Claziane Pereira de Lima
Resumo
O presente projeto traz para a sala de aula o gênero diário. O projeto surgiu a partir da demanda dos alunos no ano em que os Estados Unidos declararam guerra ao Iraque (2003). Assim, o tema da guerra e sua discussão entre adolescentes gerou a escolha do livro “O diário de Anne Frank”, cuja leitura os alunos realizaram de forma orientada, além de estudos e produções, como debate e carta.
Palavras-chave
Anne Frank, gênero diário, leitura
Introdução
O presente projeto foi planejado e colocado em prática entre os meses de março a junho de 2003, em uma classe de sétima série (oitavo ano) do Ensino Fundamental II, durante o estágio realizado em uma escola particular de classe média do município de São Caetano do Sul.
Nessa escola, o Planejamento Anual de Texto funciona como meta inicial, mas não aprisiona o trabalho do professor, já que ao longo do ano acontecimentos imprevistos podem redirecioná-lo. É claro, no entanto, que se deve procurar seguir o planejamento e os Planos de Trabalho e que, havendo modificações, essas devem ser anotadas nos planos e comunicadas aos alunos, aos coordenadores e aos diretores. O planejamento não previa o Projeto Anne Frank, por exemplo, que surgiu a partir da identificação de uma demanda dos alunos.
No começo de 2003, os Estados Unidos declararam guerra ao Iraque e decidiram invadi-lo. Essa situação singular e radical, com uma cobertura imediata de toda a mídia, acompanhada por todos e, inclusive, pelos alunos da sétima série, gerou angústia e insegurança nesses adolescentes. Surgiu daí uma demanda da parte deles de discutir a guerra do Iraque e, mais que isso, discutir o próprio conceito de guerra. Foi elaborado e proposto, então, um projeto didático que trabalhasse com a leitura do livro O Diário de Anne Frank (FRANK, 2002), com a discussão do tema da guerra e com o estudo do gênero diário.
Objetivou-se trabalhar com aquilo que os alunos estavam vivenciando, mas de forma a acrescentar algo, fazendo-os pensar na importância da Língua Portuguesa e, principalmente, no papel transformador que eles têm na sociedade. A leitura de Hernández auxiliou-me a entender melhor o que buscava com o projeto: “Levar adiante um processo de aprendizagem vinculado ao mundo exterior à escola, e oferecer uma alternativa à fragmentação das matérias” (HERNÁNDEZ, 1996, p. 67). Acreditamos que a construção efetiva do conhecimento acontece valorizando-se o processo em vez do produto.
Para organização do projeto, foi preparada uma ficha, na qual se encontravam os seguintes itens:
- Roteiro de Leitura;
- Aspectos importantes a serem levantados durante a análise da obra;
- Poema “A Rosa de Hiroxima”, de Vinicius de Moraes;
- Relato de um sobrevivente, retirado do livro Sete dias de Maio (Bailey, Charles W. e Fletcher, Knebel, 1964);
- Questões iniciais;
- Estudo sobre o momento histórico em que se passa a obra: a 2ª Guerra Mundial;
- Estudo sobre o gênero diário;
- Extrapolação, utilizando o texto de Fabrício de Oliveira, aluno do 1º ano do Ensino Médio;
- Espaço para colagem da produção artística;
- Questões finais.
Talvez, algumas sementes tenham sido plantadas na vida desses jovens: a carga de informações que levaram da leitura, o conceito do gênero diário que estudaram e, principalmente, a percepção de sua importância dentro do mundo como seres transformadores e conscientes de seu papel. Segue a descrição dos módulos e, nos anexos, encontram-se algumas das produções dos alunos para cada atividade.
Sequência didática
Módulo I
Atividade 1
No primeiro dia de aplicação do projeto nas sétimas séries, antes de tudo, apresentei o trabalho e falei da importância dele para mim e das expectativas que tinha com respeito à sua realização, afinal o pedido da leitura dessa obra tinha partido de muitos alunos e de nossas discussões sobre a invasão dos EUA ao Iraque.
Durante essa apresentação, passei aos alunos o Roteiro de Leitura, por meio do qual eles poderiam controlar melhor suas leituras diárias, atingindo uma compreensão mais efetiva da obra. Trata-se de um cronograma de leitura, com os dias das aulas nas quais trabalharíamos o projeto e as páginas do livro que deveriam ter sido lidas até essas datas. Foram 15 aulas, ao longo de um mês e meio de trabalho, e a leitura de um livro com 315 páginas precisava ser bem organizada e dirigida. É bom deixar claro que os alunos não eram obrigados a seguir o roteiro, muitos terminaram antes, e outros, depois. Ele foi elaborado utilizando como parâmetro alunos que não têm facilidade para ler, possibilitando que todos se organizassem e realizassem uma boa leitura.
Em seguida, apresentei ainda uma lista com aspectos importantes a serem anotados, assim os alunos saberiam por onde seguir e o que seria cobrado ou, pelo menos, as informações que precisariam para realizar uma boa análise da obra. Tal lista contava com as seguintes orientações:
É importante anotar:
- Os nomes de todas as personagens, dando suas respectivas características (físicas e psicológicas);
- Fatos marcantes dentro da obra (clímax);
- Problemas presentes na história (conflito);
- Período em que se passa a narrativa (tempo);
- Onde ela se passa (espaço);
- Relações entre personagens;
- Semelhanças e diferenças entre personagens;
- Relações entre obra e mundo;
- Opinião sobre os acontecimentos.
Enfim, tudo que julgar interessante para uma boa análise da obra.
No mesmo dia da apresentação do projeto, ouvimos o poema “A rosa de Hiroxima”, de Vinicius de Moraes, interpretado por Ney Matogrosso.
Além da música, realizei a leitura do relato de um sobrevivente da bomba de Hiroshima, retirado do livro Sete dias de maio, dos americanos Fletcher Knebel e Charles W. Bailey.
Em seguida, pedi aos alunos que anotassem suas primeiras impressões sobre o assunto, respondendo às seguintes questões:
1. O que você sentiu ao ouvir o poema de Vinicius de Moraes e ao ouvir este relato?
2. O que você espera do nosso projeto?
O objetivo da leitura da poesia e do relato para os alunos era sensibilizá-los para a realização do projeto. Acredito que este objetivo foi alcançado, pois alguns dos alunos se emocionaram bastante e fizeram anotações contundentes.
Módulo II
Atividades 2, 3 e 4
Depois disso, tivemos três aulas dedicadas ao estudo do momento histórico em que se insere a obra. Esta é uma etapa essencial para que os alunos reconheçam o contexto da obra. O estudo da obra e da época em que foi produzida possibilita uma compreensão real do gênero em questão, perspectiva essa que dialoga diretamente com a teoria dos gêneros do discurso, de Bakhtin. Ao longo dessas aulas, sempre conversávamos sobre a obra, tirando as dúvidas existentes sobre a história e comentando os problemas apresentados. Os alunos se envolveram bastante e muitos trouxeram espontaneamente relatos de experiências trazidas pelos pais, avós e bisavós, integrando realmente a obra com a vida. Nessas aulas, contei com a colaboração da coordenadora do Ensino Fundamental, que é professora de história por formação. Foi pedido aos alunos que fizessem uma pesquisa sobre a Segunda Guerra, visando a responder às seguintes questões:
1. Defina imperialismo e explique o papel da Alemanha nele quando invade a Polônia, no momento inicial da guerra.
2. Quais as alianças que formaram os dois grandes blocos que lideraram a guerra?
3. Por que, ao entrar em guerra, a Alemanha também decretou guerra aos judeus? O que eles significavam para os alemães?
4. O que foram, durante a guerra, os guetos, os campos de concentração e o holocausto?
5. Quais os principais objetivos representados pelos dois blocos em guerra, ou seja, o que cada lado defendia?
6. Qual foi o desfecho da guerra? Como ficou a Europa, em geral, e a Alemanha, em particular?
Módulo III
Atividades 5, 6 e 7
Três aulas foram dedicadas ao estudo do gênero diário, segundo o roteiro de estudo apresentado por Teresa Cochar Magalhães e William Cereja no livro Português: Linguagens (2002). Além disso, a discussão que fizemos a respeito do livro como obra literária foi pautada nas palavras de Antonio Candido em seus textos de Vários Escritos. Para as discussões, foram usadas de base as seguintes questões:
1. O que é um diário?
2. Quais as principais características desse gênero?
3. Pensando em O diário de Anne Frank, o que torna um diário uma obra literária?
Módulo IV
Atividade 8
Seguimos o estudo da obra, através de um trabalho extrapolativo, utilizando como base o texto de um ex-aluno meu, mas ainda aluno da escola. Achei importante para a efetivação de nosso estudo, pois, além da qualidade, o texto fez com que muitos alunos acreditassem no seu potencial de produção textual e percebessem que esse tema é pensado por todos, inclusive, por um colega da mesma instituição que já havia estado no lugar que eles ocupavam naquele momento.
Em seguida à leitura, a discussão foi proposta com a seguinte questão, que deveria ser respondida por escrito:
1. Você concorda com as colocações do autor desse texto? Por quê?
Módulo V
Atividade 9
Depois de toda discussão e quase finalização da leitura, os alunos fizeram uma produção artística. Com essa produção eu buscava verificar o que realmente havia ficado para eles de nossa leitura. Através dela, alguns alunos que não conseguiram se expor por meio da fala e da escrita tiveram uma oportunidade de demonstrar o que aprenderam.
Para que essa produção acontecesse, pedi que eles trouxessem uma caixinha de creme dental e outros materiais que pudessem utilizar para representar algo significativo da leitura ou ajudar na produção. A ideia era que eles percebessem que algo tão banal pode se transformar em uma bela produção. Ou seja, comprovar o papel transformador do ser humano, como bem disse Paulo Freire (1999), afinal esse é o verdadeiro papel da educação. (Também é possível pensar nos ready-mades dos artistas das vanguardas históricas que transformavam detritos e objetos do cotidiano, materiais considerados não nobres, em obras de arte).
Atividade 10
Complementando nossos trabalhos, realizamos ainda uma produção textual, seguindo o gênero diário. Esse texto poderia ser destinado a qualquer pessoa envolvida em nossos estudos, tais como Anne Frank, a família Frank, Bush, Saddam Hussein, etc.
Módulo VI
Atividade 11
Além desse texto, foram feitas uma avaliação da leitura em forma de prova e uma avaliação do projeto por escrito, na qual os alunos tiveram um espaço onde puderam se expor e comentar a aprendizagem e, principalmente, a forma como ela foi encaminhada.
Atividades 12 e 13
Durante duas aulas, realizamos também um debate acerca de todos os problemas enfrentados pela personagem Anne Frank e de toda a situação levantada por meio dessa leitura. Nesses momentos os alunos que apresentaram algum problema com a exposição escrita puderam demonstrar, por meio da fala, aquilo que aprenderam. O diálogo é sempre muito positivo e eles aprendem a ouvir uns aos outros retomando seus posicionamentos, como devemos fazer na vida cotidiana como cidadãos.
Módulo VII
Aula 14
Na última aula, ouvimos novamente o poema de Vinicius de Moraes, interpretado por Ney Matogrosso e os alunos puderam retomar as duas questões colocadas na primeira aula:
1. O que você sentiu ao ouvir o poema de Vinicius de Moraes?
2. O que você achou do nosso projeto?
Sobre a exposição “Anne Frank, uma história para hoje”
Durante a execução do projeto, tivemos a sorte de contar com a exposição “Anne Frank, uma história para hoje”, organizada pelo Centro da Cultura Judaica, situado à Rua Oscar Freire, 2.500, em São Paulo. Nessa exposição, os alunos puderam entrar em contato com documentos vindos da Holanda, além de fotos e um vídeo explicativo sobre o momento histórico e sobre a obra que leram. A visita foi monitorada e, ao final, participamos de uma oficina, na qual todos deixaram suas mensagens de paz ao mundo e respeito ao próximo, através de desenhos e textos.
Referências bibliográficas
BAILEY, charles W.; KNEBEL, Fletcher. Sete dias de Maio. São Paulo: Record, 1964.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: _______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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CEREJA, William; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português - Linguagens. 7ª série. São Paulo: Atual, 2002.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e expressão oral e escrita: elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). In: DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2002.
FREIRE, Paulo. Ensinar não é transferir conhecimento. In: _______. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Coleção Leitura.
HERNÁNDEZ, Fernando. Os projetos de trabalho e a necessidade de mudança na educação e na função da escola. In: _______. Transgressão e mudança na educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
CONRAD, Gerson; MORAES, Vinicius de. Rosa de Hiroshima. In: Secos & Molhados. São Paulo, Continental Discos S/A, 1973. Faixa 9.
MORAES, Vinicius. Antologia Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PERRENOUD, Phillipe. “Os procedimentos habituais da avaliação, obstáculos às mudanças pedagógicas”. In: ____. Avaliação (da excelência à regulação das aprendizagens – entre duas lógicas). Porto Alegre: Artmed, 1999.
PERNIGOTTI, J. M. e outros. O portifólio pode muito mais do que uma prova. In: Revista Pátio, ano 3, nº 12, fev/abr. Porto Alegre: Artmed, 2000.
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