a sequência das aulas do professor Pedro tem como objetivo esclarecer alguns tópicos ortográficos julgados relevantes pelo docente, já que, segundo ele, seus alunos apresentam muitas dúvidas na hora de escrever. Os demais tópicos referentes ao currículo de Língua Portuguesa são tratados nos demais dias, já que os alunos dos terceiros anos têm quatro aulas de português por semana, incluindo as chamadas aulas de apoio.

 

2.2   Os gestos e os instrumentos didáticos

 

O professor Pedro, ao adentrar a sala de aula, cumprimenta os alunos que, aos poucos, começam a sentar-se, acalmando a euforia que sentem no intervalo entre as aulas. Como já mencionado, Pedro mantém uma relação próxima com seus alunos. Observamos muitas vezes que, depois de entrar, o professor ficava alguns minutos conversando sobre futebol com eles; chegou a perguntar como estava a irmã de uma aluna, para quem lecionou no passado, fez piadas e não gastou tempo com sermões e broncas. Os alunos, por sua vez, aparentavam estar à vontade na presença do professor, também fazendo piadas, rindo e tocando música no celular.

Na sequência observada nos terceiros anos, o professor faz uso da lousa e giz como instrumento material, com o objetivo de escrever as tarefas a serem realizadas durante a aula, bem como para dar exemplos dos tópicos ortográficos, tratados como objeto de ensino.

A organização geral da aula de Pedro pode ser resumida da seguinte forma: o professor, após adentrar, cumprimentar os alunos e fazer a chamada, escreve na lousa a tarefa do dia, avisa sempre que é para nota, lê a tarefa anotada e dá um exemplo do que espera. Caso haja alguma dúvida, o professor a sana oralmente e depois aguarda sentado em sua cadeira os alunos terminarem a tarefa e a levarem até lá. Aos poucos, os alunos vão terminando e entregando a tarefa ao professor que a lê na presença do aluno e comenta o que for necessário. Algumas vezes, o professor solicita que o aluno corrija alguma imperfeição na tarefa. Quando finalizam a atividade, os alunos conversam e ouvem música no celular.

O professor afirma que trabalha apenas com pequenos tópicos ortográficos nas aulas de sexta-feira porque são menos frequentadas pelos alunos e também porque, com tais atividades, é possível “adiantar” aula quando necessário.

Em relação aos gestos didáticos do docente, o mais importante e com papel fundamental em sua sequência, sem dúvidas, é a formulação de tarefas. É o gesto mais recorrente e central nas aulas observadas, tanto no que se refere ao planejamento pedagógico do professor, como também em seu método de avaliação, já descrito anteriormente. Além de formular tarefas, Pedro também utiliza a elementarização como gesto didático, quando, após apresentar as atividades a serem desenvolvidas em aula, cita exemplos e trata do tópico gramatical em questão.

  

3  O Projeto de Ensino

 

Para a elaboração do Projeto de Ensino para aplicação na atividade de regência constituinte do estágio supervisionado, foram observadas as turmas a fim de constatar algum fenômeno específico que pudesse ser trabalhado com o objetivo de complementar a formação dos alunos. O professor Pedro disse que eu seria livre para escolher o tema com o qual quisesse trabalhar. As observações evidenciaram a ausência do trabalho com textos durante a sequência observada, o que se constitui um problema para o tratamento dos tópicos gramaticais escolhidos pelo professor que, muitas vezes, lançou os conceitos relacionados à acentuação e à grafia das palavras de maneira dispersa, sem relação entre as aulas.

Neste artigo, o texto é concebido conforme o conceito abordado por Koch  (2007, p.26), como:

[...] um lugar de interação de sujeitos sociais que, dialogicamente, nele se constituem e são constituídos. E, ainda, que esses sujeitos – ao operarem escolhas significativas entre as múltiplas formas de organização textual e as diversas possibilidades de seleção lexical que a língua lhes oferece – constroem objetos-de-discursoe propostas de sentido, por meio de ações lingüísticas e sociocognitivas. A esta concepção subjaz, necessariamente, a idéia de que há, em todo e qualquer texto, uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis pela mobilização do contexto sociocognitivo no interior do qual se movem os atores sociais.

Dessa forma, foram escolhidos para serem utilizados na sequência dois artigos de opinião com o objetivo de desenvolver com os alunos conceitos de análise textual, bem como estratégias de leitura e, também, para que conduzissem reflexões acerca da ideologia contida nas opiniões expressas pelos textos, questão inevitável tratando-se de artigos de opinião.

A turma escolhida para a aplicação da regência de ensino foi o 3º ano do Ensino Médio B, uma turma na qual acreditei estar mais à vontade com os alunos que se dirigiam até mim para tirar dúvidas durante o período de observação, estavam sempre atentos às orientações do professor e se dedicavam às atividades propostas em aula. Foi, então, elaborada para esses alunos uma sequência didática que tratou da leitura e análise de estratégias de argumentação dos artigos de opinião: Pensamentos quase póstumos, de Luciano Huck e Pensamentos de um “correria”, de Ferréz[7], publicados em 2007 no jornal Folha de São Paulo, na ocasião em que o relógio do apresentador foi roubado.

Esses textos foram escolhidos por poderem conduzir duas perspectivas distintas sobre um mesmo fato: o roubo do relógio do apresentador “global”, que originou o primeiro artigo, Pensamentos quase póstumos, expressando os sentimentos da vítima e uma análise da questão social em foco; e segundo texto, Pensamentos de um “correria”, o qual é claramente uma resposta ao primeiro, publicado no mesmo veículo de comunicação, apresentando outra perspectiva em relação a muitos dos argumentos que sustentaram a opinião de Huck. Além disso, também analisamos algumas opiniões publicadas na internet, por meio de outro gênero textual, o comentário, as quais ilustram um pouco a repercussão midiática do caso à época dos fatos.

A elaboração do Projeto de Ensino foi feita em grupo durante as aulas de MELP II, por integrantes que tinham em comum a elaboração de sua regência a partir das práticas de leitura e análise de artigos de opinião. O grupo reuniu-se com o objetivo de pensar um Projeto de Ensino que pudesse ser aplicado nos diferentes contextos em que se realizaram os estágios supervisionados de cada um dos integrantes, possibilitando a intervenção de ideias distintas que, unidas, formaram quase a totalidade das atividades que foram planejadas para nosso Projeto de Ensino e efetivamente aplicadas na regência.

É preciso considerar, ao escolher o trabalho com os gêneros textuais no ensino de língua materna, que tais gêneros, ao assumir a forma escolar, como afirma Schneuwly (2006), passam a ter uma constituição diferente daquela que tinham nas demais agências sociais, estando, ainda, intrinsecamente relacionados a elas. Assim, ao analisarmos os artigos de opinião em sala de aula, foi preciso, em primeiro lugar, situar as “agências sociais” nas quais encontramos tal gênero, e considerar que seu uso como objeto de ensino vai necessariamente modificar nosso olhar em relação a ele. Este será lido não mais como a expressão de uma opinião selecionada para a publicação em um jornal de grande circulação nacional, mas como um objeto selecionado para ser analisado dentro do contexto de aula de língua materna. A análise, portanto, será voltada para a forma do artigo, para os elementos constituintes do gênero e, também, para o movimento argumentativo utilizado pelos autores.

 

3.1   Aula 1

 

Podemos dizer que a primeira aula começou antes mesmo do início oficial já que, na aula anterior, o professor anunciou aos alunos do 3ºB que, a partir das próximas aulas, quem assumiria a turma seria eu, por um tempo específico. Aproveitei a ocasião para apresentar o Projeto aos alunos e estimulá-los a comparecer já que notei no período de observação que o alunado variava por sexta-feira ser um dia atípico na escola, como já foi comentado. Falei que pretendia trabalhar com textos que tratavam do tema “violência urbana” e que aprenderíamos técnicas de argumentação. Percebi que os alunos se interessaram pelo tema, fazendo questões e demonstrando gosto pela proposta.

Na primeira aula, apresentei-me aos alunos que não estavam presentes na conversa que tivemos anteriormente e fizemos um breve resumo do que pretendia para aquelas aulas de regência. Iniciamos nossa conversa pedindo aos alunos que refletissem sobre dois conceitos importantes para nosso trabalho: desigualdade social e violência. Perguntamos a eles o que entendiam por esses dois conceitos e, depois, passamos na lousa conceitos trazidos de um dicionário e de um livro de geografia. Questionamos se conseguiam perceber naqueles dois conceitos uma relação de causa e consequência e, para isso, conversamos sobre o que é tal relação.

Nessa primeira aula, ainda não chegamos a trabalhar com nenhum dos textos que seriam utilizados como corpus principal do Projeto de Ensino, o que só aconteceu algumas aulas depois. O que pretendíamos era preparar o repertório teórico dos alunos para as discussões a serem feitas posteriormente.

Ao final da primeira aula, chegamos a falar sobre a relação entre a moral e a violência. Explicamos para os alunos o que é um conceito moral, comentando sua individualidade e relatividade em relação à cultura e à sociedade. Em certo momento, um dos alunos disse que a violência poderia ser evitada caso os bandidos resolvessem parar de “fazer o mal” e começassem a trabalhar, em vez de roubar. Esse momento, mesmo não planejado no Projeto inicial para aquela aula, foi interessante já que os alunos tiveram contato com uma perspectiva diferente em relação ao tema da violência e da desigualdade social.

É preciso considerar, para compreender bem como se relacionam os dois fenômenos, que é a própria estrutura social que cria a segregação social e boa parte da violência. A moral, nesse caso, aparece na minoria dos crimes, a maior parte deles poderia ser resolvida com bons programas de combate ao desemprego, com educação de qualidade e menor corrupção política em todas as esferas do setor público.

Percebemos que os alunos prestaram bastante atenção nas conversas que tivemos naquela aula. O professor Pedro permaneceu sentado, sem interferir na conversa ou participar da atividade. Deixamos como recomendação de leitura, para os que gostaram, o livro O que é ideologia, da professora Marilena Chaui, um texto que trata do tema da discussão final da aula, o qual apresenta linguagem didática e pode ser encontrado na internet, para download, em um site que recomendei.

Utilizamos como instrumentos materiais, nessa aula, apenas a lousa e o giz, além de a exposição oral. Como gesto didático, pode ser destacado o par dialógico pergunta-resposta.

 

3.2 Aula 2

 

Nesta segunda aula, relembramos os alunos sobre o que havia sido discutido na última aula e percebemos que a maioria dos que estavam presentes tinha assistido à aula anterior. Perguntamos se alguém tinha “baixado” o livro recomendado e apenas uma aluna disse ‘sim’. Gostaria que mais alunos tivessem procurado a referência bibliográfica, mas fiquei satisfeita com uma aluna ter se interessado, além de acreditar que, no futuro, os demais terão oportunidade para fazê-lo, o que não aconteceria se não tivéssemos recomendado a leitura.

Essa aula foi centrada na elaboração de um diagrama em teia, partindo dos temas discutidos na aula anterior. Um diagrama em teia consiste na elaboração de um diagrama a partir de ideias que forem surgindo em relação a um tema principal. Escrevemos no centro da lousa os fenômenos discutidos na aula anterior (desigualdade social e violência) e perguntamos aos docentes:

Estagiária: O que vocês pensam quando ouvem falar disso? Se vocês fossem escrever um texto cujo tema fosse esses fenômenos, do que vocês falariam? Quando vocês ouvem falar disso pela mídia, quais são as informações recebidas?

 

Assim, aos poucos os alunos falaram o que iam lembrando a respeito dos outros momentos em que tiveram contato com discursos os quais comentavam sobre os fenômenos que estávamos discutindo. Surgiram palavras como: miséria, política, drogas, sistema prisional, luxo, orgulho, entre outras que infelizmente não é possível lembrar e que não foram anotadas. De acordo com o comentário dos alunos foi criada a figura 1 demonstrada a seguir:

 

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FIGURA 1: exemplo de diagrama em teia

 

O objetivo dessa atividade foi observar como um mesmo tema pode ser discutido por meio de perspectivas diversas e, às vezes, até antagônicas. Os alunos disseram que a aula estava semelhante à aula de filosofia e não a de português. Aproveitamos a oportunidade para explicar a eles a importante relação entre linguagem e pensamento, momento não previsto na elaboração inicial da sequência.

Nessa aula, destacou-se o uso da lousa e do giz, além da exposição oral como instrumentos didáticos, e do par pergunta-resposta como gesto didático, embora também tenha sido formulada, como tarefa, a elaboração coletiva do diagrama em teia, e tenha sido utilizada a memória didática no início da aula. Ao final desta, trocamos experiências sobre casos de violência vividos por eles, por mim e pelo professor.

 

3.3 Aula 3

 

Nesta aula, notamos que os alunos estavam agitados e demoramos um pouco para conseguir que eles prestassem atenção, sendo necessária a intervenção do professor Pedro. Após esse pequeno problema no início da aula, relembramos as discussões das aulas anteriores e começamos a analisar os títulos dos textos com os quais lidaríamos nas aulas seguintes.

Em primeiro lugar refletimos sobre o título Pensamentos quase póstumos que foi escrito na lousa. Conversamos sobre o significado da palavra ‘póstumos’, que alguns estudantes não conheciam e, em seguida, analisamos a atenuação provocada pelo uso de “quase”. Também falamos sobre o que provavelmente o autor quis dizer com essa ideia de pensamentos de uma pessoa que quase morreu, mas não morreu. Em seguida, conversamos acerca do título Pensamentos de um “correria”, com certa dificuldade em definir o que seria este “correria”, ao qual o autor referia-se. Notamos que os alunos demonstraram bastante interesse quando começamos a tratar de um universo cultural mais próximo da realidade deles, aproximação esta feita por intermédio da linguagem.

Após conversarmos sobre os títulos de cada um dos textos, tentamos já esboçar alguma diferença de perspectiva que, posteriormente, encontraríamos em relação às opiniões ali expressas. Fiquei satisfeita com o resultado dessa aula, pois acredito que eles chegaram a um ponto importante da reflexão que já vínhamos construindo desde a primeira aula; conseguiram perceber, apenas pelo título, a diferença de perspectiva entre os textos e lembraram as discussões feitas anteriormente. Comentamos que eles poderiam encontrar os textos a serem trabalhados na internet. Como instrumento material, utilizamos a lousa, o giz e a exposição oral; como gesto didático, destacou-se o uso do par pergunta-reposta e da memória didática.

 

3.4  Aula 4

 

Iniciamos a aula perguntando aos alunos se alguém tinha lido os textos cujos títulos analisamos na aula anterior e todos responderam que ‘não’. Fizemos um pequeno comentário a respeito, mas não alongamos a conversa já que, posteriormente, estudaríamos os textos. Para essa aula, solicitamos aos alunos que escrevessem um artigo de opinião, como produção inicial, no qual se expressariam acerca de tudo o que havíamos discutido até então. Pedi a uma aluna que resumisse, oralmente, as atividades feitas desde a primeira aula, o que ela fez, sem problemas, com a ajuda de colegas.

Escrevemos a tarefa do dia na lousa e aguardamos que os alunos fizessem a atividade e viessem tirar eventuais dúvidas; ao passo que iam terminando a atividade, entregavam e podiam sair para o intervalo que ocorreria na sequência. Posteriormente, o professor disse que eu não poderia ter liberado os alunos para o intervalo antes de tocar o sinal.

A atividade anterior tinha caráter diagnóstico, com o objetivo de verificar o conhecimento dos alunos a respeito do gênero. Considerando que todos da turma não tinham lido os textos que seriam analisados nas aulas seguintes, não soubemos a relação que os estudantes tinham com o gênero em questão. As redações apresentadas nessa aula eram pequenos textos os quais expressavam opinião com frases do tipo: “Eu acho que a violência é causada...”.

Dessa forma, concluímos que os estudantes não estavam muito familiarizados com o gênero, e que teríamos, então, que dedicar algumas de nossas aulas posteriores para comentar as características formais e não somente fazer a análise da argumentação encontrada nos textos.

 

3.5 Aula 5

 

Esta aula foi dedicada à análise do texto Pensamentos quase póstumos, o qual foi impresso e distribuído aos alunos. Solicitamos que o guardassem, pois seria utilizado posteriormente. Primeiramente, lembramos a discussão acerca do título do texto ocorrida na aula anterior e, em seguida, pedimos a um aluno que fizesse a leitura em voz alta.

Perguntamos a eles o que era uma paráfrase, e ninguém sabia. Fizemos a institucionalização do conceito na lousa, pedindo que anotassem. Solicitamos que fizessem, oralmente, uma paráfrase do que foi dito no texto, atividade que fizeram coletivamente. Após, conversamos sobre a importância da paráfrase como um recurso para o auxílio da leitura.

Perguntamos aos alunos se já tinham tido algum contato com aquele texto anteriormente considerando a repercussão midiática do caso à época dos fatos; eles responderam que lembravam, mas não com exatidão.

 

3.6  Aula 6

 

Nesta aula, iniciamos conversando a respeito da definição de argumento. Perguntamos aos alunos “o que é um argumento?” e eles responderam oralmente o que entendiam. Institucionalizamos tal conceito com uma definição retirada do dicionário e pedimos aos alunos que encontrassem os argumentos do texto, dando um tempo a eles para que realizassem tal atividade. Após, solicitamos que expressassem, oralmente, os argumentos encontrados no texto; percebemos que eles tiveram dificuldade para encontrá-los. Por meio do par pergunta-resposta, fomos levantando os argumentos, que eram topicalizados na lousa.

No fim da aula, colocamos na lousa os tipos de argumentos (autoridade, princípio, causa e exemplificação[8]). Explicamos oralmente as definições e deixamos como tarefa para casa que os alunos classificassem os argumentos encontrados durante a aula, de acordo com os critérios vistos.

 

3.7  Aula 7

 

No início da aula, pedimos aos alunos que entregassem a atividade solicitada na aula anterior. Nenhum aluno tinha feito a tarefa. Fiquei chateada e conversei com eles sobre a necessidade de engajamento para a boa realização das atividades. Ao fim da aula, o professor disse que esse comportamento era normal e que eles não costumavam realizar tarefas que não fosse para nota, razão pela qual ele formula atividades para nota, em todas as aulas.

Nessa aula, após a conversa sobre a necessidade do engajamento, entregamos aos alunos cópias do texto Pensamentos de um “correria”. Perguntamos a eles o que lembravam a respeito da discussão sobre os títulos dos textos; fiquei contente por perceber que as discussões da aula 3 foram aprimoradas pelos alunos que, dessa vez, apresentaram considerações mais elaboradas sobre o tema. Em seguida, solicitamos que uma aluna lesse, em voz alta, o texto do dia; posteriormente, esboçamos uma comparação com o texto anterior. A seguir, solicitamos que eles encontrassem os argumentos do texto, assim como no texto anterior. Essa atividade os alunos realizaram com facilidade.

 

3.8 Aula 8

 

No início, solicitamos aos alunos, novamente, a atividade a ser realizada em casa, referente à aula 6. Dessa vez, duas alunas tinham feito a tarefa, o que me deixou contente. Conversei com os demais sobre a necessidade de um envolvimento mais responsável com os estudos.

Para essa aula, trouxemos comentários postados na internet sobre os textos analisados nas aulas anteriores em algumas folhas impressas; destacamos as diferenças existentes entre os gêneros “artigo de opinião” e “comentário”. Conversamos sobre a questão da formalidade pertinente ao artigo de opinião e a informalidade encontrada no outro gênero. Observamos os termos utilizados nos gêneros, pontuação, posicionamento dos autores, figuras de linguagem, imagens etc. Conforme conversávamos, fui anotando na lousa, em tópicos, as considerações que surgiram.

Nessa aula, tivemos a oportunidade de conversar acerca das características formais do gênero artigo de opinião, cuja pertinência foi diagnosticada por meio da produção inicial na aula 4.

 

3.9  Aula 9

 

Nesta aula, a preocupação estava relacionada à demonstração da ligação estabelecida entre as aulas anteriores, com o objetivo de que percebessem a sequencialidade das atividades. Levamos a eles a produção inicial entregue na aula 4, corrigida, e conversamos sobre o diagnóstico constatado com base nos textos corrigidos. Conversamos, novamente, sobre as características formais do gênero artigo de opinião, sobre a necessidade da elaboração de uma estrutura relativamente estável, por exemplo, a presença de uma introdução e de uma conclusão, e sobre como são demonstrados os argumentos referentes ao posicionamento defendido no texto etc.

Apresentamos aos alunos o conceito de movimento argumentativo[9]e esboçamos uma análise aplicando o conceito nos dois artigos de opinião com os quais já estávamos lidando.

 

3.10  Aula 10

 

Nesta aula pedimos aos alunos que produzissem uma nova versão do artigo de opinião. Conversamos sobre todas as etapas anteriores, perguntando a eles se lembravam de todas as aulas anteriores. Apenas uma aluna tinha assistido a todas as aulas, mas muitos lembraram várias atividades realizadas. Orientamos que lembrassem as conversas que tivemos, comentários em relação à primeira produção para que elaborassem uma nova versão do gênero artigo de opinião, defendendo um posicionamento sobre o tema discutido desde a primeira aula, apresentando argumentos plausíveis para defender uma tese. Os alunos ficaram até o término da aula realizando a atividade, que foi entregue.

Ao corrigir a atividade, percebemos mudanças significativas na escrita dos alunos, por isso, consideramos a atividade um sucesso.

 

 4   Análise da regência aplicada

 

A aplicação da regência pode ser considerada bem sucedida, em primeiro lugar, pela mudança encontrada nos textos produzidos na aula 10 em comparação aos textos da aula 4. A estrutura textual assemelhou-se mais à forma do gênero artigo de opinião; os parágrafos estavam mais bem organizados, embora ainda encontrados muitos desvios em relação à norma padrão, necessária à formalidade do gênero.

Os alunos, em geral, participaram de maneira satisfatória, demonstrando interesse pela novidade trazida por meio das atividades das quais estavam participando. Notamos que a maioria anotava as indicações passadas na lousa e as discussões foram muito produtivas, gerando a oportunidade de serem quebrados alguns pensamentos preconceituosos.

Um ponto que talvez possa ser considerado negativo foi a baixa participação dos alunos na tarefa proposta na aula 6, para ser realizada em casa. Não obstante às considerações do professor, acredito que eu poderia ter tratado, novamente, em outras aulas, a questão dos ‘tipos de argumentos’, ou solicitado aos alunos que realizassem a atividade em classe, considerando a importância que esse tópico apresentava para a sequência de ensino.

Em geral, os gestos utilizados foram o uso da lousa, a exposição oral, a formulação de tarefas, a institucionalização e a memória didática, contudo, em relação a esta se faz necessário um comentário à parte. Uma das principais preocupações em relação à elaboração da sequência descrita anteriormente esteve relacionada à conexão entre as aulas de forma a criar, efetivamente, uma sequencialidade no ensino do gênero, pois, dessa forma, os conteúdos abordados passam a fazer sentido para os alunos. Assim, pedimos algumas vezes aos alunos que lembrassem as atividades anteriores criando uma relação entre as aulas.

Com base nessa análise, podemos afirmar que as condições de aplicação da regência também contribuíram para o sucesso desta já que se trata de uma turma reduzida de alunos, cerca de um quarto do total de estudantes, assim como a livre escolha temática em relação ao Projeto concedida pelo docente.

 

Referências

Caderno de apoio e aprendizagem – 9º ano do Ensino Fundamental, 2011. Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de São Paulo.

CHAUI, M. O que é ideologia. São Paulo: Abril/Cultural Brasiliense, 1984.


KOCH, I.G.V. Texto, leitura e produção do sentido. In: Um mundo de letras: práticas de leitura e escrita – salto para o futuro – Boletim 3. TV Escola/SEED-MEC, 2007.

Proposta curricular do Estado de São Paulo: Língua Portuguesa. Coord. Maria Inês Fini. São Paulo: SEE, 2008.

SCHNEUWLY, B. “Genres et forme scolaire: enseignement e apprentissage de la langue première à l’école”, 2006, apud GOMES-SANTOS, S. N. Gêneros textuais: objetos de ensino. In: Um mundo de letras: práticas de leitura e escrita – salto para o futuro – Boletim 3. TV Escola/ SEED-MEC, 2007.


Sites

FERRÉZ (2007). Pensamentos de um “correria”, Folha de São Paulo: 08.10.2007, Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u336145.shtm

HUCK, L (2007). Pensamentos quase póstumos, Folha de São Paulo: 1º.10.2007, Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u336144.shtml


Caroline Seixas

Bacharel em Língua Portuguesa e Linguística (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, Brasil, 2011). Licenciada em Língua Portuguesa e Linguistica (Faculdade de Educação/USP, 2011).

 

Anexos


Anexo I – Texto analisado durante a aula.


Pensamentos quase póstumos 

1

 

 

 

5

 

 

 

 

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65

            Luciano Huck foi assassinado. Manchete do "Jornal Nacional" de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário, provavelmente no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no caderno de cultura.

            Não veria meu segundo filho. Deixaria órfã uma inocente criança. Uma jovem viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante triste. Um governador envergonhado. Um presidente em silêncio.
Por quê? Por causa de um relógio.

            Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado.

            Provavelmente não tiveram infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia.

            Agora, como cidadão paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.

            Adoro São Paulo. É a minha cidade. Nasci aqui. As minhas raízes estão aqui. Defendo esta cidade. Mas a situação está ficando indefensável.

            Passei um dia na cidade nesta semana - moro no Rio por motivos profissionais - e três assaltos passaram por mim. Meu irmão, uma funcionária e eu. Foi-se um relógio que acabara de ganhar da minha esposa em comemoração ao meu aniversário. Todos nos Jardins, com assaltantes armados, de motos e revólveres.

            Onde está a polícia? Onde está a "Elite da Tropa"? Quem sabe até a "Tropa de Elite"! Chamem o comandante Nascimento! Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade. Tenho certeza de que esse tipo de assalto ao transeunte, ao motorista, não leva mais do que 30 dias para ser extinto. Dois ladrões a bordo de uma moto, com uma coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas de fogo não se teletransportam da rua Renato Paes de Barros para o infinito.

            Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente em sua missão. Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso.

            Confesso que já andei de carro blindado, mas aboli. Por filosofia. Concluí que não era isso que queria para a minha cidade. Não queria assumir que estávamos vivendo em Bogotá. Errei na mosca. Bogotá melhorou muito. E nós? Bem, nós estamos chafurdados na violência urbana e não vejo perspectiva de sairmos do atoleiro.

            Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex, mas a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo e concluir --com um 38 na testa-- que o país está em diversas frentes caminhando nessa direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas quase "infantis" para uma sociedade moderna e justa.

            De um lado, a pujança do Brasil. Mas, do outro, crianças sendo assassinadas a golpes de estilete na periferia, assaltos a mão armada sendo executados em série nos bairros ricos, corruptos notórios e comprovados mantendo-se no governo. Nem Bogotá é mais aqui.

            Onde estão os projetos? Onde estão as políticas públicas de segurança? Onde está a polícia? Quem compra as centenas de relógios roubados? Onde vende? Não acredito que a polícia não saiba. Finge não saber. Alguém consegue explicar um assassino condenado que passa final de semana em casa!? Qual é a lógica disso? Ou um par de "extraterrestres" fortemente armado desfilando pelos bairros nobres de São Paulo?

            Estou à procura de um salvador da pátria. Pensei que poderia ser o Mano Brown, mas, no "Roda Vida" da última segunda-feira, descobri que ele não é nem quer ser o tal. Pensei no comandante Nascimento, mas descobri que, na verdade, "Tropa de Elite" é uma obra de ficção e que aquele na tela é o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei no presidente, mas não sei no que ele está pensando.

            Enfim, pensei, pensei, pensei. Enquanto isso, João Dória Jr. grita: "Cansei". O Lobão canta: "Peidei". Pensando, cansado ou peidando, hoje posso dizer que sou parte das estatísticas da violência em São Paulo. E, se você ainda não tem um assalto para chamar de seu, não se preocupe: a sua hora vai chegar

            Desculpem o desabafo, mas, hoje amanheci um cidadão envergonhado de ser paulistano, um brasileiro humilhado por um calibre 38 e um homem que correu o risco de não ver os seus filhos crescerem por causa de um relógio.

            Isso não está certo.

 

 

Luciano Huck, 36, apresentador de TV que comanda o programa "Caldeirão do Huck", na TV Globo. É diretor-presidente do Instituto Criar de TV, cinema e covas cídias.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u336144.shtml, versão eletrônica do Jornal Folha de São Paulo, publicado em 1º.10.2007.

 

Anexo II – Texto analisado durante a aula.


Pensamentos de um “correria”

1

 

 

 

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       ELE ME olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto.

      Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos.

      Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.

      O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36 prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.

      Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.

      Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que estão vivos e num país legal.

      Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito.

     Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber.

     Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado?

     Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como ninguém.

     Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis, isso não!

     Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.

     Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora.

Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso.

      Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.

      A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!

     Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.

    Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.

     No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio.

     Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.

 

Reginaldo Ferreira da Silva (conhecido como Ferréz), 31, é escritor e rapper. É autor de Capão Pecado, romance sobre o cotidiano violento do bairro Capão Redondo, localizado na periferia de São Paulo, onde ele vive, e de Ninguém é Inocente em São Paulo, entre outras obras.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u336145.shtml, versão eletrônica do Jornal Folha de São Paulo, publicado em 08.10.2007

 

[1] O nome real do professor foi alterado.

[2] Horários de Trabalho Pedagógico Coletivos

[3] As falas contidas no artigo foram reconstituídas e não transcritas.

[4] Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo

[5] As tarefas estão parafraseadas e não descritas exatamente como indicadas pelo professor.

[6] A tabela 1 ilustra os objetos de ensino observados durante dez aulas aplicadas para as cinco turmas dos terceiros anos do Ensino Médio.

[7]Ver anexo.

[8] Essa classificação de argumentos foi retirado do Caderno de Apoio e Aprendizagem da Prefeitura Municipal de São Paulo, 9º ano do Ensino Fundamental.

[9] Conceito extraído do Caderno de Apoio e Aprendizagem da Prefeitura Municipal de São Paulo, 9º ano do Ensino Fundamental.

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