Terça, 30 Novembro 1999 00:00

“Um conto conta duas histórias” e o “efeito nocaute”: leitura e escrita de contos por alunos do Ensino Médio

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Bruno César Martins Rodrigues

 

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo apresentar a análise dos resultados das 60h de regência realizadas no estágio das aulas de Língua Portuguesa na Escola Estadual Ernani Erh (chamada por alunos, professores e demais funcionários pela sigla EEEE), localizada na zona oeste da cidade de São Paulo, cujo objeto de ensino foi o gênero literário conto. A elaboração deste artigo tem como plano de fundo os fundamentos teóricos abordados na disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa II.

 

Palavras-chave: Conto; Escrita Criativa; Ensino Médio; Literatura.

 

Introdução


           No estágio, foram observadas as classes I e II do 1º ano de Ensino Médio em suas aulas de Língua Portuguesa, sendo que esta disciplina é dividida em Literatura e Gramática e Redação. A regência foi oferecida como oficina optativa a todo o Ensino Médio, tendo participado sete alunos do 1º EM e uma aluna do 3º EM. A implementação do Projeto ocorreu em quatro encontros de duas horas cada, no período vespertino, contraturno do período em que os alunos do Ensino Médio têm suas aulas (matutino).

O gênero literário conto foi apresentado aos alunos pelas teorias de “efeito nocaute”, de Julio Cortázar, na qual um conto conta duas histórias, de Ricardo Piglia. Quatro contos de Caio Fernando Abreu foram lidos e discutidos, direcionando a leitura a partir das teorias apresentadas. O trabalho final foi a escrita de contos pelos alunos e posterior leitura e discussão sobre os textos produzidos. Dessa maneira, buscou-se verificar em que medida os alunos compreenderam as teorias sobre o conto a partir da escrita desse gênero literário e refletir sobre essas produções no campo da escrita criativa.

 

1. O contexto escolar

 

1.1 A escola

 

A Escola Estadual Ernani Erh (EEEE) localiza-se próxima à Universidade de São Paulo. Seu horário de funcionamento é das 7h às 18h30, de segunda à sexta-feira.

A Escola Estadual Ernani Erh é composta de três prédios, denominados Bloco A, Bloco B e Bloco C. Há três entradas de acesso à escola: uma para professores e demais funcionários, no Bloco C; uma grande em frente à rampa do Bloco B, que é o portão para os alunos e uma menor no Bloco B, exclusiva para alunos que chegam atrasados e pessoas autorizadas, como os estagiários. Há, ainda, entrada ao Auditório da escola.

As aulas do Ensino Médio acontecem no Bloco C (exceto as aulas de Artes Visuais, Artes Cênicas, Música e Educação Física), que ocorrem em salas-ambiente próprias às disciplinas, entre as quais os alunos devem se deslocar, no período matutino. O prédio tem três andares. As salas-ambiente de Literatura e de Gramática e Redação são praticamente iguais; há a lousa, a mesa da professora, um armário aberto abaixo das janelas com os livros didáticos, um mural e 30 carteiras na cor cinza bem espaçadas e dispostas em filas.

 

1.2 O estágio

 

Observei as aulas de Língua Portuguesa na Escola Estadual Ernani Erh para as classes I e II do 1º ano do Ensino Médio, realizando 60 horas/aula de estágio entre os dias 27 de agosto e 07 de novembro de 2012. Utilizei 47 horas/aula para observação de aulas, 3 horas/aula para observação de Mostra Cultural dos alunos e as demais 10 horas/aulas foram realizadas no contraturno (período vespertino), no qual elaborei (2 horas/aula) e realizei (8 horas/aula) a regência em oficina optativa oferecida aos alunos de todo o Ensino Médio, conforme me foi disponibilizado pelas professoras e é padrão na escola.

Na Escola Estadual Ernani Erh, o ensino de Língua Portuguesa é dividido em duas disciplinas: Literatura, ministrada pela professora Helena C., e Gramática e Redação, ministrada pela professora Christiane F.. Cada professora tem sua própria sala, à qual os alunos deslocam-se para assistirem às aulas. Apesar da divisão do ensino de Língua Portuguesa em duas disciplinas, as professoras avaliam conjuntamente os alunos, resultando em um único conceito final atribuído a cada um deles ao final de cada trimestre, ao invés de conceitos isolados para cada uma das duas disciplinas.

Algo que chamou a atenção é que foram feitos mapas nos quais se estabelecem exatamente em que carteiras cada aluno devem sentar durante as aulas. As professoras esclareceram que essa determinação ocorre devido ao comportamento dispersivo dos alunos, o qual foi possível constatar observando as aulas.

 

1.3  Objetos ensinados

 

1.3.1   Os objetos ensinados


Nas aulas de Literatura observadas, o objeto ensinado aos alunos pela professora Helena C. foi a escola literária Trovadorismo. Paralelamente, nas aulas de Gramática e Redação observadas, o objeto ensinado pela professora Christiane F. foi processos de formação de palavras: prefixo e sufixo.

 

1.3.2   Os gestos e instrumentos didáticos


A lousa foi um instrumento didático material utilizado por ambas as professoras nas aulas observadas. A professora de Literatura transcreveu o poema provençal “Canção de amor cantar eu vim”, de Arnault Daniel, em duas partes (cada uma em uma aula), pedindo aos alunos que copiassem o poema. A professora de Gramática e Redação, por sua vez, escreveu possíveis respostas para algumas das questões da avaliação corrigida sobre processos de formação de palavras: prefixo e sufixo. Por meio desse instrumento didático - escrevendo na lousa - as professoras institucionalizaram os objetos de ensino abordados nas aulas.

Após esse gesto didático empregando, ambas as professoras utilizaram o dispositivo didático de ordem discursiva par pergunta-resposta, fazendo perguntas aos alunos acerca dos conteúdos abordados e complementando suas respostas. Nas aulas de Literatura, o dispositivo didático de regulação ocorreu por meio da “vistagem” dos cadernos dos alunos; nas aulas de Gramática e Redação, os estudantes fizeram prova.

Outro gesto profissional comum foi a utilização da memória didática, fazendo com que os alunos recordassem informações prévias sobre os objetos de ensino.

  

1.3.3  As atividades

 

Nas aulas de Literatura observadas, as atividades propostas pela professora foram leitura e discussão em classe do poema provençal “Canção de amor cantar eu vim”, de Arnault Daniel, como tarefa para casa a ser feita no caderno (ditada): “Explicar o conteúdo de cada uma das estrofes. Identificar e explicar as imagens ou comparações do texto”. Nas aulas de Gramática e Redação observadas, a professora realizou com os alunos a correção e a discussão sobre dúvidas da prova sobre processos de formação de palavras: prefixo e sufixo, bem como solicitou a eles que revisassem a prova em casa.

 

2  O Projeto Didático “Gênero literário: conto - teorias do conto, Caio Fernando Abreu e oficina de escrita criativa”

 

2.1  Opções e justificativas

 

A regência para estagiários na Escola Estadual Ernani Erh é oferecida por intermédio de oficinas optativas aos alunos no contraturno em que eles estudam, sempre organizadas por ciclos – no caso, o Ensino Médio pode participar das oficinas optativas no período vespertino, pois sua grade horária normal na escola ocorre no período matutino. Diante desse caráter específico, que extrapola a possibilidade de uma mera continuidade entre as aulas da série acompanhada, o 1º ano do Ensino Médio, e com a informação disponibilizada pelas professoras de que os alunos têm apresentado muitas dificuldades, tanto na interpretação de textos literários quanto na escrita, escolhi focar minha regência no gênero literário conto. De qualquer maneira, a professora de Gramática e Redação iniciou um ciclo de aulas sobre textos narrativos em 28 de setembro de 2012 com os alunos do 1º ano do Ensino Médio.

A oficina em que realizamos a regência ocorreu em quatro encontros, realizados às quartas-feiras, de 26 de setembro a 17 de outubro de 2012, no período vespertino. Apresentei as teorias sobre o gênero literário conto a partir de dois escritores argentinos que escreveram também no âmbito da crítica literária: Julio Cortázar e Ricardo Piglia; também propiciamos a leitura e a discussão sobre alguns contos do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu, partindo das teorias apresentadas, e a atividade final proposta foi que os alunos escrevessem um conto, a ser lido e debatido entre todos.

Os autores Cortázar e Piglia foram escolhidos por não serem apenas críticos literários, mas efetivamente escritores de literatura; dessa forma, suas teorias estão embasadas na experiência da escrita do conto, que foi proposta aos alunos. Quanto à leitura de contos de Caio Fernando Abreu, essa opção se deve ao fato de o autor ser mais recente na literatura brasileira (publicou seus livros entre as décadas de 1970 e 1990), que tem sido cada vez mais lido tanto pelo público leigo como pela crítica literária especializada; além disso, entendo que suas temáticas (o anonimato urbano, as diversas formas de amor e de sexualidades, o isolamento do indivíduo, a repressão política), bem como sua linguagem despojada, podem apresentar-se atrativas aos alunos do Ensino Médio.

 

2.2    Descrevendo o objeto de ensino

 

O conto foi descrito a partir das teorias de Julio Cortázar e Ricardo Piglia sobre esse gênero. Para Cortázar, existem vários gêneros literários, como o romance, a novela, o conto e crônica. O conto “é um gênero pouco classificável” (CORTÁZAR, 2008, p.150). Assim, esse gênero literário é comparado pelo autor ao romance. Enquanto o romance é mais longo, com uma trama complexa, que pode se estender por centenas de páginas, cujo tempo da narrativa pode estender-se desde um dia a semanas, meses, anos, décadas ou mesmo séculos, várias ações e ideias podem desenvolver-se ao longo de um romance, o conto apresenta-se mais curto, com uma trama “simples”; ou seja, narrável em poucas páginas, cujo tempo da narrativa pode ser também extremamente curto: alguns minutos, um dia, semanas, meses – o que não impede que a narrativa do conto abranja espaços se tempo maiores –, mas, geralmente, o que se desenvolve no conto é uma ideia e/ou uma ação.

A grande imagem que Cortázar propõe é a do romance comparável ao cinema e o conto à fotografia (CORTÁZAR, 2008, p.151), pois um filme é em princípio uma “ordem aberta” romanesca, enquanto uma fotografia é o recorte de um momento, um fragmento, como o conto:

Enquanto no cinema, como no romance, a captação [da] realidade mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não se excluem, por certo, uma síntese que dê o ‘clímax’ da obra, numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a ação que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. [...] [no] combate que se trava entre um texto apaixonante e leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por knock-out. (CORTÁZAR, 2008, p.151-152)

 

A ideia do nocaute de Cortázar foi aliada nas teses sobre o conto de Ricardo Piglia, para quem esse gênero literário sempre conta duas histórias:

Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias. [...] O conto clássico narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2. A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de modo elíptico e fragmentário.” (PIGLIA, 2004, p.89-90)

 

A tese de que o conto é um relato que guarda outro relato, secreto, também foi apresentada aos alunos:

O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de modo enigmático. A estratégia do relato é posta a serviço dessa narração cifrada. Como contar uma história enquanto se conta outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.

Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes.” (PIGLIA, 2004, p.91)

 

Após a apresentação sobre o gênero literário Conto, foram lidos nos dois primeiros encontros na oficina optativa os contos “Sob o céu de Saigon”, “Para uma avenca partindo”, “Retratos” e “Aqueles dois”, de Caio Fernando Abreu. O autor foi apresentado conforme a dissertação de Mestrado de Danilo Maciel Machado, O amor como falta em Caio Fernando Abreu:

Um biógrafo da emoção” [como o chamou certa vez a escritora e amiga Lygia Fagundes Telles] nasceu no Rio Grande do Sul, em 1948, na cidade de Santiago do Boqueirão, bem próximo à Argentina. Caio Fernando Loureiro de Abreu descreveu o Brasil contemporâneo quase como se fotografasse a fragmentação da atualidade. Ainda jovem, mudou-se para Porto Alegre, onde publicou seus primeiros contos. Cursou Letras e depois Artes Dramáticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas abandonou ambos os cursos para dedicar-se ao trabalho jornalístico no Centro e Sul do país, em revistas como Pop, Nova, Veja e Manchete. Foi editor de Leia Livros e colaborou nos jornais Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. No ano de 1968 — em plena ditadura militar —, foi perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tendo se refugiado no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas (SP). Considerado um dos principais contistas do Brasil, sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma temática própria. Em 1973, querendo deixar tudo para trás, viajou para a Europa. Primeiro, começou pela Espanha, transferiu-se para Estocolmo, depois Amsterdã, Londres e Paris. Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, sem parecer caber mais na rotina do Brasil dos militares: tinha os cabelos pintados de vermelho, usava brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. Assim andava calmamente pela Rua da Praia, centro nervoso da capital gaúcha. Em 1983, transferiu-se para o Rio de Janeiro, e em 1985 passou a residir novamente em São Paulo. Voltou à França em 1994, a convite da Casa dos Escritores Estrangeiros. Lá, escreveu Bien Loin de Marienbad. Ao saber-se portador do vírus da AIDS, em setembro de 1994, Caio Fernando Abreu retornou a Porto Alegre, onde voltou a viver com seus pais. Pôs-se a cuidar de roseiras e de girassóis, encontrando um sentido mais delicado para a vida. Foi internado no Hospital Menino Deus, onde faleceu no dia 25 de fevereiro de 1996 (MACIEL, 2006, p.7).

         Após a discussão do gênero literário e leitura e discussão dos contos de Abreu, foi proposta a escrita de um conto pelos alunos. Eles realizaram a escrita para o terceiro e o quarto encontros, entregando a tarefa antecipadamente, por intermédio das professoras, para que eu os lesse antes dos encontros, nos quais lemos e discutimos os contos escritos.

 

2.3  Dispositivos didáticos

 

Os dispositivos didáticos pretendidos para essa regência, cuja produção foi uma oficina optativa aos alunos do Ensino Médio, foram de ordem discursiva e de ordem material. O dispositivo de ordem material foi a fotocópia dos contos de Caio Fernando Abreu selecionados para leitura, disponibilizados no primeiro encontro. O dispositivo de ordem discursiva foram discussões com os alunos sobre as teorias do conto de Cortázar e Piglia, sobre os contos de Caio Fernando Abreu e sobre os contos escritos pelos próprios alunos.

 

3 “Um conto conta duas histórias” e o “efeito nocaute”: leitura e escrita de contos por alunos do Ensino Médio


Rildo Cosson (2006) defende que a literatura deve ser encarada principalmente como experiência e não como um mero conteúdo a ser avaliado. Assim, a avaliação tem como objetivo maior “engajar o estudante na leitura literária e dividir esse engajamento com o professor e os colegas – a comunidade de leitores.” (COSSON, 2006, p.113).  Para tanto, é importante o “investimento em atividades como debates, exposições orais e outras formas de linguagem oral em sala de aula são fundamentais, ou seja, a discussão é uma atividademz tão importante quanto as que estão centradas na leitura e na escrita.” (COSSON, 2006, p.114-115).

Diante dessa perspectiva, na regência, buscamos privilegiar a discussão com os alunos em todas as fases: desde a apresentação das teorias sobre o conto conforme Julio Cortázar e Ricardo Piglia, passando pela leitura dos contos de Caio Fernando Abreu e pela leitura dos contos produzidos pelos alunos.

Normalmente o conteúdo literário, independentemente do tipo ou escola, é passado de forma extremamente segmentada e sem emoção para os estudantes. Sob esta perspectiva, é comum termos um alunado que não gosta ou não se interessa por literatura e, na maioria das vezes, realizam leitura apenas como um conteúdo para ser decorado e avaliado. A literatura não é uma ciência exata e sim uma ciência humana, passível de ser interpretada e sentida de diferentes maneiras.

Pensando desta forma, realizamos diversas discussões com os alunos, nas quais estes se apresentaram engajados e curiosos, principalmente nas leituras de seus próprios contos, mesmo que se dispersassem eventualmente em conversas paralelas. Creio que isso ocorreu pelo fato de os estudantes serem convidados a partir do estado de simples aceitação de conteúdo para o papel de agentes formadores do próprio conhecimento, podendo expressar suas opiniões.

Isso também foi muito importante em nossa posição como professor, pois, ao discutir com os alunos, ampliava nossas formas de pensar literatura e sobre os contos lidos. É importante lembrar que o aprendizado não é algo unidirecional de professor para estudante; o processo de ensino-aprendizagem pode acontecer tanto do professor para o aluno quanto o contrário: “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1998, p.25).

Apesar de apenas verbalizadas e não expostas em textos ou em lousa, as teorias de Cortázar e Piglia sobre o conto foram continuamente recuperadas pela memória didática na leitura dos contos escolhidos de Caio Fernando Abreu. Um dos exemplos mais marcantes para os alunos foi um dos contos lido no segundo encontro, “Aqueles dois”, no qual se pode identificar que há duas histórias: a relação afetiva entre os personagens Raul e Saul e o “deserto de almas” que é a repartição pública na qual os personagens trabalham; o “efeito nocaute” se dá pela surpresa da inversão do “felizes para sempre” por parte do narrador, que declara serem os funcionários da repartição pública “infelizes para sempre” após a demissão de Raul e Saul (cf. ABREU, 2009, p.107-117). Na leitura dos contos de Caio Fernando Abreu, houve muito interesse por algumas alunas, sobretudo no conto indicado; uma delas disse que os personagens Raul e Saul eram “tão fofos”, enquanto outra aluna percebeu que a grande questão do conto era o preconceito vivido pelos personagens. A temática abordada, muitas vezes, gera diversas polêmicas e discussões. Foi possível perceber, no entanto, que os alunos possuíam uma mente livre de preconceitos, e ao contrário do que se poderia esperar, queriam que os personagens ficassem juntos, algo que fica subliminar no conto.

A própria tarefa final, “uma forma particular de atividade que pode agregar-se à implementação de um dispositivo didático, implicando uma resposta sob forma de uma atividade dirigida para um objetivo, destinada aos alunos” (SCHNEUWLY, 2009, p.35 – tradução: Sandoval Nonato Gomes-Santos), realiza a memória didática tanto das teorias apresentadas no primeiro encontro quanto dos contos de Caio Fernando Abreu lidos. Eis a tarefa, conforme foi presentificada ao ser escrita em lousa:

Atividade realizada em aula: Considerando as teorias sobre o gênero literário conto propostas por Julio Cortázar e Ricardo Piglia, e após a leitura dos contos de Caio Fernando Abreu, escreva um conto de tema livre. Posteriormente, leremos os contos de todos os alunos conjuntamente.

 

Da forma que a tarefa foi formulada, sua proposta também projeta uma memória didática para o futuro, uma vez que anuncia a leitura coletiva dos contos dos alunos.

Pelo caráter de oficina optativa oferecida a alunos do Ensino Médio, e também na crença do valor da literatura mais como experiência que como objeto de avaliação, não foram atribuídos notas ou conceitos aos contos produzidos pelos alunos. Lemos em voz alta cada conto nos dois últimos encontros e, nas discussões com os alunos, buscamos fazê-los passar das impressões mais gerais (“gostei do conto dele” etc.) para a percepção de se eles utilizaram as teorias apresentadas na construção das narrativas.

No conto “Breve história”, escrito pela aluna Júlia A., do 3º ano do Ensino Médio, é narrada uma história que oscila entre uma narradora em primeira pessoa, chamada Thalita, e um narrador em terceira pessoa onisciente que conta o que se passa com o personagem Niall na ausência de Thalita. Trata-se de uma história de amor à primeira vista, interrompida bruscamente pela morte da personagem Thalita em um acidente de avião. Propus à aluna autora de “Breve história” que ela poderia dar pistas ao longo da narrativa de que a personagem vai morrer no final, o que formaria as duas histórias segundo a teoria de Piglia: uma história de amor e uma história de morte súbita, potencializando a tentativa de “efeito nocaute” cortazariano da eterna espera de Niall pela falecida Thalita. Elogiei o “fôlego” da aluna para narrar, pois, apesar do título, foi o conto mais longo entre todos os apresentados pelos alunos na oficina.

Os demais contos que comento a seguir foram todos escritos por alunos do 1º ano do Ensino Médio, série cujas aulas de Literatura e de Gramática e Redação observamos ao longo do estágio na Escola Estadual Ernani Erh.

“Vida louca”, escrito pela aluna Yara S., utiliza um narrador em terceira pessoa onisciente para narrar a história de uma prostituta que atende um cliente o qual não busca sexo, mas companhia e afeto. Avaliamos que houve uma tentativa de contar duas histórias (sexo por dinheiro e falta de afeto/afeto), como propõe Piglia, mas que elas apareciam muito “separadas” uma da outra. De qualquer maneira, consideramos que o conto consegue o “efeito nocaute” com seu final, no qual a prostituta pergunta ao cliente se ele voltaria e ele responde que sim. Também achamos importante comentar que o título é muito vago.

Já “Salafrária”, escrito pelo aluno Plínio P., apesar do título que entrega o segredo do conto, consegue contar as duas histórias de maneira interessante. O narrador em primeira pessoa começa queixando-se de como as pessoas apaixonadas ao seu redor o irritam, até que ele mesmo apaixona-se por uma garota da classe que nunca havia visto antes e que “parece uma garota tímida”. Há de se notar o recurso das rimas internas nos parágrafos para mostrar a mudança de perspectiva do narrador em relação à paixão. Essa primeira história, a do rapaz que se torna um apaixonado por uma garota aparentemente tímida, concorre com uma segunda história oculta, revelada ao final; na verdade a garota está se relacionando com outro homem, afinal, ela “nada tinha me prometido”. Além do “efeito nocaute”, o aluno também evidencia a ideia de Cortázar do conto ser comparável a uma fotografia, quando encerra: “Agora eu sei que não passou de uma cena” – uma cena, um momento, um recorte na vida.

Outro conto que consegue realizar uma segunda história oculta pela primeira é “Um dia diferente”, escrito pela aluna Sandra J. Uma narradora em primeira pessoa conta sobre o desaparecimento de seu gato e a busca por ele deixando cartazes com seu telefone, até que um homem misterioso telefona e diz estar com o bichinho, que “é bem quente” – pista para a segunda história: “Então, ele me entregou sua jaqueta feita por [sic] pele de gato.”, revelando que o homem misterioso matara o gato e fizera uma jaqueta com ele, alcançando um “efeito nocaute” interessante, até por não dizer explicitamente que o homem matou o gato para fazer a jaqueta. Sugeri à aluna suprimir a última frase do conto (“Ali estava eu, sozinha e sem gato.”) para aumentar o impacto do final. Também destaquei que “Um dia diferente” é um título muito vago.

Mas o conto mais gratificante de ler foi “As aparências enganam!”, escrito pelo aluno Fábio G.. Consideramos este o mais gratificante de ler porque o aluno, em uma primeira tentativa, não havia escrito um conto, mas um texto em tom de desabafo sobre a rotina escolar e do posterior “mundo do trabalho”. Convidamos o estudante a utilizar aquele desabafo em uma narrativa, lembrando as teorias propostas. Apesar de o título entregar, de certa maneira, o segredo do conto, duas histórias ocorrem: a aparente, do personagem Boby, que se interessa por Alice, garota vista “conversando com outro rapaz e ela estava muito feliz e sorridente”; e a história oculta, só revelada no final, de que esse rapaz com quem ela estava conversando trata-se de seu irmão, e não de um rival para Boby: “Alice sorriu intensamente e de despediu de Boby, disse ela – ‘Até amanhã! Agora vou com meu irmão para casa![’]”. Sugerimos apenas ao aluno, como no caso da aluna que escreveu “Um dia diferente”, suprimir a frase final do conto (“Nada poderia ser tão bom para Boby, que agora, teria o caminho livre para conquistar a sua garota.”) para aumentar o impacto da revelação final.

Mais duas alunas do 1º ano do Ensino Médio participaram da oficina e escreveram contos, mas elas queriam modificá-los antes de entregar e acabaram esquecendo-se de fazê-lo. Uma pena, pois foram contos também muito interessantes, nos quais as teorias de Cortázar e de Piglia poderiam ser aplicadas.

Em um primeiro momento, quando propus a escrita de um conto aos alunos, eles se apresentaram tímidos, queriam que os contos fossem anônimos. Porém, como alguns alunos entregaram os contos para o terceiro encontro e outros para o quarto e último, isso inviabilizou o anonimato. De qualquer maneira, conforme lemos seus contos em conjunto, tanto eu quanto os próprios alunos fomos privilegiando os aspectos positivos de cada conto produzido e as discussões foram pautadas por um tom de respeito à escrita de cada um, sem perder de vista as teorias propostas. Mais uma vez as discussões mostraram-se positivas para o aprendizado. Os alunos destacaram pontos que mostraram que os contos poderiam ter diversas interpretações.

Além disso, uma aluna perguntou, sinceramente curiosa a meu respeito: “Você não vai ler um conto seu também?”. Diante dessa curiosidade, lemos o seguinte conto, que eu havia escrito poucas semanas antes de iniciarmos nossa oficina:

Photoshop

D., repito o nosso pôr-do-sol, repito-o, trago-o, estrago-o, silencio aquela confissão porque ela não te interessa, recorto no colo uma fotografia fumegante, esfrio o sentimento no photoshop até esquecer as palavras que trocamos, penso tenso sobre nós desatando, a tela me lambe até se apagar, danço contigo, canso dos detalhes, deleto?

 

Os alunos gostaram muito do conto, principalmente, pelo poder de concisão. Destacamos que minha intenção nessa narrativa breve era contar duas histórias: a da manipulação da fotografia pelo programa de computador Photoshop como a história mais aparente e a da dúvida do narrador em continuar em um relacionamento amoroso como a história oculta; o efeito nocaute pretendido com o final “deleto?” traz uma indagação que pode referir-se tanto à fotografia quanto ao relacionamento. Acredito que ter compartilhado um conto de minha autoria contribuiu para o clima de confiança que se estabeleceu entre mim e os alunos.

 

 Considerações Finais

 

Avalio a oficina optativa “Gênero literário: conto - teorias do conto, Caio Fernando Abreu e oficina de escrita criativa” que ofereci aos alunos do Ensino Médio como bem sucedida pelos seguintes motivos:

- a oficina buscou, de acordo com a proposição de Rildo Cosson, lidar com a literatura, principalmente, como experiência e não como um mero conteúdo a ser avaliado, tanto na leitura e discussão dos contos de Caio Fernando Abreu como dos contos produzidos pelos alunos;

- a partir da leitura e da escrita do gênero literário conto, a oficina propiciou aos alunos os exercícios de interpretação e de produção de textos, atividades nas quais os estudantes apresentarem dificuldades;

- pôde-se perceber que a atividade de ter seus contos lidos e discutidos engajou todos os alunos a participarem ativamente da oficina.

Dessa forma, foi possível realizar o que propõe Beth Brait (2010) acerca da literatura:

A literatura é um lugar estratégico, ainda que não seja o único, para a observação das relações entre linguagem cotidiana e criatividade. Ela constitui uma das possibilidades de exploração da língua, como forma criativa e atuante de mobilização de palavras e estruturas linguísticas, apontando para inúmeros fins, para diferentes propósitos. (BRAIT, 2010,
p. 41)

 

Apenas me indago, já um pouco distanciado da vivência com os alunos, se não terei imposto demais as teorias sobre o conto de Cortázar e de Piglia. Talvez, mas essas teorias foram norteadoras na escrita dos alunos, fazendo-os produzir narrativas interessantes.

 

Referências

ABREU, C. F. Para uma avenca partindo; Retratos; Sob o céu de Saigon; Aqueles dois. Além do ponto e outros contos. Seleção e organização: FISCHER, L. A. São Paulo: Ática, 2009, p.45-49, 88-96, 97-102, 107-117.

BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010. CORTÁZAR, J. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio. Tradução: Davi Arriguici Jr.; João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.147-163.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1998.

MACHADO, D. M. O amor como falta em Caio Fernando Abreu. Dissertação de Mestrado. Rio Grande: Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), 2006. Orientadora: Nea Maria Setúbal de Castro.

PIGLIA, R. Teses sobre o conto. In: Formas breves. Tradução: MACEDO J. M. M. de. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.87-94.

SCHNEUWLY, B. Le travail enseignant. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (Orgs). Des objets enseignés en classe de français – Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, 2009, p.29-43. Tradução GOMES-SANTOS S. N. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2011 [Uso restrito].

   

Bruno Cesar Martins Rodrigues

Mestrando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP, sob orientação do Prof. Dr. Emerson da Cruz Inácio, recebendo beneficio de bolsa CAPES cofinalizando a escrita da dissertação Kid & Dama da Noite: experiência do corpo em personagens de Al Berto e de Caio Fernando Abreu (título provisório). (A defesa está prevista para primeiro semestre de 2014. Licenciado pela FE-USP (2012). Bacharel em português pela Letras da FFLCH-USP (2010). Atuação nos seguintes temas: literatura brasileira, literatura portuguesa, literatura contemporânea, comparatismo literário, gêneros textuais, teoria queer.


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