O relatório de estágio como manifestação do perfil profissional em Letras

 

Valdir Heitor Barzotto* 
Daniela Aparecida Eufrásio** 

 

Introdução

A preocupação com a formação no curso de Letras como um todo, e com a formação do professor de Língua Portuguesa em particular, nos levou a estudar um conjunto de relatórios de estágio realizados durante a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa[1]. Nosso objetivo foi verificar em que medida relatórios de estágio permitiam perceber a incorporação e a operacionalização dos conhecimentos específicos oferecidos na formação em Letras/Licenciatura. Com isso buscamos indagar se, neste momento da formação, o aluno demonstrava em seu texto características próprias do perfil profissional específico desta área, isto é, se e como o aluno apresentava, no momento em que escrevia o seu relatório, registro e tratamento dos dados coletados em sala de aula que atestassem algum traço característico do perfil esperado do profissional de Letras. Ao estudarmos esses relatórios de estágio o foco de nossa atenção não foi o que o estagiário observava, mas como ele lidava com aquilo que observava e se, para seu registro e análise, mobilizava os conhecimentos adquiridos durante sua formação.

Partimos do princípio de que, ao chegar nesta etapa da formação (os alunos encontram-se no terceiro ou quarto ano quando fazem o estágio), estando prestes a se tornarem profissionais, é desejável que já estejam em condições de apresentar um texto característico de um profissional de Letras. O objetivo desta formação não é apenas ensinar o aluno a ler e escrever, ou instrumentalizá-lo com algum conhecimento normativo para repassar a seus futuros alunos, mas ensiná-lo a entender o conhecimento próprio da área como o que lhe dá especificidade profissional no tratamento das diversas manifestações lingüísticas.

Por isso, estabelecemos como propósito da análise dos relatórios a verificação de como o aluno lidou com os dados de linguagem, neste caso, coletados em um contexto específico – a sala de aula em situação de ensino-aprendizagem. Acreditamos que desta pesquisa pode-se tirar algumas contribuições para refletir sobre o trabalho realizado na disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e no curso de Letras.

 

O contexto de produção dos relatórios de estágio analisados

Os relatórios foram produzidos para a disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, com duração de 60 horas em sala, à qual o estágio está acoplado, com duração de mais 60 horas, sendo 40 horas de observação e 20 de regência. Ao todo, somam-se 240 horas em um ano letivo.

Durante as aulas são realizados estudos sobre diferentes abordagens do ensino de Língua Portuguesa, bem como são organizadas atividades para o trabalho nas aulas de regência. Para registro das observações, o aluno é orientado a fazer um diário de campo, utilizando algumas noções mínimas de etnografia de sala de aula.

Idealmente, o estagiário deve registrar e documentar todas as situações presenciadas em aula. Desse material, deve selecionar alguns aspectos sobre os quais queira incidir no momento da regência, seja para tentar fazer igual ao professor regente, se achar pertinente, seja para tentar fazer melhor. Então, o aluno prepara algumas atividades, ou o professor regente da sala solicita que ele aplique as atividades que constam de seu planejamento, ministra suas aulas e recolhe resultados para análise e, se necessário, para reconsideração das atividades e de seu procedimento em sala.

Dessa experiência, o aluno estagiário deve ainda destacar um assunto sobre o qual considere relevante um aprofundamento. Então, ele produz um relatório, no qual devem constar como embasamento os textos estudados nas aulas de Metodologia, aqueles estudados nas outras disciplinas da licenciatura, bem como aqueles estudados ao longo do bacharelado. Todo o relatório deve manter como foco central o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa.

Dentre os relatórios estudados para esta pesquisa predominou, como é de praxe, a seguinte composição:

- descrição física e administrativa da escola, bem como de sua inserção no contexto social constituinte do espaço escolar: aspectos econômicos, geográficos, institucionais, entre outros;
- relato das aulas a partir da observação e análises;
- tomadas de decisão sobre as atividades a realizar em função do que foi observado;
- registros do processo de preparação das atividades;
- registro da experiência da regência e análises;
- análise de um aspecto destacado pelo estagiário como merecedor de aprofundamento;
- anexos.

Durante as aulas de metodologia, constantemente foi chamada a atenção dos alunos para a necessidade de dar ao relatório um caráter mais científico do que se costuma dar. Já nas orientações iniciais sobre a produção do relatório, os alunos foram orientados para encarar o trabalho não apenas como um relato simples das atividades presenciadas, mas como uma pesquisa em sala de aula sobre o ensino de língua portuguesa, o que deveria impor ao estagiário a necessidade de tratar mais academicamente tanto a coleta como a análise dos dados.

Em vários momentos, conversou-se também sobre a necessidade de registro das situações observadas para além das impressões. Nenhum aluno poderia afirmar que as atividades aplicadas em sala, pelo professor ou por ele mesmo, deram ou não deram certo sem apresentar os dados e uma discussão que permitissem verificar o sucesso ou insucesso da atividade. Tornava-se, assim, necessário o registro pormenorizado do modo como ocorreu o desenvolvimento da atividade e a produção dos alunos dela resultante.

Entre outros motivos, essas orientações objetivavam provocar o deslocamento do aluno em relação à visão dos processos de ensino e de aprendizagem assumida previamente por meio do senso comum ou das tentativas de discorrer sobre o que é melhor para o ensino sem conhecimento de situações escolares concretas.

 

Concebendo o relatório de estágio como resultado de uma pesquisa

A experiência mostra que o simples contato com o cotidiano escolar e sua conseqüente descrição não fazem do estágio uma atividade essencialmente formadora, uma vez que não incentivam a reafirmação do perfil profissional almejado durante a formação em curso. A aceitação de uma descrição geral dos fatos presenciados como trabalho final da disciplina não exige do estudante uma postura mais ativa enquanto observador e profissional capaz de intervir futuramente nas situações escolares de forma a fazer valer os conhecimentos que lhe foram apresentados durante sua formação. Isso se agrava quando o relatório se aproxima mais de um preenchimento de fichas ou de uma busca de respostas a questões formuladas previamente, que acabam por condicionar o olhar do estagiário para pontos específicos durante a observação, deixando escapar outros que poderiam se mostrar mais importantes na situação concreta de aula.

A observação pontual dos fatos de sala de aula, mediante coleta de dados, serve para subsidiar uma intervenção mais consciente do estagiário, pois possibilita que ele tome decisões mais acertadas, permitindo-lhe incidir em aspectos próximos da realidade nas atividades que irá propor, por exemplo, em sua regência. Será mais consistente a intervenção se os pontos importantes forem localizados em um relato mais abrangente da aula e se não se restringirem ao conjunto de orientações dadas previamente. Desenvolver uma curiosidade investigativa no cotidiano parece eficaz quando se trata de trabalhar em uma sala de aula, pois se toca melhor em sua constante mutação. Isso permite também que não se falseie a imagem do trabalho docente, o que ocorre quando, por despreparo, o professor acredita em soluções gestadas longe de seu cotidiano.

Formar o professor desde seu estágio para realizar intervenções pertinentes a partir da observação sistemática e rigorosa da sala de aula permite investir na possibilidade de atuação docente reforçada por critérios mais solidamente embasados do que naquela calcada apenas na intuição – ainda que esta possa ser um complemento importante para seu trabalho – ou naquela excessivamente direcionada.

Mesmo que, durante o estágio, a situação ideal de poder experimentar na regência propostas elaboradas a partir da observação não possa ser efetivada sempre, pois a alegada necessidade por parte do professor titular de cumprir o programa da escola faz com que isso nem sempre se concretize, o exercício da observação pode apontar para sua importância no levantamento de problemas e na proposição de soluções vinculadas ao conteúdo do programa.

Se, por exemplo, durante a observação um estagiário perceber que os alunos têm dificuldades na leitura de textos simples, mas, por recomendação do professor titular, tiver de ministrar aulas sobre o Trovadorismo em sua regência, é bom que ele esteja em condições de organizar atividades de leitura a partir de um texto pertencente ao trovadorismo, para depois adentrar o tema específico.

Acreditamos que, desse modo, a prática de observação com a meta de averiguar e registrar o que se passa na sala de aula pode já ser um passo na formação de um professor que estudará sua própria sala de aula. Além disso, não se pode abandonar no estágio a idéia de que a Universidade é um lugar de produção de conhecimento e de reflexão sobre os dados da realidade, seja ela satisfatória ou não.

Embora tenhamos uma relativa escassez de produções acadêmicas que tomam relatórios de estágio como objeto de pesquisa[2], no que concerne tanto à sua natureza quanto a seus aspectos formais, encontramos um posicionamento que contempla nossas preocupações em Salomon (2004:215-6):

O relatório de pesquisa e o informe científico ou técnico enumeram-se entre os de maior circulação nas universidades, nos congressos especializados e abertos, e nas associações de classes profissionais de nível superior. Por serem, em geral, de menor envergadura que as teses e monografias, podem ser produzidos com maior freqüência. Tanto a ciência como a tecnologia devem, sobretudo a eles, o grau de desenvolvimento que têm atingido. Não é só o cientista que os escreve. O aluno de curso superior, o iniciante na investigação e o profissional comunicam periodicamente os resultados de pesquisas realizadas. Todos sabemos que não basta adquirir mentalidade científica, saber e realizar investigação: é preciso comunicar. O pesquisador tem compromisso com alguma instituição ou comunidade: há os colegas, o orientador da pesquisa, o patrocinador, como interessados diretos; mas há também os interessados indiretos: o público em geral e o especializado. Ao contrário do que muitos pensam, o grande público é ‘ávido e curioso em penetrar nesses tipos de comunicação' [...].
     Provindos diretamente da pesquisa que acabou de terminar, o relatório e o informe, como todo trabalho científico de primeira mão, tornam-se ‘fontes' de que se servirão outros para ‘extrair' e ‘divulgar' a ciência. Não teria sentido, portanto, que o pesquisador deixasse de informar os resultados de sua investigação. Por mais notáveis que estes sejam, não terão valor se não forem transmitidos.
     Durante o curso superior, sobretudo nos últimos anos, costuma-se incumbir o aluno de realizar uma pesquisa. Seu projeto é montado, desdobrado em partes para ser apresentado em etapas sucessivas até que, ao fim, se transforme no relatório de pesquisa. Muitos desses relatórios são dignos de difusão e de ser confiados à publicação especializada.

Em consonância com o posicionamento acima sobre relatórios científicos e a necessidade de comunicar o trabalho feito no interior das pesquisas, uma vez que não nos dispensamos do compromisso de produção de conhecimentos durante o estágio, vemos como pertinente a discussão e a orientação aos estagiários sobre a possibilidade de caracterização dos relatórios de estágio como um trabalho científico propriamente dito[3].

Estando o relatório alicerçado sobre uma concepção que o entende como produto de um trabalho de campo e de coleta de dados, como um trabalho de análise e interpretação, isso implica entendê-lo como uma atividade de pesquisa, ou que contém uma pesquisa.

Neste sentido, outra dimensão importante é a possibilidade de enfrentamento da diversidade de dados. O relatório é uma oportunidade de o estagiário, enquanto observador e pesquisador, cruzar os dados de sala de aula e os fatos de língua a fim de medir se uma mesma forma de intervenção pode atingir a totalidade de alunos. A análise da heterogeneidade dos dados, no relatório de estágio, pode ampliar a discussão sobre como os alunos respondem diferentemente ao trabalho com língua materna. Enfim, o relatório de estágio é um instrumento privilegiado para se partir do dado concreto de aula e chegar a reflexões de cunho teórico, estabelecendo um caminho interessante de superação da dicotomia entre teoria e prática, ainda presente nas discussões sobre Educação.

 

Um perfil profissional delineado na história

Apresentamos neste item alguns posicionamentos que apresentam o que estamos chamando de traços característicos do perfil profissional de Letras e que nos parecem vastamente aceitos na comunidade da área. Esclarecemos que não é nossa intenção produzir uma definição ou discutir qual seja o perfil apropriado para o profissional de Letras. Os excertos que apresentamos têm a função de ilustrar o que temos em mente quando analisamos os relatórios, buscando verificar em que medida já se pode considerar a presença das características desse profissional na produção do relatório. Trata-se, acima de tudo, de interrogar se esse perfil de ampla aceitação pode ser verificado na produção de textos dos estudantes de Letras.

Contrastando o saber sobre a língua do falante e do lingüista, Coseriu (1979:54), por exemplo, contribuiu para que pensássemos em que medida nosso aluno, após três ou quatro anos no curso de Letras, apresenta um conhecimento diferenciado daquele que já possuía enquanto falante:

A verdade é que os falantes têm plena consciência do sistema e das chamadas “leis da língua”. Não apenas sabem o que dizem, mas também como se diz (e como não se diz); de outro modo não poderiam sequer falar. É verdade, por outro lado, que não se trata de “compreender” o instrumento lingüístico (o que é assunto do lingüista), mas de saber empregá-lo, de saber manter (refazer) a norma e criar de acordo com o sistema. [Grifo nosso]

Por sua vez, Ilari (1989:08), ao falar dos motivos para se defender a presença da Lingüística nos cursos de Letras, aponta dois objetivos formativos: “1) desautomatizar a visão corrente dos fatos de língua; 2) proporcionar ao futuro professor de letras a oportunidade de praticar o método de investigação próprio das ciências naturais”.

Esses dois objetivos são importantes para a reflexão que empreendemos aqui por apontarem para um projeto formativo, que objetivaria levar o futuro professor de língua portuguesa a analisar de forma menos leiga e mais científica os dados de língua.

Além da acuidade no tratamento dos dados de língua, o profissional de Letras lida com uma vasta cultura literária e sobre a falsa separação entre língua e literatura; Brait (2000:197) afirma:

[...] o profissional de Letras terá que conhecer muito bem a língua, as suas variantes, a sua norma culta. Mas terá também de conhecer literatura, como uma das formas de expressar essa língua e tudo que isso pode significar. Terá ainda de estar atento às teorias da linguagem em geral para ser capaz de enfrentar textos e fazer deles seu instrumento de ver e mostrar o mundo.

Sendo assim, entendemos o estágio como um momento em que o profissional de Letras em formação deve utilizar os diferentes conhecimentos teóricos pertinentes a sua área de atuação e não se limitar a fazer um relato episódico, factual, do que observa em sala de aula. Pensamos que o profissional em Letras deve lidar de modo menos leigo possível com as diversas manifestações lingüísticas, sejam elas o texto escrito pelo aluno, o texto literário ou o texto jornalístico, que é enfocado na citação a seguir:

E é aqui que eu proponho que o profissional de Letras atue e, utilizando seus conhecimentos teóricos sobre linguagem, leitura, produção e recepção de textos, aponte, pelas relações estabelecidas entre a materialidade lingüística e a materialidade visual, a reiteração, a ampliação ou o redimensionamento de sentidos, mesmo em gêneros em que o esperado é a transparência textual, a utilização da linguagem como simples instrumento de informação. (ibidem: 202)

De acordo com a citação, entende-se que a especificidade da formação do profissional da área de Letras exige que ele mobilize os conhecimentos específicos da área para a análise do texto jornalístico; do mesmo modo entendemos que essa especificidade exige que o estagiário, prestes a se tornar professor de Língua Portuguesa, também mobilize tais conhecimentos – o que impõe maior rigor na coleta de dados em uma aula observada e em sua análise.

Em 2001, as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e Cultura para o curso de Letras, por sua vez, deram mostras de que há um certo consenso em torno da necessidade de um trabalho mais científico por parte de profissionais formados no ensino superior. Esse documento é importante para o delineamento do perfil do profissional porque procura atender à compreensão que se tem nos mais diferentes cursos do país sobre o que seja o profissional a ser formado:

O objetivo do Curso de Letras é formar profissionais interculturalmente competentes, capazes de lidar, de forma crítica, com as linguagens, especialmente a verbal, nos contextos oral e escrito, e conscientes de sua inserção na sociedade e das relações com o outro.
     Independentemente da modalidade escolhida, o profissional em Letras deve ter domínio do uso da língua ou das línguas que sejam objeto de seus estudos, em termos de sua estrutura, funcionamento e manifestações culturais, além de ter consciência das variedades lingüísticas e culturais. Deve ser capaz de refletir teoricamente sobre a linguagem, de fazer uso de novas tecnologias e de compreender sua formação profissional como processo contínuo, autônomo e permanente. A pesquisa e a extensão, além do ensino, devem articular-se neste processo. O profissional deve, ainda, ter capacidade de reflexão crítica sobre temas e questões relativas aos conhecimentos lingüísticos e literários.[4]

Mesmo que as propostas acima possam ser discutidas, dificilmente argumentos que dizem respeito à cientificidade necessária para o tratamento do objeto próprio da área em que o profissional vai se formar serão destituídos, uma vez que fazem parte da história da constituição de cada profissão.

Os traços do perfil profissional que podem ser depreendidos dos trechos acima são úteis porque permitem discutir o estágio no que concerne à verificação do modo como o conhecimento objeto do curso provoca efeitos na escrita do aluno. A reflexão sobre os relatórios aparece como uma possibilidade a mais de questionamento sobre a formação do profissional de Letras, pois, a partir do que se entende ser o relatório de estágio mais próprio à formação do professor, serão traçados os caminhos para a sua realização e também para a realização do próprio estágio. O que propomos é que nesta etapa da formação não sejam revogados os propósitos mostrados acima, no que diz respeito ao profissionalismo e à cientificidade do curso de Letras.

 

Análise de exemplos extraídos de relatórios

Dados os propósitos deste trabalho e a extensão que este texto assumiria caso analisássemos os relatórios em sua íntegra, decidimos selecionar e apresentar trechos em que os estagiários apresentam os dados das aulas observadas. Dos relatórios estudados, verificamos as características predominantes em cada um e os distribuímos em grupos como segue:

A) Relatórios classificados como “análise”

Os relatórios assim classificados são os de maior número. Ainda que alguns deles sejam bem escritos, falham na delimitação entre objeto de análise e análise propriamente dita. Esses relatórios, em sua maioria, apresentam “discursos politicamente corretos”, em harmonia com as reflexões desenvolvidas na área da Educação; entretanto apresentam como texto uma continuidade de análises que não se originam da observação do dado específico, mas baseiam-se nas impressões da vivência educativa como um todo.

B) Relatórios classificados como “conjunto de dados”

Nesses relatórios encontramos transcrições de situações ou de falas completas, por vezes com alto grau de detalhamento, mas sem o desenvolvimento das devidas análises.

C) Relatório classificado como “ideal”

Em que há boa coleta de dados aliada à aplicação de conhecimentos adquiridos durante o curso

Para entendermos o tipo de relatório “ideal”, é preciso ressaltar que pressupomos como necessário que o estagiário esteja atento aos dados de sala de aula enquanto objeto de estudo. Sendo assim, os relatórios constituídos de dados e análise foram considerados “ideais” por investirmos na idéia de que a especialidade do profissional de Letras está no trabalho com os dados de língua de maneira não leiga e, portanto, mais científica. Isso significa dizer que os dados de aula devem ser analisados pelos estagiários com as categorias de análise e reflexão que aprenderam durante seu curso de origem.

A divisão dos relatórios nesses grupos não pode ser tomada de modo exato, uma vez que todos apresentam, em algum ponto, características daquele que classificamos em outro tipo. Isso nos faz entender que a escrita desse trabalho revela um aluno em formação. Se , por um lado, um trabalho não apresenta as características esperadas, há nele pontos específicos em que essas características estão presentes e que indicam que o processo de aprendizagem está instaurado.

A fim de exemplificar o material estudado por nós, transcrevemos trechos dos relatórios representantes das classificações explicitadas acima, discutindo-os e apontando para os locais que possibilitam a proposição de questões que privilegiam os relatórios de estágio como instrumentos de formação docente.

Vamos apenas mencionar, para refutar imediatamente, aqueles relatórios que podem ser feitos em casa, sem que o relator precise ir a uma escola, dada a superficialidade e a vagueza do texto. Há relatórios que, de tão genéricos, seriam corretos para toda e qualquer aula, tais como: “ A professora passou a lição, os alunos copiaram e depois foi feita a correção. Ou ainda: A professora pediu para fazer a leitura, explicou os exercícios, alguns alunos fizeram e outros ficaram conversando. No final da aula foi feita a correção” . Consideramos que esse tipo de anotação é absolutamente impróprio para relatar o que foi visto em aula, já que prescindem da observação direta.

Esclarecemos que os trechos escolhidos são apenas exemplos e não refletem a íntegra dos relatórios.

 

Relatório classificado como “análise”

Vamos começar citando um trecho de relatório que reflete um pouco melhor o que foi observado, que deixa entrever a situação de aula presenciada pelo estagiário, mas que carece de bastante trabalho para se constituir em um texto com maior grau de informatividade e com melhores condições argumentativas.

Trabalhar com projetos, segundo a direção, é uma forma de negar o ensino dividido por disciplinas, em que cada uma tem sua própria “gaveta” e o momento certo de ser trabalhada, que tem sido condenado à falência. Essa escola tem feito um planejamento contínuo no sentido de trabalhar a Língua Portuguesa como disciplina transversal. No entanto, o que pude ver, no caso específico da professora cujas aulas foram observadas, é que, por mais que a direção e a coordenação pedagógica da escola tentem contribuir para a formação dos professores, toda tentativa se esbarra nos problemas de formação profissional dos docentes. A professora segue o projeto sugerido pela escola, mas vê este como uma tarefa à parte. Foi proposto aos alunos que fizessem uma pesquisa sobre a região Centro-Oeste. O trabalho foi feito individualmente, ficou limitado a cópias que os alunos faziam de algum livro didático, não havendo, assim, criação alguma. A avaliação deste trabalho foi feita por meio dos conceitos de A a D, pelo que notei, os critérios eram assim: letra bonita, organização e volume do texto. Ou seja, não há interdisciplinaridade neste tipo de atividade e o trabalho com a linguagem é totalmente abandonado. Assim, o projeto acaba sendo uma tarefa a mais dentro dos conteúdos tradicionais trabalhados dentro da sala de aula.

À primeira vista pode parecer uma análise, no entanto, é necessário observar que o objeto analisado não é apresentado ao leitor. Em nenhum momento foram expostos dados concretos de sala de aula – nem transcrições de falas, nem descrições de situações de aula completas. Quando aparece no texto menção a alguma situação de aula, como em “ Foi proposto aos alunos que fizessem uma pesquisa sobre a região Centro-Oeste. O trabalho foi feito individualmente, ficou limitado a cópias que os alunos faziam de algum livro didático, não havendo, assim, criação alguma ” , essa situação é colocada conforme pareceu ao estagiário, sem sustentação em recortes mais precisos de dados coletados em sala de aula. Dado e análise vêm sobrepostos, esta última fazendo supor aquele, não havendo explicitação de um processo que parte da investigação para chegar à conclusão, ficando o leitor convocado a acreditar na validade das interpretações apresentadas pelo autor do relatório.

As características do texto obrigam o leitor a pautar-se na “boa fé” do autor para acreditar no que afirma, ao mesmo tempo em que não permite o debate com relação à interpretação apresentada, pois os dados não são expostos, eles estão subjacentes. Fica difícil, por exemplo, discordar da afirmação de que não houve “criação alguma”, pois o processo que permitiu chegar a essa conclusão não está explicitado. Poderiam ter sido apresentadas reproduções de um texto de aluno e um trecho do livro didático; isso daria ao leitor a oportunidade de defrontar-se com o dado e com a interpretação do autor do relatório, concordando ou discordando de forma mais segura.

Além disso, faltam elementos para que analisemos com profundidade a relação professor-aluno, pois não sabemos como os alunos interferem nas atividades propostas, ainda que sejam de cópia.

Quando o autor do relatório afirma que “ toda tentativa se esbarra nos problemas de formação profissional dos docentes ”, também não sabemos de que problemas exatamente ele fala, que ponto específico da formação docente está criticando. O leitor não tem como saber se essa fala é resultado da análise da vivência trazida pelo estágio ou de uma adesão irrefletida a manifestações sobre uma suposta incompetência generalizada dos professores.

Neste ponto, pretendemos chamar a atenção para a ineficácia desse discurso de crítica ao trabalho docente. Ainda que o trabalho da professora observada pelo estagiário não tenha correspondido às suas expectativas, o discurso generalista não possibilita o aprofundamento da discussão, aproximando-se mais das falas correntes, vindas de vários setores da sociedade e bastante difundidas na mídia. Se assim for, essa não é a postura esperada num processo de produção de conhecimento que a universidade deve impulsionar.

A imprecisão no tratamento do dado instiga dúvidas sobre o papel do estágio, pois nos perguntamos em que medida as categorias de reflexão vindas do curso de Letras e da Licenciatura possibilitam uma formação menos moralista e mais investigativa. Observem que o autor do relatório critica a professora observada e logo depois coloca: “A avaliação deste trabalho foi feita por meio dos conceitos de A a D, pelo que notei, os critérios eram assim: letra bonita, organização e volume do texto. Ou seja, não há interdisciplinaridade neste tipo de atividade e o trabalho com a linguagem é totalmente abandonado”.

Considerando-se que o autor do relatório critica o trabalho da professora com o livro didático, esperávamos que o mesmo pudesse trabalhar com os dados coletados de maneira mais própria ao seu papel de observador. Como exemplo, a citação acima demonstra que o autor do relatório não se preocupou em mencionar o porquê de achar que a avaliação da professora se devia à letra bonita, organização e ao volume do trabalho. E mesmo a partir da incerteza dessa constatação, manifesta na expressão “pelo que notei” – de certa forma modalizada –, afirma que “o trabalho com a linguagem é totalmente abandonado”. Precisaríamos, neste ponto, perguntar o que está sendo entendido por trabalho com a linguagem, uma vez que o próprio texto do relatório não apresenta análises calcadas em dados de linguagem. Apesar de realizar a crítica, o autor do relatório não consegue fundamentá-la na análise do dado, o que seria mais próprio a uma especialista da área de Letras. Ou seja, ele não faz diferente daquilo que critica.

Chamamos a atenção, por outro lado, para o fato de que talvez a falta de apresentação de dados corresponda a falhas na própria redação do relatório. Queremos com isso relativizar duas das diferentes habilidades necessárias a um estagiário de Letras: perspicácia na coleta de dados e também na sua transposição ao texto escrito. Sendo assim, as falhas destacadas até então podem ser resultado tanto da coleta de dados quanto da própria escrita acadêmica, o que, de qualquer modo, não compromete as análises realizadas até então; pelo contrário, somente possibilita a ampliação de sua discussão.

Vejamos outro trecho do relatório em estudo:

Nas primeiras aulas observadas, a professora estava trabalhando com pronomes. As aulas foram bastante limitadas aos esquemas tradicionais do tipo: “Complete com os pronomes adequados”, “Coloque IN para interrogativos e IND para indefinidos”. As atividades foram seguidas de uma provinha, “Avaliando o aprendizado”, onde se mantém os mesmos tipos de exercícios e a gramática é trabalhada de forma descontextualizada, com frases soltas esperando classificações.
     Na segunda semana de observação, a professora começou a trabalhar com verbos. As definições já mostram como o assunto foi tratado de forma extremamente abstrata e tradicional: “A palavra que exprime ação na frase”; “Cândida está triste - esta frase declara um estado de Cândida, portanto, existem verbos que exprimem estado”.

Em seu relatório, o autor privilegia a discussão sobre a metodologia usada pela professora em sala de aula ao trabalhar a gramática do português. Percebe-se ainda que a idéia de que se deve criticar o chamado ensino tradicional perpassa os apontamentos do estagiário.

Se considerarmos o estágio mais que uma possibilidade de vivência no ambiente de trabalho futuro, entendendo-o como possibilidade de formação do profissional, estaremos compartilhando da idéia de que o estagiário, enquanto observador, tem a possibilidade de reverter conceitos teóricos aprendidos durante o seu curso em análises que tentam esclarecer possibilidades e limites dentro de uma sala de aula. Queremos com isso colocar o relatório de estágio entre os trabalhos que exigem uma postura investigativa. Sendo assim, no caso em questão, faltou ao estagiário delimitar seu objeto de estudo a fim de cercá-lo com o maior número possível de elementos que pudessem garantir-lhe tratamento mais científico. Faltou também se desvencilhar do automatismo da oposição ao tradicional.

Poderíamos dizer que o trecho supracitado exemplifica um comentário que não pressuporia necessariamente um especialista em Língua Portuguesa. De acordo com a idéia de relatório de estágio como resultado também de projeto de pesquisa, acreditamos que a análise dos dados coletados em sala de aula não termina no comentário generalista. Se acreditarmos que um dos objetivos do relatório em questão era tratar do trabalho com gramática normativa em sala de aula, pensamos que a montagem de um corpus para análise dos dados de língua possibilitaria a discussão de diferentes tópicos, como: 1) domínio da professora em relação às normas gramaticais; 2) posicionamento dos alunos em relação ao estudo dessas normas; 3) diferenças na recepção dessas normas entre os alunos de uma mesma sala; 4) levantamento de hipóteses sobre a formação docente a partir dos dados do corpus analisado.

Sendo esse o objeto do estagiário, poderia ter discutido como o ensino da gramática normativa se deu nesta sala de aula em específico, a partir dos dados recolhidos in loco, promovendo um debate sobre tal questão e não só aceitando posicionamentos construídos por outros. Pensamos que assim o estagiário poderia de fato coletar, analisar e interpretar os dados retirados do cotidiano escolar utilizando o conhecimento próprio de sua área de atuação, fortalecendo assim o que viemos até então chamando de perfil profissional de Letras.

 

Relatório classificado como “conjunto de dados”

Diferentemente do que foi discutido no item anterior, sobre relatórios em que os dados não são evidenciados, apresentaremos aqui um trecho de outro relatório que consiste apenas em dado.

(Os alunos entram bem descontraídos e brincam com a professora quando ela faz a chamada)
Aluno: (para mim) Você é aluna nova?
Eu: Não. Eu estou fazendo estágio com a Juçara.
(O aluno me faz várias perguntas sobre a faculdade)
Prof: Eu só vou fazer uma pergunta para o 2ºA: Mas que agitação é essa?
(Era o primeiro dia do Marcos, um aluno transferido do outro 2º ano. Ele quis a transferência porque seus amigos estavam no 2ºA)
Prof: (para Marcos) A prova do livro será amanhã. Você tem a madrugada toda para ler o livro...(brinca, já que ela adiou a prova dele)
(A professora me apresenta para os alunos e todos brincam e são muito atenciosos)
A1: ‘Inch'Alla' ela seja nossa professora...(freqüentemente os alunos inserem os bordões dos programas ou das novelas atuais)
(A aula é sobre Romantismo)
Prof: Eu só vou fechar as gerações e acaba. A Segunda Geração é o ultra-romantismo. Os poetas mais famosos são Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela...
A1: Fagundes Favela? (brinca)
Prof: Ah, em Portugal não existe terceira geração. Na terceira geração as obras são mais poéticas. Vocês verão as diferenças entre as três gerações. Castro Alves é um exemplo...
A1-1: (baixinho) Quem castrou o Alves?
A1-2: O machado de Assis. (a turma dos meninos começa a rir, mas logo volta a prestar atenção na aula)

Esse fragmento de relatório é exemplo de detalhamento no registro das falas e fatos que envolveram a aula observada pelo estagiário. Chama a atenção por apresentar com minúcias um conjunto de dados no registro das situações e das falas.

Observamos no fragmento acima o recolhimento dos dados de maneira precisa: o estagiário mostrou acuidade na coleta e apresentação desses dados, possibilitando ao leitor um reconhecimento detalhado da situação de aula. Essa maneira de apresentar os dados permitiria ao estagiário realizar uma análise e uma interpretação do contexto escolar com inúmeros desdobramentos, uma vez que o dado retirado da situação concreta de aula permite fazer um interessante elo entre as teorias estudadas no curso de formação e a realidade escolar, verificando como a literatura específica ajuda a entender aquele momento de aula que é único.

No entanto, o relatório em estudo não apresenta a análise das observações feitas. Ainda que o estagiário tenha descrito detalhadamente situações e falas em contexto de aula, o mesmo não se debruçou na análise desses dados, deixando assim de fazer valer os conhecimentos adquiridos em seu curso.

Poderíamos apontar como exemplo o fato de que o estagiário não colocou sob análise a afirmação da professora de que não existe terceira geração do Romantismo em Portugal. Não se esperava aqui apenas uma crítica por parte do estagiário à afirmação da professora, mas a demonstração de que este conhece outras vertentes que apontariam para a existência de uma terceira fase na literatura romântica de Portugal. Júlio Dinis, por exemplo, teria se distanciado do que até então tinha sido feito pelos românticos Almeida Garret e Camilo Castelo Branco, como apontam Benjamim Abdala Júnior e Maria Aparecida Paschoalim: “Mas a esse pessimismo sucede a necessidade de crítica da realidade: constitui-se uma 3ª. fase romântica ou mais propriamente, pré-realista” (1982:80).

Outro elemento que poderia ter sido contemplado durante a análise é a brincadeira que os alunos fazem com o nome próprio “Castro Alves”. Os alunos percebem as mudanças semânticas decorrentes da brincadeira e, por isso, lidam de forma extrovertida com esse fato de língua. A pergunta foi respondida por outro aluno, que transformou o substantivo próprio Machado em substantivo comum. Note-se que o estagiário demonstra ter percebido a brincadeira a ponto de escrever machado com letra minúscula, já que na brincadeira a palavra foi transformada em nome de um objeto, além de fazer uma anotação entre parênteses sobre a reação provocada pela frase. Entretanto, faltou ao estagiário explicitar os mecanismos lingüísticos que provocaram o humor da brincadeira, por exemplo. Essa explicitação possibilitaria o exercício de reflexão diante do objeto de estudo, de acordo com conhecimentos próprios aos profissionais de Letras.

 

Relatório classificado como ideal, reunindo dados e análise

Para melhor ilustrar o que esperaríamos de um relatório de estágio em que já se pudesse verificar que o aluno se apresenta mais próximo do perfil esperado, apresentamos abaixo um trecho de relatório muito próximo do ideal, uma vez que a aluna recolhe dados de sala de aula e demonstra condições de análise da mesma recorrendo aos conhecimentos específicos firmados durante do curso de Letras.

Na maior parte do tempo em que se trabalha com textos, os alunos lêem e escrevem sem compreender muitas vezes o que estão lendo e escrevendo. Como exemplo desta realidade temos a aula do dia 21/05, dada pela professora Vilma, em que uma aluna não compreende uma questão.
     “Que semelhança há entre o avô, o professor e a cronista?”
     “A professora pergunta do que eles falam em comum, a menina responde que é da natureza. ‘Então qual é a resposta?', pergunta a professora, A menina conclui, ‘Natureza'. A professora faz sinal positivo com a cabeça”.
     Deste episódio podemos depreender uma série de fatores. O primeiro que vamos destacar diz respeito à própria questão, que parece confundir a figura do narrador com a da cronista. Perde-se na questão, a noção de que o autor pode inventar um narrador, que muitas vezes é bastante diverso de si próprio e, a partir dele, construir seu texto.
     O livro apresenta uma questão que coloca em igualdade de posição os personagens, o narrador e a autora. É certo que, a partir do momento em que a crônica é narrada em primeira pessoa e apresenta um “eu”, podemos tomar o narrador como um personagem, mas sem esquecer que é através da perspectiva deste “personagem” que passamos a conhecer os fatos e figuras, e este personagem, por sua vez, é construído pelo autor para a obtenção de um efeito determinado.
     Estas noções que identificam o autor por trás do texto e os processos utilizados por ele para a elaboração do mesmo, são preteridas a uma compreensão superficial da história contada e quando muito, observações sobre a construção do texto visando ainda esta compreensão.

O excerto transcrito faz referência à aula do dia 21.05, registrada no diário de campo. Para realizar a análise, a estagiária traz para o seu texto um recorte bastante específico, o qual foi apresentado entre aspas a fim de diferenciar dado e análise. A inexistência, no presente texto, do trecho de aula registrado na íntegra no diário de campo pode facilitar o surgimento de algumas dúvidas. Entretanto, pretendemos afastá-las focalizando nossa reflexão mais na forma como a análise anterior foi estruturada do que exatamente na procedência das afirmações feitas pela estagiária sobre o dado em questão.

Sendo assim, destacamos alguns procedimentos analíticos que nos parecem ter um importante papel formativo no momento em que o estagiário, por meio da escrita do relatório, debruça-se sobre a realidade por ele vivenciada.

O primeiro ponto a ser observado é que a estagiária, diante da diversidade de situações registradas no diário de campo, é capaz de realizar o recorte daquilo que lhe parece apropriado para análise. Sua atitude demonstra um amadurecimento que permite identificar nos registros que fez das aulas observadas uma passagem que se sobressaiu enquanto dado, ou seja, enquanto indício de uma realidade que, segundo a estagiária, merecia ser estudada mais demoradamente. Isso foi possível também devido ao grande volume e à heterogeneidade dos dados coletados.

A emergência desse indício revela um olhar atento, capaz de destacar, dentre fatos que poderiam ser entendidos como uniformes por um observador desinteressado ou, mesmo, despreparado, algo que se revela potencialmente esclarecedor da situação vivenciada, transformando-se, assim, em material digno de ser investigado.

Diante do dado, a estagiária utiliza-se da especificidade da sua formação para analisar a questão trazida pelo livro didático e que foi registrada em seu diário de campo. Nesse momento, de alguma forma, ela demonstra uma maneira pela qual sua formação universitária possibilita definir-se enquanto profissional de Letras, capaz de ver, nos dados coletados, manifestações lingüísticas merecedoras de serem olhadas pelo viés do conhecimento que sua própria área de formação e atuação lhe fornece.

 

Considerações finais

A possibilidade de discutir a formação docente pelo prisma da “cientificidade” é possível porque entendemos que certas atitudes docentes “acríticas” advêm de lacunas em sua formação. Nas situações em que o professor segue um programa ou um livro didático, sem nenhuma interferência nem crítica ao que lhe é oferecido, talvez demonstre a falta do trabalho de observação e análise do material em questão e de sua aplicação, alicerçado em categorias de análise advindas dos diversos domínios do conhecimento que compõem a sua formação. Neste sentido, denominamos como tratamento científico dos dados recolhidos em sala de aula a atitude de o estagiário perceber nas situações observadas uma série de falas e práticas que possibilitam a composição de um corpus para análise, o que exige o registro dos dados da maneira mais fiel possível à realidade observada e utilização adequada do embasamento próprio de sua área de formação. É claro que o recorte a ser analisado já demonstra o ideário de que partilha o estagiário; entretanto, isso não se torna um problema para a concepção de cientificidade aqui defendida, uma vez que estamos incorporando-a enquanto postura e não enquanto verdade absoluta.

O tratamento científico dos dados recolhidos por meio da observação em aula origina-se, assim, de uma postura que pode ser desenvolvida durante o estágio a partir do momento em que o conceituamos como uma atividade de pesquisa que requer a definição de um objetivo, de uma metodologia de trabalho, bem como de um quadro teórico. A concretização dessas premissas ocorre no relatório de estágio, espaço próprio à exposição do material coletado e do desenvolvimento das devidas análises. No entanto, é necessário que o estagiário conte com uma formação anterior a esse momento de sua formação, que tenha permitido construir um perfil de profissional da área.

Ao pensarmos sobre um relatório de estágio que seria ideal, podemos perguntar o quanto um relato como esse serve aos fins de cientificidade que viemos aqui defendendo como traço de especificidade do profissional de Letras. Em outras palavras, se enfocarmos o relatório não somente como uma narração pouco precisa de fatos educacionais, encaminhamos a discussão para a valorização do relatório enquanto possibilidade de formar o educador a partir da análise pontual do dado de sala de aula. Sendo assim, perguntamos se é possível entender o relatório de estágio como um trabalho de análise e interpretação de dados que tome como referencial o tratamento científico de dados coletados em situação de aula. Para tanto, devemos também questionar o que está sendo entendido como tratamento científico dos dados e como ele pode se dar durante o estágio, bem como quais as possibilidades de discussão sobre formação docente a partir deste conceito que viemos aqui chamando de “cientificidade”.

O que estamos fazendo, ao concluir este trabalho, é abrir outra discussão. Embora defendamos a pesquisa como eixo formativo não negligenciável na graduação, concluímos expondo nossa preocupação como o que tem sido chamado de pesquisa científica na universidade hoje, e que merece urgente reflexão.

 

Notas

[1] O estudo incidiu sobre 30 relatórios de estágio escritos entre os anos 2001 e 2002 para as disciplinas Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I e II, ministradas pelo Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto.

[2] Sugerimos a leitura de RODRIGUES, Maria das Graças Soares (2002). A Organização do relatório de prática de ensino de língua portuguesa – um perfil textual do concluinte de Letras. Tese de doutorado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.

[3] Pode-se dizer que essa concepção foi, entre outros, motivo para a criação do Seminário de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa da Faculdade de Educação da USP por parte dos professores que ministram a disciplina, espaço em que os estudantes apresentam trabalhos derivados de seu relatório de estágio.

[4] http:// www.mec.gov.br.

 

Referências bibliográficas

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. (1982). História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática.

BRAIT, Beth. (1995). Língua e literatura: uma falsa dicotomia. In: Revista da ANPOLL. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, n.1.

COSERIU, Eugenio (1979). Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança lingüística. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Universidade de São Paulo.

ILARI, Rodolfo; POSSENTI, Sirio. Ensino de língua e gramática. In: CLEMENTE, Elvo; KIRST, Marta. (orgs.). (1989). Lingüística aplicada ao ensino de português. Porto Alegre: Mercado Aberto.

SALOMON, Delcio Vieira. (2004) Como fazer uma monografia. São Paulo: Martins Fontes.

 

*Professor de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FE/USP.
**Mestre em Educação, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Integrante do GEPPEP – Grupo de Estudo e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise. Professora da Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL.

    

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1 Comentário

  • Link do comentário Flávia Amaral Domingo, 20 Março 2011 14:27 postado por Flávia Amaral

    Excelente artigo, contribui muito para o processo de amadurecimento dos alunos... obrigada!

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