O tradicional como resistência: relações entre instrumentos de ensino e concepções de trabalho docente na prática didática de uma professora de português de São Paulo


Edilson da Silva Cruz

 

Introdução

 

Neste estudo, analisamos a relação entre trabalho docente, prática didática em sala e instrumentos de trabalho docente, tendo como fundamento teórico as ideias sobre o trabalho docente de Schneuwly (2009) e Freitas (2010). A partir das observações de estágio feitas em uma escola pública de São Paulo, buscamos identificar, na prática didática de uma professora de Português, a forma como ela se relaciona com os objetos de ensino e os instrumentos didáticos, escolhidos ou impostos pela escola. Buscamos, para tanto, descrever o ambiente escolar, seu contexto mais amplo, a prática didática da professora e a maneira como se configura seu projeto didático. A partir dessas descrições, relacionamos sua prática com as teorias a respeito do trabalho docente, identificando e caracterizando suas ações e gestos em confronto com concepções tayloristas, presentes nos instrumentos de trabalho docente – as apostilas “São Paulo Faz Escola” –, ao mesmo tempo em que adquire um caráter de resistência pelo apego a concepções, gestos e objetos tradicionais de ensino.

 

1. Sobre o contexto escolar


1.1. A escola

 

Localizada no extremo leste da cidade de São Paulo, a Escola Estadual Palmares1 abriga alunos de Ensino Fundamental I (período matutino e vespertino) e Ensino Médio (período noturno). A situação de carência do bairro, no qual faltam diversos elementos que configuram uma infraestrutura urbana adequada à vivência social e cidadã, é reproduzida, de alguma maneira, na escola: em seu espaço físico faltam alguns materiais (embora isso não prejudique o seu funcionamento) mas faltam, sobretudo, textos em circulação. Por outro lado, verificamos que a interação entre alunos é constante e intensa (na sala de aula e fora dela). Entre professores e funcionários a relação também é tranquila, sem maiores problemas. Já entre professores e alunos, e vice-versa, verificamos conflitos e atitudes hostis de ambas as partes, talvez produtos do próprio ambiente de carência estrutural da escola e do bairro, mas também atitudes de cooperação e respeito.

 

1.2. A linguagem no contexto escolar


1.2.1. O espaço físico

 

A Escola Estadual Palmares chamou nossa atenção, ao início das observações, por conter pouquíssimos textos em circulação no espaço físico compartilhado por professores, funcionários e estudantes, isto é, o pátio interno e os corredores das salas de aulas: nota-se não mais que três murais, algumas frases soltas, como propagandas, e uma imensa pintura na parede do pátio interno. Ademais, nota-se o número de cada sala escrito à tinta óleo acima das respectivas portas das salas.

No pátio principal, além de pequenos textos em circulação (como as propagandas da cantina e a tabela de preços), há dois murais de madeira. Um deles, revestido de papel laminado prateado, contém alguns textos informativos e outros de caráter lúdico: uma folha A4 que informa sobre abertura de vagas para alunos monitores da sala de informática; um cartaz tamanho A3 com propaganda de um cursinho pré-vestibular de preço mais acessível (não chega a ser um “cursinho popular”); umas folhas com informações esotéricas, analisando a posição dos astros e sua influência na vida das pessoas; também um recado sobre as inscrições para provas de reclassificação, para alunos repetentes que desejam passar de ano. No outro mural, ao lado da escada que dá acesso ao primeiro andar, não há revestimento de papel, apenas uma frase escrita à canetinha azul clara, de cabeça para baixo, no meio do mural: “Esperança no futuro e alegria no presente”.

No entanto, apesar dessa secura de textos, o que mais chama a atenção na escola é justamente um texto visual e escrito pintado na parede do pátio, a uns 3 metros de altura. Trata-se de uma imensa pintura do rosto de Oscar Niemeyer, cujas dimensões se aproximam de 1 metro e 70 de altura por 2 metros de largura. Ao lado da pintura, lemos os dizeres “Centenário Niemeyer 2º C 2º D Professor Marco”. Do outro lado da pintura também há uma citação do famoso arquiteto:

Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país. No curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.

Oscar Niemeyer

Abaixo da pintura do rosto, percebemos pintados também seis desenhos em forma de quadros: três desenhos de obras de Niemeyer (onde prevalecem as curvas citadas por ele) e três pinturas de elementos que se reconhecem da natureza brasileira: uma flor, um tucano e um coco quebrado ao meio, todos ressaltando justamente as curvas das quais são constituídos. 2

Nos corredores das salas quase não notamos textos escritos em circulação, a não ser os números das salas escritos a tinta óleo na parte superior das portas. No andar de cima ocorre o mesmo. Já do lado de fora da escola, por onde os alunos entram, percebe-se que o muro está grafitado com o nome da escola e a identificação da diretoria de ensino à qual pertence. Próximo ao portão principal está a secretaria da escola onde, ao lado do guichê de atendimento, notamos outro mural grande na parte superior da parede. Há vários textos, em folhas A4: informações sobre transferência de alunos, provas de reclassificação, horário de funcionamento da secretaria e da escola, cartazes com ofertas de emprego, de cursos profissionalizantes, entre outros.

Já na parte da escola frequentada exclusivamente por professores e funcionários (sala dos professores, sala da diretora e secretaria, sala de leitura e o corredor que une todos esses ambientes), podemos perceber uma maior presença de textos escritos, configurando um ambiente mais condizente com o escolar.

Na sala dos professores há mais textos em circulação: uma lousa branca na qual se escrevem diariamente recados de interesse dos professores; um mural onde são afixados cartazes e textos diversos (divulgação de eventos, lista de faltas e de professores coordenadores das turmas, calendário civil e da escola e cartaz de “aniversariantes do mês”). Ao lado do mural, há uma estante com revistas de temas variados e sobre educação (alguns títulos encontrados: Veja, Época, Galileu, Revista Língua Portuguesa, Ciência Hoje, Carta na Escola) e livros que, às vezes, são folheados pelos professores, além de livros didáticos e infantis, guardados em duas vasilhas grandes, em cima do armário. Além disso, há duas mesas (uma lateral e outra central), na qual circulam vários textos e instrumentos de ensino: globos terrestres, livros variados, dois mimeógrafos, um caderno de “recados” (onde a direção cola ou escreve recados de interesse dos professores como avisos de cursos, palestras etc.) e um “caderno de estágios”, onde os estagiários anotam e descrevem as atividades realizadas na escola, os jornais do dia (a “Folha” e o “Estado”), assinados pela escola, os quais são frequentemente lidos pelos professores, entre outros. Também há, em um canto da sala, dois computadores com acesso à Internet, bastante utilizados pelos professores para verem vídeos, lerem notícias ou digitarem atividades.

No corredor que dá acesso à secretaria, há três murais com textos informativos voltados aos professores (avisos sobre provas do Estado, cursos etc.). Em frente à sala dos professores, está localizada a sala de leitura, do tamanho de uma sala de aula normal, com duas prateleiras de livros e algumas mesas. Os alunos do período noturno não têm horário para frequentá-la. Normalmente, é utilizada à noite para a exibição de vídeos, já que possui equipamento para isso e também porque a sala de vídeo está desativada há algum tempo.

 

1.2.2. Na documentação escolar e no projeto docente

 

Não foi possível ter acesso aos dados referentes à documentação da escola. No entanto, segundo a professora Mônica3, o planejamento feito pelos professores segue normas ditadas pela direção da escola que, por sua vez, as recebe de outras instâncias superiores. Ela nos contou que seu planejamento, entregue à escola, é na verdade uma reprodução do conteúdo das apostilas “São Paulo Faz Escola”. Ela simplesmente copia e entrega conforme consta nos cadernos. As atividades que desenvolve em sala e que não condizem com a abordagem das apostilas, ela leva por conta própria e não constam no planejamento docente.

 

1.2.3. Na interação escolar e na sala de aula

 

A turma que acompanhamos é o 1º B (Ensino Médio noturno). As aulas acontecem na sala 2, no térreo, ao lado do pátio interno. A sala contém em torno de 50 carteiras (mesa e cadeira), a mesa da professora, um armário, utilizado pelas professoras dos outros períodos, 2 ventiladores, uma lousa grande que ocupa toda a extensão da parede de frente da sala e dois murais colados na parede lateral à esquerda da parede da lousa. Em um deles, verificamos alguns textos: o alfabeto escrito à tinta óleo acima da lousa, os numerais de 1 a 9 escritos em papel E.V.A; um calendário do respectivo mês, um cartaz com o nome de todos os alunos da sala (do matutino ou vespertino), outro cartaz com o nome de cada mês do ano e outro com o nome de algumas frutas, um embaixo do outro e escritos com papel colorido. No outro mural, ao lado do descrito acima, há apenas um cartaz: uma tabuada na qual, além dos números todos, há ainda o símbolo do projeto “Ler e Escrever” e o símbolo da prefeitura de São Paulo. Ou seja, percebemos que o uso desses murais é feito pelas turmas da manhã (aluno do ensino fundamental I). Não se percebe nenhuma marca dos alunos do noturno nos murais.

A sala está organizada em fileiras. No começo da aula, enquanto espera os alunos chegarem (eles vão chegando aos poucos), a professora vai arrumando as carteiras de modo a configurar fileiras exatas. Percebe-se claramente a divisão dos alunos, quando estes já estão dentro da sala: há um grupo mais ao fundo, de meninos, e outro no canto esquerdo, de meninas; na frente ficam alunos de forma mais isolada.

Os textos que circulam na sala são, prioritariamente, os referentes à prática didática: apostila do governo, alguma folha de atividades que a professora passe aos alunos, textos ou explicações que ela escreve na lousa, os cadernos dos alunos. Vez ou outra, algum outro texto nos chama atenção, como quando uma aluna lia, durante a aula de classes de palavras, um livro dela mesma, chamado “Tira-dúvidas: dicas de português”.

Quanto às trocas interativas, percebemos que, na sala, estas se dão de modo constante entre os alunos, apesar de a professora conseguir manter o silêncio ao explicar as lições. Na hora do intervalo e antes de começar as aulas, os alunos se reúnem em grupos e percebe-se uma comunicação constante. Já os professores, na sala a eles, relacionam-se bastante por meio de conversas sobre assuntos variados (política, educação, cotidiano escolar, assuntos pessoais etc.). Também com a direção da escola existe uma comunicação que vai além de assuntos burocráticos e pedagógicos.

 

2. Sobre o ensino de português


2.1. O estágio

 

Nossa observação aconteceu entre os meses de abril e maio de 2011. Apesar de interrompidos por alguns feriados e uma licença médica pedida pela professora, foi possível acompanhar quase toda uma sequência didática e recolher elementos que permitem uma observação minimamente coerente da prática didática em sala de aula.

Em geral, nossa participação nas aulas resumiu-se a descrevê-la, enquanto a professora a ministrava. Não participamos diretamente da aula, mas nos pareceu evidente a expectativa da professora em relação a isso.

 

2.2. A professora

 

Segundo seu próprio relato, Mônica é professora de português há pouco mais de oito anos. Antes de cursar Letras na Universidade Cruzeiro do Sul, cursava Administração, e foi funcionária de uma empresa multinacional. Saiu para dar aulas, quando passou num concurso estadual. Segundo ela, seu interesse por Letras se deveu ao interesse pelo inglês. No entanto, não aprendeu a falar inglês na faculdade e não teve até hoje a oportunidade de fazer um curso extra, o que a deixa de certa maneira frustrada, uma vez que isso a impede de dar aulas de inglês de maneira satisfatória. Por isso, ministra somente aulas de português.

Em seu discurso, percebemos a presença de uma ideia corrente: a de que os alunos não se interessam pela matéria porque não sabem o porquê de estudarem esse assunto. Formada em administração, ela diz ser a favor de uma vinculação maior entre o Ensino Médio e o mercado de trabalho como forma de contribuir para dar maior sentido ao que eles aprendem. Com esse objetivo, a professora elaborou um projeto intitulado “Primeiro Emprego”, o qual visa incluir uma discussão sobre o mercado de trabalho com os alunos nas aulas de português. Entre as atividades propostas está a formulação de um currículo e o seu encaminhamento a empresas interessadas. Também está previsto no projeto a realização de “simulados” com provas de concursos de nível fundamental e médio, a fim de que os alunos “treinem” para a realização de tais provas (a tentativa de “dar sentido” ao que é aprendido é uma preocupação da professora em sala de aula, nos levando a pensar que ela também precisa definir com mais precisão a própria necessidade de seu trabalho para a sociedade).

 

2.3. O trabalho docente

 

Descrevemos, abaixo, os principais pontos da sequência didática observada e como os diversos elementos que a compõem são mobilizados pela professora para dar sentido ao seu trabalho pedagógico.

 

2.3.1. Os objetos de ensino

 

Durante o período acompanhado, a professora Mônica desenvolveu atividade com os alunos a respeito de dois temas específicos: um tópico gramatical – as classes de palavras – e um tópico ortográfico – a grafia de determinadas palavras que oferecem dificuldade aos alunos como bem/bom, mal/mau. A maneira como ela apresentou esses tópicos esteve mediada por dois instrumentos de regulação: a prova bimestral, anteriormente preparada, e as atividades que ela pedia em sala. A partir da explicação oral a respeito do tema e da referência à relevância do conteúdo para os alunos, a professora desenvolveu seu projeto didático e, com isso, dava sentido ao seu trabalho não somente perante os alunos, mas perante si mesma.

A escolha desses objetos de ensino, segundo seus relatos, deu-se em oposição à imposição que o governo faz das apostilas do projeto “São Paulo Faz Escola”. Nesses cadernos, não se trabalha, segundo a professora, nenhum tema propriamente gramatical, apenas “interpretação de textos”, o que torna o caderno “irrelevante para os alunos”, de acordo com ela. Como forma de subverter essa lógica, ela prepara atividades de cunho gramatical para suprir essa falta. Vale ressaltar que a sua exposição oral em sala a todo o tempo lembra que tais conteúdos são importantes, pois é o que “cai em concurso, em vestibular”. Logo é importante eles saberem para “conseguir um bom emprego”.

Ou seja, os objetos de ensino são definidos em oposição a uma prescrição quanto ao instrumento didático, e se materializam no projeto didático mediante os instrumentos de regulação, como apontado acima, o que, por sua vez, vai orientar as escolhas didáticas em sala de aula.

A forma como os objetos de ensino se materializam em sala acontecem basicamente mediante a explicação oral, pela utilização de perguntas-respostas e a interação com os alunos, convidados, inclusive, a intervir na elaboração dos gestos didáticos em sala.

Em uma das aulas, por exemplo, enquanto a professora se valia do recurso de perguntas e respostas para expor o conteúdo referente à identificação do verbo na frase, criava frases soltas e perguntava aos alunos coisas como: “onde está o verbo?”. Em certo momento, ela pediu que alguns alunos formulassem frases para servir de exemplo. Um dos alunos formula a seguinte frase: “Deus queria que chovesse”. A professora rejeita a frase e os alunos riem. Em seguida o mesmo aluno formula outra: “O gato falou miau”. A professora também rejeita e resolve criar uma frase ela mesma: “O gato pegou o rato”. A partir daí utiliza novamente o par pergunta e resposta para dirigir a explicação. Em geral, os alunos respondem em uníssono.

A utilização dessa prática, na qual os alunos interferem na formulação dos gestos didáticos que compõem a aula, contribuiu para que o clima se tornasse mais descontraído e permitiu que tanto a professora quanto os alunos se desprendessem do clima sério e dessem lugar a brincadeiras e comentários jocosos. De fato, a partir dessas práticas, os alunos se mostraram mais interessados em acompanhar a aula.

 

2.3.2. Práticas de Linguagem

 

Quanto às práticas de linguagem, verificamos sobretudo a análise gramatical e a produção de textos escritos. No primeiro caso, após explicar o tópico gramatical/ortográfico, em geral a professora solicita que os alunos desenvolvam atividades para fixar o conteúdo abordado. No segundo, costuma pedir que os alunos elaborem textos, especificando o tipo (dissertativo, narrativo, com tema preestabelecido ou não), e entreguem para avaliação.

Em determinada aula, solicitou uma dissertação sem especificar tema e, em seguida, explicou o que era um texto dissertativo dizendo que os alunos deveriam entregar o texto, ela corrigiria e devolveria para que eles reelaborassem com as correções. No entanto, após a entrega, apenas vistou e devolveu os textos.

As referências à linguagem oral estão presentes quando a professora explica questões gramaticais: ela insiste na oposição entre norma culta e linguagem cotidiana. No entanto, tal abordagem se dá como forma de reafirmar a superioridade da norma culta em relação às outras variedades do português, configurando uma abordagem tradicional da questão, sem que a linguagem oral fosse um objeto específico de ensino.

 

2.3.3. Gestos didáticos

 

Na primeira aula observada, a professora mostrou-nos a prova, já preparada, que orientaria sua atuação em sala de aula: a partir do conteúdo da prova (e da forma) previamente delimitada, ela utilizou o espaço da aula para expor os conteúdos de modo que os alunos já os tivessem quase que decorados na hora da avaliação. Essa maneira de trabalhar apresenta um alto grau de fragmentação que, no entanto, casa perfeitamente com o objeto de ensino: um tópico gramatical e um ortográfico, este também ditado de maneira fragmentada.

Por meio da referência à avaliação (já preparada, como dissemos), ela presentificava o objeto de ensino (antes das explicações ela dizia que, “como eu disse na aula passada” – memória didática –, a prova já está pronta e os alunos devem prestar atenção nas explicações dadas, a fim de poder realizar a prova no momento oportuno).

Outro gesto importante é o da elementarização: em dada aula, ela começou explicando o que são adjetivos e substantivos e, em seguida, expandiu a explicação, passando para os verbos, pronomes e, por fim, aos elementos ortográficos, como a grafia de mau/mal ou o uso de bem/bom, sempre elementarizando cada tópico, explicando parte por parte.

Para a explicação do tópico gramatical/ortográfico a professora utilizou também (centralmente) o par pergunta-resposta. Em determinado momento de uma das aulas, ela pega uma caneta na mão e pergunta: “O que é isso?”, os alunos respondem “Uma caneta”. “Sim, caneta é um substantivo porque dá nome às coisas. E qual a cor da caneta?”. “Vermelha”. “Sim, Vermelha é uma característica da caneta, ou seja, é um adjetivo” [par pergunta-resposta]. Os alunos a essa altura já estão quase todos em silêncio e prestam atenção à professora.

Em seguida, ao explicar o que são pronomes, fez com que os alunos repetissem em uníssono os pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós, eles [gestos didáticos ou instrumento de ordem discursiva, o uníssono]. O mesmo recurso do uníssono é utilizado também quando ela passa da explicação de classes de palavras para explicações de ordem ortográfica:

Professora: Mau com U, contrário de bom; mal com L contrário de bem. Agora todo mundo: mau com U...

Alunos (em uníssono): contrário de bom

Professora: mal com L

Alunos (em uníssono): contrário de bem

 

Essa quadra repetida provocou um clima jocoso na sala devido à sua sonoridade e cadência da frase, repetida quase como um “marcha-soldado”. O mesmo ocorreu quando a professora explicou a diferença entre onde/aonde, sempre interagindo com os alunos e valendo-se de comentários jocosos para mantê-los atentos.

 

2.3.4. Instrumentos de ensino

Como dissemos, a complexa relação entre objeto de ensino, gestos didáticos (dispositivos e regulação) e prescrição de instrumentos de ensino orientam a prática da professora em sala de aula.

Quanto aos instrumentos didáticos de ordem material, percebemos que os cadernos “São Paulo Faz Escola” têm um papel central: em todas as aulas eles são utilizados, seja para a realização de exercícios, ou para que, a partir de algum texto, a professora extraia explicações e conteúdos sobre o tópico gramatical/ortográfico em questão. Além disso, quando explica oralmente os conteúdos aos alunos, utiliza o giz e a lousa como forma de presentificar esses conteúdos.

Porém, se há certa submissão à apostila, é de se notar que, rompendo o caráter prescritivo da imposição do material, a professora subverte, se assim podemos dizer, no uso, o objetivo do caderno “São Paulo Faz Escola” (o qual é denominado pela professora como “revista”): uma vez que estes se orientam por uma concepção onde se identificam elementos tayloristas (como separação entre planejador e executor das atividades, controle do tempo e do corpo, através de prescrições rígidas), ao incorporar à sequência didática prevista na “revista” seus próprios conteúdos e suas próprias práticas, a professora subverte as prescrições ditadas no material (instrumento) e cria com isso uma espécie de liberdade em relação a ele, apesar de orientar-se por ele.

Quanto aos instrumentos de ordem discursiva, a professora se vale sobretudo de instruções orais referentes aos exercícios e às explicações do conteúdo abordado. Um elemento central em sua prática é o par pergunta-resposta, utilizado como instrumento, uma vez que contribui, não somente para a fixação de conteúdos, mas para estabelecer a interação entre professor-aluno em sala e para criar um clima mais descontraído. Esse clima descontraído, por sua vez, acontece também mediante os comentários jocosos que a professora faz, seja em relação ao conteúdo ou em diálogo com ele, promovendo a integração dos alunos à prática didática. Apesar do caráter fragmentário da exposição do conteúdo, os comentários e a participação dos alunos no desenvolvimento e na própria criação de mecanismos didáticos dão uma dimensão mais dialógica à aula, rompendo, novamente, o caráter “taylorista” que a execução da sequência didática, segundo prescrita na “revista”, faz supor.

Por fim, vale ressaltar, em relação aos instrumentos didáticos, que a maneira da professora legitimar o próprio objeto de ensino e sua prática em sala de aula também funciona como instrumento uma vez que baliza a sua atuação. Várias vezes, durante a aula, ela lembra aos alunos a importância de se aprender aquele conteúdo, afinal, “é o que se pede em provas de concursos públicos e vestibulares”. Com isso, a professora justifica não somente para os alunos, mas perante ela mesma, a própria atuação e a subversão que realiza quanto ao material prescrito.

 

2.3.5. Atividades e tarefas

Nas aulas observadas as atividades e/ou tarefas pedidas pela professora também funcionavam como regulação. Ela explicava a tarefa aos alunos; em seguida, explicava o conteúdo da tarefa; por fim, pedia que eles a realizassem e depois vistava os cadernos/apostilas. As atividades pedidas em sala foram: a) atividades prescritas na “revista”; b) atividades elaboradas a partir da “revista” e do objeto escolhido por ela (tópico gramatical/ortográfico); c) atividades independentes (a professora trazia folhas à parte com atividades e tarefas).

Além disso, determinados gestos didáticos, como o par pergunta-resposta e a leitura de textos, foram utilizados como atividade/ tarefa, uma vez que a professora atribuiu nota aos alunos pela participação, ou seja, avaliou-os mediante esse procedimento. Ao mesmo tempo, essas atividades adquiriram um caráter de regulação muito forte, pois serviram, nesses casos, apenas para a obtenção de notas e não necessariamente, ao que podemos ver, para um acompanhamento do processo de aprendizagem.

 

 

3. O trabalho docente e instrumento de ensino:

submissão e resistência na prática didática

 

Como dissemos, o projeto didático da professora Mônica esteve organizado a partir da relação entre objeto de ensino, gestos didáticos (dispositivos e regulação) e instrumentos de ensino, prescrevendo sua prática em sala de aula. Quanto ao instrumento, utilizou centralmente as apostilas “São Paulo Faz Escola”, com os quais estabeleceu uma relação de submissão – baseava exercícios e aulas na apostila – e de resistência – introduzindo nas sequências propostas suas próprias ideias e objetos didáticos que julgava mais importantes, legitimando-os em oposição ao conteúdo da apostila.

Nesta terceira parte de nosso trabalho buscamos analisar a relação entre a prática didática da professora Mônica e a escolha de seus instrumentos materiais e discursivos de trabalho, tendo em vista as teorizações sobre trabalho docente (Schneuwly, 2009; Freitas, 2010). A partir disso, percebemos uma orientação taylorista do trabalho docente pressuposto nas cartilhas elaboradas para o projeto “São Paulo Faz Escola”, ao passo que o uso que a professora faz delas em sala de aula se dá, em certos momentos, em oposição às prescrições do material, valendo-se de outros elementos para configurar seu trabalho docente.

 

3.1. A concepção de trabalho docente nos cadernos do ProjetoSão Paulo faz Escola

Os cadernos do projeto “São Paulo Faz Escola” foram elaborados como subsídio à Proposta Curricular do Estado para as escolas estaduais de ensino fundamental e médio. Após uma primeira versão em 2008, houve uma reformulação em 2009 e as apostilas adquiriram sua versão atual. Segundo lemos na apresentação do “Caderno do professor” (2009), que orienta os docentes, sua reformulação se deu incluindo “sugestões e críticas, apresentadas durante a primeira fase de implementação” e a proposta “não foi comunicada como um dogma ou aceite sem restrição”, mas em geral “o material causou excelente impacto na Rede” (Caderno do professor, p. 5).

Apesar de apresentarem-se como propostas, há uma imposição implícita desse material, segundo relatos da professora Mônica e de outros docentes da escola com os quais tivemos contato. O conteúdo é cobrado em provas como a do Saresp4, o que, atrelado à política de bônus, torna o material obrigatório caso os professores queiram ter direito ao bônus concedido às melhores escolas. Com isso, há uma espécie de pressão institucional pelo uso do material. Além disso, em nossas observações, mais de uma vez ouvimos a coordenadora pedagógica da escola citando o uso dos cadernos e a importância da escola subir no ranking do IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo).

O material em questão se trata de um conjunto de sequências didáticas, organizadas em uma apostila e entregue aos alunos bimestralmente. Os Cadernos do Aluno contém o passo a passo da sequência didática e as indicações precisas para a realização de exercícios, tarefas e outras atividades.

Já o “Caderno do Professor” traz orientações e explicações a respeito da organização do material, das sequências didáticas e das atividades propostas, para orientar os docentes em sua aplicação. Embora se apresente com o objetivo de “apoiar os professores em suas práticas em sala de aula” (p. 6), a prescrição do material vai além da pressão institucional. Ao longo do caderno do professor, podemos identificar elementos que prescrevem claramente atitudes, ações, gestos e palavras que o docente “deve” dizer ou fazer em sala, para lograr atingir os objetivos propostos. Logo no início, ao introduzir os temas de cada bimestre, lemos:

Sua aula começa muito antes de entrar em sala de aula. É importante ter lido e compreendido a Situação de Aprendizagem que se desenvolverá. Inicialmente, delimite o que será considerado em cada aula. Depois identifique quais as habilidades devem ser desenvolvidas. A seguir delimite o que efetivamente deseja que seus alunos aprendam após as atividades propostas. [...] Para isso, recorra ao quadro que inicia cada Situação de Aprendizagem. Procure compreender como os conteúdos selecionados podem contribuir para desenvolver de fato, as habilidades propostas (p. 8).

 

Nesse trecho, a linguagem utilizada (verbos no imperativo e diálogo direto com o professor-interlocutor) dá a entender que o que se “sugere” é, na verdade, uma imposição, uma ordem que tem por objetivo controlar a prática do professor antes de entrar em sala de aula (na página 12 se diz: “leia todo este roteiro antes de iniciar suas aulas”). Ou seja, uma vez que se incorpore os cadernos ao projeto didático autônomo do professor, este acaba por se tornar “engessado” pelas prescrições acima citadas. Não nos parece somente “apoio” ao professor, já que a reflexão que se “propõe” exige que o docente prepare a aula tendo em vista todo o passo a passo já delimitado na apostila. Com isso, elabora-se, no lugar do professor, um planejamento didático, restando ao docente apenas a função de executar o que já foi planejado de maneira supostamente eficaz.

Não somente na preparação, mas durante as aulas, os gestos e dispositivos didáticos, bem como os instrumentos discursivos que o professor deve utilizar, já vêm delimitados como “indicação” no Caderno do Professor. Assim, encontramos coisas como: “Professor, não deixe de perguntar aos alunos...” (p. 13), ou, antes de se propor a análise de um poema: “Assuma neste primeiro momento o maior grau possível de responsabilidade, na interpretação do poema. [...] Como sugestão, poderá seguir o esquema a seguir” e segue-se uma série de frases prontas como sugestão para que o professor presentifique/elementarize o objeto didático em sala de aula (p. 13). Ou seja, também os gestos e o corpo do professor em sala passam a ser controlados pelo material do governo. Ao professor não cabe mais do que seguir as orientações, às vezes bem taxativas, para que sua aula aconteça.

Antes de iniciar as indicações para o professor, há um quadro, na página 11 do mesmo caderno, com o detalhamento de todo o planejamento da “Situação de Aprendizagem”. Percebe-se que há a delimitação do tempo a ser utilizado para a realização da sequência: de 6 a 8 aulas. Se pensamos que cada caderno tem 4 propostas de sequências, ao todo seriam 24 aulas, o que significa 1 mês e meio de aula. Ou seja, quase o bimestre inteiro. Essa lógica impediria que o professor pudesse utilizar as apostilas somente como um apoio, afinal, todo o bimestre queda-se engessado por elas. Tal elemento mostra que, além do controle do corpo, também o tempo é controlado e externo ao professor, que, como dissemos, não precisa planejar, apenas executar o que é pedido.

Os elementos acima citados nos aproximam de uma concepção taylorista do trabalho docente, onde importa mais que o professor siga as instruções já dadas do que pense a respeito do seu trabalho e sobre qual é a melhor forma de levá-lo a cabo. Segundo Freitas (2010), surgida no final do século XIX e começo do século XX, a doutrina da Administração Científica do Trabalho (ACT) tinha, entre outras, a característica de aprofundar a divisão do trabalho, separando quem planeja e quem executa cada ação e movimento nas fábricas. Taylor (2006; apud Freitas, 2010), propõe que as instruções de trabalho dadas aos operários abandonem a tradicional forma oral da cultura camponesa e sejam substituídas por outras,

resultado de análises “científicas”, especialmente o estudo do tempo, realizadas pela direção da empresa, que é, para Taylor, quem deve orientar os trabalhadores a respeito da melhor maneira de executar sua tarefa. Assim, segundo o autor, há uma divisão equitativa do trabalho entre a gerência e os trabalhadores: a direção determina qual seria a melhor e mais rápida maneira de se realizar as atividades, enquanto que ao trabalhador cabe a sua execução. (Freitas, p. 56)

 

Além disso, a “cientifização de cada ato elementar do trabalhador” (Freitas, 2010, p. 59) faz com que se elaborem mecanismos de controle do tempo de cada ação/tarefa e de disciplinamento do corpo e dos movimentos corporais. Com isso, se espera que, nas fábricas, cada gesto do trabalhador não seja desperdiçado e que se chegue a um padrão de comportamento que o faça aproveitar da “melhor” maneira o tempo. O objetivo é que o trabalhador, já sem controle sobre o processo produtivo (devido à divisão do trabalho), seja obediente e obedeça aos comandos de forma automática, sendo, portanto, disciplinado. Citando Foucault (apud Freitas, 2006), a autora afirma que

o controle da atividade nos processos disciplinares também é exercido por meios da correlação entre o corpo e o gesto e da articulação corpo-objeto. Assim, os gestos devem estar em harmonia com o movimento corporal global e com o objeto que manipula. O poder codifica e instrumentaliza todos os passos da atividade por meio de prescrições explícitas. Com elas, realiza-se a utilização exaustiva do tempo, que é outro mecanismo citado pelo autor como integrante dos processos disciplinares.

 

Embora essas nossas considerações sejam mais um esboço sobre questões referentes ao trabalho docente (e as ideias aqui expostas mereçam um aprofundamento maior), podemos perceber que os Cadernos do Projeto “São Paulo faz Escola” reproduzem, de certa maneira, conceitos e ideias relacionadas à ACT, uma vez que supõem uma separação entre o planejador e o executor da tarefa, o controle do corpo através de ordens explícitas de disciplinamento (“o poder codifica e instrumentaliza todos os passos da atividade por meio de prescrições explícitas”), bem como o controle do tempo, cujo objetivo é sua “otimização”, ou seja, que se alcance o “melhor” resultado possível no menor período de tempo que se possa. Tal afirmação se sustenta se levamos em conta que Freitas (2010, p. 60), em seu trabalho, aponta uma incorporação, nos últimos anos, de ideias tayloristas fora de seu lócus original de aplicação. Enquanto nas fábricas e na indústria essas ideias são substituídas por outras, setores como o de serviços se veem envoltos em práticas tayloristas, as quais também chegam à educação.

 

3.2. Resistência na submissão: a prática didática em sala como resposta às concepções tayloristas sobre o trabalho docente


Ao responder se o trabalho do professor é igual aos outros tipos de trabalho, Schneuwly (2009) diz que “o objeto do trabalho docente são os processos psíquicos dos alunos; ou seja, aquilo sobre o que o professor trabalha são os modos de pensar, de falar e de agir, que ele deve transformar em função das finalidades definidas pelo sistema escolar.” (p. 3). Assim, poderíamos supor que o trabalho docente seria uma “modalidade do trabalho em geral” com seus objetos e instrumentos específicos, sendo estes “signos ou sistemas semióticos que agem sobre as funções psíquicas com vistas a transformá-las.” (p. 3). Ou seja, há uma dimensão dialogal e interacional inerente ao trabalho do professor.

Já a concepção taylorista, pensada para se aplicar ao trabalho fabril, aplicada à educação, incorpora nesta uma visão mecanicista do trabalho, coisificando o objetivo do ensino e desumanizando o trabalho docente. Ou seja, a aplicação de seus princípios à educação representa uma violência para com todos os envolvidos no processo educacional.

No entanto, os pressupostos da ACT, mesmo aplicados à educação (Freitas, 2010) não são suficientes para adestrar completamente corpos e espíritos. Sobretudo o trabalhador com um mínimo de formação, pois ele é capaz de questionar seus pressupostos e agir de maneira a subverter a lógica alienante que lhe é imposta. O professor, por exemplo, por ser um “agente de transformações” (Schnewly, 2009) e definir seu trabalho pela relação dialógica com seu objeto e com os instrumentos últimos de seu trabalho, a “transformação de modos de pensar, falar e agir” – segundo Schnewly (2009), objetivo que não pode ser alcançado, mas apenas sugerido ao aluno que, em último caso, é quem decide se aceita ou não essa transformação – possui uma capacidade de resistência diante de imposições que desfiguram seu trabalho e retiram sua capacidade crítica de pensar e agir com vistas a atingir seus objetivos. É o que verificamos quanto à prática da professora Mônica em sala de aula. Mesmo apegando-se a ideias e ações mais tradicionais quanto ao ensino de Português, ela consegue resistir às prescrições do instrumento didático adotado e imprimir suas ideias e seus gestos livres à prática didática em sala de aula.

 

3.2.1. Ressignificação do trabalho docente

Ao teorizar sobre os instrumentos de trabalho do professor, Schnewly (2009) especifica três categorias: os instrumentos constitutivos do ambiente escolar, os instrumentos de ordem material e os de ordem discursiva, estes dois últimos participando diretamente da condução do projeto didático, pois ajudam a presentificar e elementarizar o objeto de ensino, dando sentido ao trabalho docente em sala de aula.

No caso da professora Mônica, sua prática, baseada no instrumento material (apostilas), incorpora elementos discursivos que ressignificam seu trabalho (o valor social do objeto de ensino escolhido, o tópico gramatical) e auxilia a presentificar/elementarizar o objeto em questão. Ou seja, a relação entre instrumentos de ordem material e discursiva e o trabalho docente se dá, na prática, como forma não apenas de balizar os objetivos da prática docente, mas também dar sentido à escolha de um objeto de ensino específico.

A maneira como a professora constrói esse sentido em sua prática – o uso social do que se aprende – se dá em oposição ao sentido do trabalho docente pressuposto nos cadernos “São Paulo Faz Escola”, segundo explicitamos acima. Ela nos afirmou sua aversão aos cadernos pelo fato de não trabalharem questões e tópicos gramaticais de maneira mais direta, justamente o que ela considera relevante socialmente, além de pressuporem um professor “incompetente”, devido à minúcia das orientações contidas neles. Nessa minúcias e na linguagem dos Cadernos, como apontamos, é que identificamos elementos tayloristas, que supõem um professor-executor, a quem cabe somente seguir a risca as regras e levar a cabo os gestos e instrumentos discursivos prescritos, com o auxílio do instrumento material, a fim de transmitir aos alunos o saber legitimado socialmente. Em resistência a essas prescrições é que percebemos a atuação da professora em sala, na execução da sequência didática exposta neste trabalho. Devido a esse caráter prescritivo do material em questão, independente de seu conteúdo, qualquer diálogo possível entre as concepções de ensino da professora e outras mais atuais, quedam-se destinadas ao fracasso desde o princípio.

Como maneira de subverter, de alguma forma, essas prescrições, uma das estratégias da professora foi o de atribuir outros sentidos/objetivos às atividades da própria apostila. Em determinada aula, pediu que os alunos fizessem o exercício que solicitava a eles que buscassem no texto dado suas palavras-chave. A professora pede que, além disso, eles circulem determinadas classes de palavras (adjetivos e pronomes e verbos), justamente seu objeto de ensino naquele dia. Com isso, ela mescla seu projeto didático e seu objeto de ensino específico com as propostas da apostila, estabelecendo uma relação criativa com o instrumento material.

Assim, ao abordar outros objetos, diferentes da apostila, a professora ressignifica seu trabalho docente, fazendo dele uma atividade criativa, elaborada por ela mesma, com gestos didáticos e atividades que ela cria segundo o contexto da turma, rompendo a lógica taylorista. Dentre esses gestos podemos citar os comentários jocosos e brincadeiras que faz com os alunos enquanto desenvolve seu projeto didático. Em determinados momentos a professora se vale até de piadas de duplo sentido para atrair a atenção dos alunos ao objeto em questão, algo absolutamente não previsto pelas prescrições, nem do caderno, nem da escola. No entanto, com isso, consegue, de alguma forma, dialogar com a turma e seu contexto, de maneira a que os alunos se engajem na aula e dela participem. Há uma clara dimensão de resistência na prática da professora que, apegando-se a um objeto tradicional de ensino, ainda assim, o faz de maneira diferente, significando o seu trabalho em franca oposição a prescrições externas. Resistência que é, senão somente às apostilas, mas às condições de trabalho a que está submetida.

Outro aspecto observado nos gestos da professora em sala é o fato de que os alunos, em determinado momento, participam da elaboração dos gestos didáticos que presentificam e/ou elementarizam o objeto de ensino. Em uma das aulas, ela pedia que os alunos elaborassem frases para servir de exemplo na hora de explicar noções sobre morfologia e sintaxe verbal. Tal gesto significa a inclusão dos alunos na elaboração de instrumentos de ordem discursiva que servissem para conduzir a prática em sala de aula. O efeito de tal gesto foi um engajamento dos alunos na aula e a criação de um clima descontraído que favoreceu o aprendizado. Disso resultou que um aluno, o que depois seria expulso por entrar em conflito com a professora, ao término da explicação, pegou o caderno e começou a escrever, como que inserido na proposta da professora e motivado a realizar o exercício.

Novamente, a professora subverte o sentido da prática didática que se pressupõe do Caderno “São Paulo Faz Escola”: orientado por concepções tayloristas, o professor é visto como condutor-chefe da prática em sala, ao passo que o aluno é conduzido por ele, sendo levado a agir conforme as prescrições do professor. Na atividade da professora Mônica, porém, o que ela faz é trazer os alunos para a condição de cocondutores, pois, além de ouvirem as explicações e responderem a comandos, eles também criam instrumentos discursivos que ajudam na sistematização e internalização do objeto de ensino, na “transformação dos modos de falar, pensar e agir” (Schneuwly, 2009). Ou seja, se em último caso, é o aluno que transformará seu próprio modo de agir, pela interação e diálogo em sala, podemos dizer que essa interação e esse diálogo de fato existiram e colaboraram de alguma maneira no processo de aprendizagem (apesar de não ser possível a nós verificar o grau de sucesso das atividades no projeto global da professora, o que poderia ser medido através da análise das atividades de regulação, as quais não acompanhamos posteriormente).

Cria-se, portanto, em sala de aula, um espaço de liberdade, por meio de um diálogo constante com o objeto material que baliza a ação em sala (apostila “São Paulo faz Escola”), mas em franca oposição às suas prescrições. Tanto o trabalho do professor, quanto o papel dos alunos são ressignificados em sala, ganhando uma dimensão mais dialógica e colaborativa. Por fim, o objeto de ensino, escolhido para suprir uma falta dos Cadernos do governo, é aprendido mediante gestos que favorecem a sua aquisição por parte dos alunos, como os comentários jocosos e a participação deles na elaboração desses gestos. Com isso, rompe-se o caráter prescritivo-alienante de um trabalho fabril orientado à “otimização” do tempo pelo controle do corpo e o descontrole em relação ao processo produtivo. Ora, a escola, não sendo uma fábrica, reivindica seu caráter de lócus interacional por excelência, onde, como diz Schneuwly (2009), se realiza, com base no diálogo e na negociação, a “transformação dos modos de pensar, falar e agir”.

 

Considerações Finais

De acordo com o exposto acima, verificamos que a relação da professora Mônica com os instrumentos materiais de trabalho docente impostos (ainda que implicitamente), se dá de forma a caracterizar uma relação de resistência e submissão, de modo geral, uma relação criativa com o instrumento de ensino. Por um lado, obrigada a utilizar o material e buscando dar sentido à sua prática, a professora pretere os objetos de ensino tais quais expostos nas apostilas e elege objetos de ensino que julga mais relevantes (tópicos gramaticais). Ao mesmo tempo, busca romper as prescrições do material mediante uma prática livre em sala de aula que rompe prescrições e normas, ora instituindo discursos, gestos e atividades totalmente alheios ao material, ora adaptando atividades da apostila (criadas para outro fim) ao seu objeto de ensino, ressignificando-as.

Além disso, é de se notar a resistência da professora frente à imposição do material e a distância das concepções de ensino deste que, a nosso ver, ao trabalhar a questão gramatical a partir de uma abordagem do gênero textual (ou seja, de forma mais contextualizada), condiz, ao menos em parte, com o que prescrevem as atuais diretrizes educacionais, baseadas em estudos mais recentes sobre o ensino de língua materna. No entanto, a professora prefere apegar-se a uma abordagem tradicional da questão e demonstra claramente sua aversão ao que é dito na apostila. Isso nos leva a pensar que, devido à imposição do material, o necessário e promissor diálogo da professora, suas concepções mais tradicionais e outras que possam conduzi-la a outras alternativas no ensino de língua materna, queda-se prejudicado e, até mesmo, silenciado/impossibilitado. Como forma de resistir ao que é imposto, ela afirma sua identidade em uma prática tradicional. Um política mais “afirmativa” por parte do governo do Estado, dando voz e levando em conta o que diz o professor a cerca de suas condições de trabalho, atendendo suas reivindicações, seria o caminho ideal para estabelecer esse diálogo necessário e pertinente, a fim de se forjar uma educação mais condizente com nosso tempos.

Por fim, destacamos que as concepções tayloristas a respeito do trabalho do professor, presentes nas apostilas “São Paulo Faz Escola”, revelam mais um traço da política educacional no Estado de São Paulo, construída sobre o discurso do mérito, que não faz mais do que afirmar uma suposta incapacidade dos docentes de lidar com seu trabalho em sala de aula. Ao contrário, o que vimos neste trabalho indica que é o professor, dentro de suas possibilidades, o responsável por buscar formas alternativas de trabalho em sala de aula, ainda que atrelados à uma visão tradicional de ensino. Sem dúvida, uma mudança nessas políticas educacionais é necessária, para que se possa forjar o diálogo a que nos referimos, este mesmo componente indissociável do trabalho do professor, da prática pedagógica e da educação em geral.

 

 

Edilson da Silva Cruz

Professor de Espanhol na rede pública estadual de São Paulo e cursos livres de idiomas. Bacharel em Letras (Português/Espanhol) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e estudante de Licenciatura em Letras na Faculdade de Educação da mesma universidade (FEUSP). Atualmente, desenvolve pesquisa de Iniciação Científica sobre formação de professores e ensino de línguas estrangeiras no Estado de São Paulo, sob orientação da professora Dra. Denise Trento Rebello de Souza (FEUSP).

 

Referências bibliográficas

FREITAS, Luciana Maria Almeida. Da fábrica à sala de aula: vozes e práticas tayloristas no trabalho do professor de espanhol em cursos livres de línguas. Tese (Doutorado em Letras)‒UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.

SÃO PAULO FAZ ESCOLA. Caderno do Professor, 2009.

SCHNEWLY, B. Le travail enseignant. In: SCHNEUWLY, B; DOLZ, J (Orgs.). Des objets enseignés en classe de français - Le travail de lenseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Traduzido por Sandoval Nonato Gomes Santos. Rennes, FR: Press Universitaires de Rennes, 2009, p. 29-43. [uso restrito, p. 1-16]

TAYLOR, F. W. Princípios de Administração Científica. Traduzido por A. V. Ramos. São Paulo: Atlas, 2006.

 

 

1 Tanto a escola como a professora são referidas com nomes fictícios.

2 Sem dúvida, esta pintura é o elemento que mais chama a atenção de quem circula pela escola. Num ambiente onde a falta de textos escritos às vezes chega a incomodar, contemplar esta pintura no pátio é uma forma de reconhecê-lo novamente como um espaço escolar, cuja principal característica é, justamente, o contato com o texto, com a letra e suas imprevisíveis curvas.

3 Nome fictício.

4 Sigla de Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, um dos pilares da política educacional estadual de São Paulo. Cf. www.educacao.sp.gov.br

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