Número 6 - Apresentação

 

Os textos a seguir reconstituem e registram traços de um real vivido: práticas de ensino da língua portuguesa com que estiveram envolvidos concluintes do Curso de Licenciatura em Letras da Universidade de São Paulo (USP) por ocasião da realização de sessenta horas de estágio, componente curricular integrado à disciplina Metodologia do Ensino de Português I (MEP I), ofertada no primeiro semestre do ano acadêmico[1].

O gesto de agora poder ordená-los em uma coletânea é uma tarefa possível graças à associação não-óbvia de um pressuposto com um dispositivo didático, presentes nos objetivos da disciplina MEP I:

i) o pressuposto que toma o confronto com práticas efetivas de ensino como ponto de partida e de chegada do processo de formação para a docência, e

ii) o dispositivo didático que toma o gênero artigo acadêmico – produzido com base em anotações registradas no estágio – como mecanismo de iniciação à investigação da linguagem em ambientes de ensino e aprendizagem.

Constituíram-se em objetivos da disciplina:

1. Refletir sobre teorias e práticas do ensino de Língua Portuguesa. 2. Fornecer subsídios metodológicos para o ensino de Língua Portuguesa. 3. Aproximar ensino e pesquisa, com o objetivo de incentivar a produção e a renovação de meios e recursos para o ensino de Língua Portuguesa. 4. Viabilizar e orientar práticas de estágio

Tais objetivos foram traduzidos em um conjunto de temáticas ordenadas em torno de três grandes eixos: inicialmente propôs-se a tematização dos contornos sócio-históricos e ideológicos de constituição da escola como agência de letramento, e da disciplina língua portuguesa na história da escolarização no Brasil, a fim de problematizar os usos e práticas de linguagem que ganham corpo nos vários espaços e tempos da escola e os gêneros textuais pelos quais se constituem os múltiplos letramentos passíveis de serem construídos no seio da prática escolar.

Na sequência desse primeiro eixo temático propôs-se discutir sobre o trabalho do professor de português, seu projeto didático, configurado no modo com que implementa as sequências de ensino, nos gestos que aciona e nos instrumentos que utiliza em seu ofício cotidiano.

Por fim e complementarmente aos demais eixos, propôs-se problematizar as formas e o funcionamento da linguagem como objeto de ensino, enfatizando-se o lugar dos gêneros textuais e das práticas de letramento escolares no trabalho docente, na sequenciação didática em que eles (gêneros e práticas) adquirem o estatuto de objetos objetos ensinados.

A seguir, a grade de conteúdos propostos no Curso.


I. A invenção da escola como agência de letramento

1.1. A disciplinarização da língua portuguesa na escola brasileira

1.2. Cultura escolar e letramentos locais : gêneros escolares e gêneros escolarizados

 

II. Trabalho docente e Projeto didático

2.1. Sequência de ensino e objeto de ensino

2.2. Gestos didáticos

2.3. Instrumentos didáticos

 

III. Práticas de linguagem e gêneros textuais

3.1.  Prática de leitura-escuta de textos

3.2.  Prática de produção de textos escritos, orais e multissemióticos

3.3.  Prática de análise (da) e reflexão sobre a língua: objetos gramaticais


Como trabalho final da disciplina propusemos aos licenciandos a elaboração de um artigo acadêmico em que pudessem explicitar a apropriação, por meio da descrição e análise de registros gerados no estágio, de conceitos e dispositivos de investigação selecionados com base nas discussões propostas no Curso.

Julgávamos que a produção de um artigo acadêmico permitiria, por hipótese, um distanciamento mais incrementado em relação às práticas didáticas acompanhadas, uma vez que exigiria dos alunos não somente a ordenação em um relatório do conjunto de notas produzidas no estágio, mas a seleção de um fenômeno particular dessas práticas e sua problematização. Nessa direção, o artigo revelar-se-ia dispositivo potente de avaliação dos modos de apropriação pelos estagiários de aportes teóricos convocados e problematizados por ocasião das discussões na universidade mediadas pelo professor.

A produção do artigo deu-se progressivamente ao longo do Curso e consistiu em três grandes tarefas:

i) a descrição do contexto escolar em que se efetivou o estágio, enfatizando-se o conjunto de práticas de letramento e textos materializados nesse contexto e o perfil da(s) turma(s) e do professor(es) acompanhado(s), além dos modos com que o ensino de língua portuguesa aparece configurado na documentação escolar (projetos de ensino, programas e currículos etc.);

ii) a descrição das práticas de ensino-aprendizagem em sua dimensão particularmente didática, o que implica a descrição de cinco componentes relativos ao trabalho docente: objetos de ensino, práticas de linguagem, gestos didáticos, instrumentos didáticos, sequências de ensino;

iii) a eleição e análise de um fenômeno específico relativo às práticas didáticas acompanhadas, o que exige tanto a convocação de referências bibliográficas trabalhadas no Curso, quanto a ancoragem da análise em dados gerados durante o acompanhamento das aulas.

Ao revelar modos diversos de apropriação de saberes e práticas com que se confrontaram os licenciandos, o conjunto de artigos aponta para as possibilidades metodológicas do uso de um dispositivo didático particular – a produção do gênero artigo acadêmico – como modo possível de promover a flexibilização das fronteiras implicadas no famigerado binômio teoria-prática na formação, ou seja, um dos modos possíveis de contemplar a dimensão investigatória que se reivindica constitutiva da prática do estágio em docência.

O conjunto dos textos está ordenado em três grandes temáticas conforme os fenômenos de que as análises se ocuparam. Um primeiro agrupamento problematiza as condições materiais em que se atualiza o trabalho docente. Em um segundo agrupamento, o trabalho do professor de português é considerado sob a ótica das práticas de leitura e produção escrita. Por fim, o terceiro agrupamento focaliza as relações entre esse trabalho e as práticas de ensino da oralidade.

Trata-se de textos que acabam finalmente por registrar um pequeno intervalo, o final, do percurso de formação acadêmica de um grupo de licenciandos em Letras: as vozes que ressoam, os estilos de escritura, os traços do real reconstituídos, o exercício de interpretação dos fixos e fluxos das práticas didáticas… Tudo, nestes textos, erige-se em sabor-saber das coisas, da vida que se recompõe (ou se pode sempre reconstituir) nos desvãos das práticas escolares.

A meu ver, um bom modo de aproximação do mundo da docência.

 

Sandoval Nonato Gomes-Santos

São Paulo, Butantã, USP, Faculdade de Educação,

novembro de 2011, quase verão.



[1] Além dessas, outras sessenta horas de estágio são obrigatórias no âmbito da disciplina Metodologia de Ensino de Português II, que sucede a de que tratamos aqui e é ofertada no primeiro semestre do ano acadêmico.

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