Atividades epilinguísticas: uma alternativa para a mudança nas práticas do ensino de língua

 

Aline Fonseca Martins 

 

Introdução

Estudos sobre ensino e aprendizagem de língua materna (NEVES, 1990; SEMEGHINI-SIQUEIRA, 1998) mostram que a gramática normativa é um dos pontos mais abordados hoje nas salas de aula, sendo que esse conteúdo é geralmente transmitido ao aluno por meio de uma terminologia técnica que, na maior parte das vezes, não faz sentido a ele.

Por esse e outros motivos tal enfoque dado à gramática durante o Ensino Fundamental não vem gerando resultados satisfatórios, pois grande parte dos alunos termina esse ciclo sem possuir as habilidades básicas que deles se espera, a saber, “leitura fluente e produção escrita coerente e coesa” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 1998:01).

Em vista disso, faz-se necessário buscar alternativas que proporcionem o aumento do grau/nível de letramento dos alunos do Ensino Fundamental, tendo em mente que o estudo da gramática normativa com sua terminologia não influencia diretamente no propósito de instrumentalizar os alunos a lerem com maior fluência e melhorarem sua produção textual.

Uma alternativa que poderia melhorar o ensino de língua materna na escola mediante uma mudança das práticas educativas seria a utilização de atividades epilingüísticas, que são atividades de reflexão sobre o uso da língua, sem o uso da metalinguagem. Assim, ao aplicar esse tipo de atividade, o professor levará seus alunos a refletirem sobre a linguagem sem a utilização de “termos técnicos” que, além de não serem significativos ao aluno, não o auxiliam na compreensão da gramática, pois “aquele que aprendeu a refletir sobre a linguagem é capaz de compreender uma gramática (...); aquele que nunca refletiu sobre a linguagem pode decorar uma gramática, mas jamais compreenderá seu sentido” (GERALDI, 2002:64). Na prática das atividades epilingüísticas, “os enunciados são confrontados e transformados: ‘brinca-se com a linguagem'. É um trabalho consciente. Trata-se de uma atividade que toma a própria linguagem como objeto de operações transformadoras” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2006:06 – grifo da autora).

Assim, exercícios de reescrita/reelaboração/revisão de textos são exercícios epilingüísticos por implicarem uma reflexão sobre a linguagem usada pelos alunos. Isso não quer dizer que é suficiente que o professor assinale as inadequações presentes nos textos produzidos por eles e os peça que os reescrevam, sem direcionar o foco para pontos específicos que precisam ser trabalhados, pois revisar e reescrever um texto implica reestruturá-lo, não simplesmente “passá-lo a limpo” (BEZERRA; SEMEGHINI-SIQUEIRA, s/d). Com isso, o conhecimento da gramática, que também pode ser transmitido por meio de atividades epilingüísticas, como será exemplificado adiante, só será válido se o aluno o usar para rever, reescrever, reinventar suas produções escritas e, dessa forma, adquirir uma flexibilidade lingüística que permita a ele adequar seus textos orais e escritos às diferentes situações por ele vividas, conhecendo os valores socialmente atribuídos às diferentes variedades lingüísticas.

Em vista disso, foram desenvolvidas para o estágio da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I (MELP I), lecionada pela Profª Drª Idméa Semeghini-Siqueira, atividades epilingüísticas que abordassem os aspectos da gramática normativa cujo ensino fora solicitado pela professora responsável pelas salas nas quais o estágio foi realizado, a saber, 6ª. e 7ª. séries do Ensino Fundamental da rede pública do estado de São Paulo. 

 

Atividades epilingüísticas

Uma das atividades aplicadas foi apresentada aos alunos de MELP I pela professora Idméa Semeghini-Siqueira. Essa atividade consiste num texto com lacunas, sendo que cada lacuna deve ser completada com um verbo, que pode ser encontrado num quadro com verbos no infinitivo. O foco do exercício é abordar a conjugação de verbos. É importante salientar que, para sua realização, não foi feita nenhuma explicação sobre conjugação verbal. Apenas foi solicitado aos alunos que preenchessem o texto com as palavras do quadro. A atividade foi aplicada a duas turmas de 7ª. série do Ensino Fundamental, sendo que ambas as turmas contavam com um grande número de alunos que normalmente não participavam das aulas. Durante a aplicação dessa atividade epilingüística, porém, a grande maioria dos alunos participou ativamente da aula: todos os alunos de uma turma realizaram o exercício e apenas um aluno da outra turma se recusou a fazê-lo. Os estudantes atuaram de tal modo porque encararam o exercício como um desafio, diferente das atividades a que estavam habituados.

Além dos ótimos resultados obtidos no que tange à participação dos alunos durante a aula, um resultado muito bom também pôde ser notado em relação à consciência da língua da materna apresentada por eles, o que pôde ser constatado por meio das poucas inadequações que cometeram. Isso prova que os estudantes não precisam de explicações exaustivas para criarem uma consciência da língua da qual são falantes.

Por meio dessas observações, vemos que esse tipo de atividade pode ser uma forma muito mais produtiva de ensinar conjugação verbal, pois o velho método de fazer listas para que eles conjuguem os verbos em diferentes modos e tempos se mostra pouco eficaz, uma vez que a tarefa, além de ser pouco significativa aos estudantes por apresentar uma série de nomenclaturas que nada tem que ver com sua realidade, não oferece a eles um desafio e nem tampouco um fator motivador.

A atividade descrita é apenas um exemplo de como se pode abordar a conjugação verbal na sala de aula. Há muitas outras formas de apresentar o tema de modo estimulante aos alunos. Como exemplo, pode-se citar o jogo “dominó do verbo”. Essa atividade pode ser aplicada da seguinte forma: o professor pode selecionar formas verbais pouco utilizadas pelos alunos, como o imperfeito do subjuntivo e o futuro do pretérito. Depois disso, pode-se confeccionar dominós de cartolina, sendo que os alunos devem ligar partes que façam sentido, como, por exemplo, “se eu” poderia ser ligado com “tivesse”, mas não com “teria”, porque isso não faria sentido algum.

Essa atividade, que deve ser feita sempre em grupos, gera bons resultados porque é vista pelos alunos como uma brincadeira, porém muito produtiva. Além disso, ela precisa de pouca intervenção do professor, pois os próprios estudantes acabam por corrigir as inadequações cometidas pelos colegas.

Outro ponto da gramática normativa que foi apresentado aos alunos de uma forma mais lúdica foi a paragrafação. A atividade elaborada consistia num texto curto cortado em tiras, sendo que cada tira correspondia a um parágrafo do texto. Essas tiras foram dadas aos estudantes embaralhadas e colocadas em envelopes, e foi solicitado a eles que montassem o texto como se ele fosse um quebra-cabeça. Essa atividade, aplicada em duas salas de 6ª. série, apresentou resultados tão satisfatórios, que a professora responsável pelas salas solicitou sua aplicação a duas turmas da 7ª. série.

Nas aulas em que tal atividade foi trabalhada não se falou sobre paragrafação em momento algum, pois se esperava que os alunos intuíssem o conceito observando cada fragmento do texto cortado. Além da paragrafação, foi trabalhado também o tópico “interpretação de texto”, pois eles deveriam dar sentido ao texto para montá-lo na ordem correta.

Através de atividades epilingüísticas, como as já citadas, também é possível abordar outros temas como “conjunções”, por exemplo. Uma sugestão de atividade é apresentar aos alunos frases do tipo: “o menino queria subir de elevador”, “ele estudou pouco”, “ela o amava” etc. e, em seguida, apresentar a eles um quadro com complementos para essas frases, como “mas este estava quebrado”, “logo foi mal na prova”, “embora ele já fosse casado”. A partir disso, deve-se pedir aos alunos que completem as orações com um elemento do quadro, ligando-as por meio do seu sentido. Fazendo isso, eles terão a oportunidade de ver exemplos de como são empregadas as conjunções que aparecem no exercício. Vendo as formas de utilizá-las por meio dessa atividade, os alunos estarão aptos a criar frases usando as conjunções apresentadas. Para esse fim, propõe-se que seja solicitada a eles a criação de complementos para frases como “ele seria muito rico, se... ”, “ o garoto sempre sonhou em ser astronauta, embora... ”, “ ela não tinha o endereço, logo...”. Com isso, eles poderiam praticar as conjunções aprendidas. Mediante essas atividades lúdicas, os estudantes teriam a oportunidade de aprender como utilizar conjunções, sem que em nenhum momento se fizesse necessária uma explicação formal sobre o assunto. Assim, em vez de decorarem listas e mais listas sobre conjunções e suas classificações, os alunos teriam a oportunidade de ver na prática como elas funcionam.

Existem possibilidades de dar continuidade ao exercício citado acima. Uma delas pode ser desenvolvida da seguinte forma: os alunos escolhem uma ou duas frases criadas por eles mesmos e as escrevem na lousa. Em seguida, a classe é chamada a fazer uma votação das frases mais criativas. Por meio desse pretexto, os alunos terão acesso a muitos exemplos das conjunções ensinadas, que, além de otimizar o conhecimento adquirido, tornam-se significativos por terem sido criados por eles, não se tratando de exemplos retirados do livro didático ou criados pelo professor.

Outra alternativa por meio da qual se torna possível expor as frases criadas pelos alunos para que estas sirvam de exemplo é fazer um bingo com a classe. O jogo pode partir do mesmo princípio de os alunos escreverem na lousa as frases criadas por eles, sendo que, em seguida, devem selecionar algumas das frases escritas pelos colegas e escrevê-las em uma cartela em branco, que pode ter sido confeccionada por eles mesmos ou pelo professor. As frases escritas na lousa devem ser copiadas em pedaços de papel, que depois serão dobrados e sorteados. O professor pode pedir a colaboração de alguns alunos da classe para a tarefa de copiar as frases nos pedaços de papel e dobrá-los. Depois que as cartelas estiverem prontas e os pedaços de papel dobrados, o professor deverá sortear frases, e os alunos que as tiverem em suas cartelas deverão marcá-las. Aquele que tiver todas as suas frases marcadas primeiro ganhará o jogo. O caráter lúdico da atividade deixará os estudantes envolvidos com ela, de forma que possam aprender sem se darem conta disso.

 

Considerações finais

A partir desses poucos exemplos e também de estudos feitos na área (BEZERRA, 2004; FRANCHI, 1991) é possível comprovar a eficácia das atividades epilingüísticas, pois elas se configuram como uma maneira simples e bastante eficaz de ensinar língua portuguesa aos alunos, levando-os a uma reflexão sobre sua própria língua e levando em consideração que eles, assim como os próprios professores, têm uma intuição para a língua da qual são falantes.

Dessa forma, fica evidente que as atividades epilingüísticas são uma excelente alternativa às aulas de Língua Portuguesa puramente expositivas e baseadas no livro didático, livros estes que, muitas vezes, possuem lições que foram “elaboradas para ‘alunos ideais', por autores ou equipes fora do espaço escolar” (SEMEGHINI-SIQUEIRA, 2006: 13 – grifo da autora). Assim, para serem totalmente eficazes, as atividades epilingüísticas devem ser elaboradas para “alunos reais”, por meio do conhecimento do seu grau/nível de letramento e da sua capacidade de usarem a língua-mãe ao ler e escrever, sendo que a forma mais indicada de tomar conhecimento desses fatores é a aplicação de avaliações diagnósticas e formativas, que deverão ser assumidas como “um instrumento de compreensão do estágio de aprendizagem em que se encontra o aluno, tendo em vista tomar decisões suficientes e satisfatórias para que se possa avançar no processo de aprendizagem” (LUCKESI, 1988:81). De tal modo, o ponto de partida para a elaboração e a aplicação das atividades será aquilo que o aluno já sabe e aquilo que ele ainda precisa desenvolver.

A produtividade dos alunos será notavelmente maior se as atividades epilingüísticas, além de partirem sempre das necessidades do “aluno real”, apresentarem um caráter desafiador e/ ou lúdico, pois “crianças e jovens (...) são ávidos pelo saber, pelo convite à descoberta, pela ultrapassagem do óbvio, desde que sejam convocados e instigados para tanto” (AQUINO, 1996:52). Cativando a atenção dos alunos com exercícios desafiadores e motivando-os a construir o conhecimento por meio da reflexão, os professores serão capazes não só de transmitir o conteúdo previsto, mas também de reduzir consideravelmente os níveis de indisciplina na sala de aula, uma vez que esta muitas vezes se dá pelo fato de os alunos considerarem as atividades propostas desinteressantes e enfadonhas, o que não os motiva a participarem delas e os leva, dessa forma, a utilizarem sua imaginação e inquietude em outros tipos de tarefas que não dizem respeito à aula, como brigas e brincadeiras inapropriadas, por exemplo.

Dessa forma, mediante as considerações feitas sobre atividades epilingüísticas e também por meio dos exemplos desse tipo de atividade anteriormente descritos, conclui-se que este trabalho não propõe simplesmente o ensino de gramática normativa aos alunos de forma lúdica e não tradicional. A proposta aqui feita não trata somente de uma nova metodologia, mas sim de um convite à mudança total das práticas de ensino tradicionalmente utilizadas nas aulas de português no Ensino Fundamental. As práticas cuja tradição determina o ensino da gramática normativa como foco principal, muitas vezes deixando de lado o desenvolvimento das habilidades de ler e escrever, imprescindíveis à formação do aluno, deverão ser abandonadas em detrimento de práticas de ensino que focalizem a reflexão sobre a língua da qual os alunos são falantes. A gramática não será ensinada como um fim que se esgota em si mesmo. Ela será ensinada para que os alunos possam operacionalizar os conhecimentos lingüísticos, para que, por meio dessa operacionalização, possam se tornar, de fato, leitores e escritores.

 

Referências bibliográficas

AQUINO, Julio Groppa (1996). A desordem na relação professor-aluno: indisciplina, moralidade e conhecimento. In: ____. (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. 11. ed. São Paulo: Summus.

BEZERRA, Gema Galgani R. (2004). Contribuição às reflexões sobre práticas de ensino de gramática e formação de professores de 1ª a 4ª séries: Atividades epilingüísticas em foco. Tese de Mestrado: FEUSP/SP.

Disponível em <http://www.alb.com.br/anais16/

FRANCHI, Carlos (1991). Indicações para uma renovação dos estudos gramaticais. In: Criatividade e Gramática. São Paulo: SEE/CENP.

LUCKESI, Cipriano Carlos (1988). Avaliação do Aluno: a favor ou contra a democratização do ensino? In: Prática docente e avaliação. Rio de Janeiro, ABT.

NEVES, Maria Helena de M. (1990). Gramática na escola. São Paulo: Contexto.

SEMEGHINI-SIQUEIRA, Idméa (1998). O peso das práticas educativas de gramática, redação e leitura para alunos do primeiro grau em Português: um estudo exploratório a partir da década de 50. Anais. II Congresso Luso-brasileiro de História da Educação. São Paulo: USP.

________. (2006). O poder do passado nas práticas escolares de oralidade, leitura e escrita contemporâneas: reconstituição de alicerces para otimizar o grau de letramento/ literacia de jovens brasileiros. Anais/ Actas. XIV Colóquio da AFIRSE “Para um balanço da investigação da educação de 1960 a 2005”. Lisboa: Universidade de Lisboa/FPCE.

    

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3 comentários

  • Link do comentário sirlene sena Segunda, 15 Abril 2013 10:53 postado por sirlene sena

    segunda,11 abril 2013 postado por sirlene
    Ao procurar entender sobre epilinguistica,amei as ideias para desenvolver ate mesmo como mãe pois nossos filhos muitas vezes tem dificuldade em português por não terem aulas preparadas com essas atividades tão dinâmicas.

  • Link do comentário Cristiane Guntensperger Sousa Domingo, 03 Junho 2012 20:35 postado por Cristiane Guntensperger Sousa

    A Else nos indicou este site e realmente foi uma grande dica. Estou adorando os artigos, pois vem ao encontro do que já realizamos em sala de aula.

  • Link do comentário Else Emrich Domingo, 29 Abril 2012 01:07 postado por Else Emrich

    Minha nossa, que felicidade encontrar vocês por aqui!!! Estou com a respiração suspensa, radiante, quicando de alegria, porque há anos trabalho assim com minhas turmas na rede pública (no colégio particular não me permitiram, quase fui linchada...)e os resultados são animadores!!! Nem sabia que tinha nome, imaginava eu que fosse apenas uma questão de lógica, de bom senso!! Como é bom, como fico feliz em encontrar mais pessoas que pensam e agem assim!! Um abraço cordial e animado!

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