Por um outro ensino

 

Dirceu Villa de Siqueira Leite
João Batista Vieira Jr.

 

Resumo
Projeto desenvolvido, ou melhor, vivido. Nada que o deixe estanque no passado: traz o conteúdo corporificado, mostra prática significativa e significada, respeita as pessoas do processo educativo – e não os protocolos pertrificados – sem ingenuidade e consumismo pedagógico; por um “outro ensino” tira da cadeira e incomoda com sutileza, propõe ação viva e descortina a escola da fumaça reabrindo suas janelas de cintilação.

*

O telefone sem fio. Essa é uma brincadeira em que dizemos umas palavras no seu ouvido e você passa para outra pessoa, que, por sua vez, passará para outra que passará para outra etc., até que chegue ao fim e alguém diga em voz alta o que acha que ouviu. O resultado é quase sempre o mesmo: não sobrou nada do que havia no início.

Literatura tem sido uma coisa impenetrável para a maioria das pessoas porque é muito comum que elas pensem: “Preciso entender o que o autor quis dizer”, ou algo como “Preciso saber o que está por trás daquilo que ele diz”. O medo associado à incapacidade de compreender não deve ser desprezado.

O primeiro caso não põe em questão um escritor, pois um escritor nunca “quer dizer”; ou ele diz ou tudo está acabado, e talvez ele venda suas coisas e vá viver num retiro para pôr as idéias em ordem, talvez ele se torne um filósofo, pouco importa. O fato é que ele NÃO É um escritor.

O segundo caso nos apresenta uma metáfora? Não. Uma metáfora não esconde nada atrás, ela é o coração de uma verdade, uma síntese drástica, poupando o leitor de ficar lendo dúzias de linhas explicativas e tediosas, além de provocar o efeito de uma sensação. Há a alegoria, mas a alegoria ou se torna explícita por fazer uma coisa abstrata assumir vida como gente, ou se refina por processos de acumulação de significados combinados. Além do mais, faz parte do uso retórico inscrito num recorte cultural quase específico, e a maioria de leitores não especialistas não vai dar com esse tipo de coisa a toda hora (embora, segundo acreditamos, talvez fosse mais proveitoso que as pessoas passassem a ter outros hábitos de pensamento).

Ficamos surpresos que ninguém tenha se oferecido para prestar esclarecimentos tão simples; na verdade, não. Há muitas pessoas ocupadas com crítica literária e novelos de lã.

Há uma figura de linguagem chamada elipse, que serve à ironia seus melhores pratos, e deve fazer sentido pela ausência. Mas a elipse não é uma idiotice de simplesmente se suprimir qualquer coisa. Há a intenção deliberada de um efeito de cumplicidade quando o sentido completo é enfim restituído. A ironia exige que o leitor compareça com seu cérebro ou nada pode ser feito, nem pelo poema, nem pelo leitor. Infelizmente, a literatura continua no esquema do telefone sem fio entre a crítica e o público, para exumação ou exegese, o que é, convenhamos, chato pra danar. Mas experimentamos a ironia em cima de classes de aula da zona Leste, uma delas totalmente desacreditada pelos professores.

A ironia é, talvez em alguns exemplos encontráveis, o tipo de literatura mais enroscado que existe. Entender os poemas de Jules Laforgue, alguns de T.S.Eliot, e as elegias de Propércio são desafios para quem tem um nível respeitável de leitura. Entender esses poemas é fundamental para fruí-los; se você não entende, não acha graça. Há aqueles em que a ironia simplesmente desanca o personagem tratado, e Corbière, autor francês do fim do século dezenove, é mestre nisso, e chamava Victor Hugo de garde nationale épique, e Vigny, inventor da larme écrite.

O caso é que levamos um poema pré-fabricado a partir de um parágrafo de prosa, que resultou num epigrama irônico. A nossa intenção era verificar, com base num trabalho que os alunos entregariam ao fim da aula, a competência que tinham em decifrar e desenvolver a ironia e, mais além, se se davam conta das diferenças entre poesia e prosa, deixando de lado as evidências gritantes da forma no papel (coisa contestada por poetas há mais de um século) e rima (que precisa ter algum sentido para acontecer, desmerecida como enfeite, vista como bijuteria).

Há uma vantagem em se trabalhar com textos pequenos com os alunos: você não mata ninguém de sono nem tédio. Não se deve, entretanto, usar material de segunda-mão; apenas textos bons o bastante para valerem o seu tempo e o dos alunos na sala de aula. Sem adaptações, paráfrases, e todo esse gênero de enrolação. Kafka tem uma história que não passa de dez linhas e vale toda uma discussão a respeito do que é um conto, e, no limite, uma narrativa. Epigramas são pequenos e chamativos, porque, em geral, ou são malignos ou gnômicos, ou seja, formulares, sentenciosos sobre vida & morte, e tudo que preenche esse pequeno espaço.

É preferível um capítulo, dois ou três, do Quixote, do que uma adaptação inteira. O Quixote é perfeitamente legível se se usarem alguns capítulos em separado, que concluam uma aventura, trazendo o que é importante, todo o estilo de Cervantes, que, assim como Rabelais uns séculos antes, estava plasmando a prosa moderna, e se serve de todos os gêneros antigos, desde o idílio pastoral em versos (exatamente como se lê em Virgílio) até o comentário, em prosa. O primeiro capítulo de São Bernardo, de Graciliano Ramos, funciona para uma discussão em torno desse pacto de credibilidade entre escritor e leitor que é a verossimilhança; e assim por diante. O fundamental é usar os próprios autores, sem intermediários.

(Um pequeno parênteses. Está claro, pela proposta, que estamos lidando com uma situação descabelada de emergência. As políticas governamentais para a educação arruinaram a escola, de parâmetros e currículos aos salários dos professores e os prédios. Ninguém recomenda fiapos de texto numa sociedade que tenha um mínimo de brio. Além do mais, trata-se de criar uma situação em que o texto literário seja novamente alvo de interesse, e acreditamos que isso possa ser feito por meio de amostras, ao menos inicialmente).

*

De qualquer forma, foi a primeira coisa que apresentamos a eles, após perguntarmos se gostavam de poesia. A maioria, como todos sabem, simplesmente não responde e fica de muxoxo. Há apenas dois tipos de alunos que respondem: os que fazem o gênero interessado e os que gostam de uma confusão. Todos os outros, nesse momento, não existem. Os da confusão em geral dizem que poesia é um saco, ou despistam com uma piada; os espertos vão logo dizendo um nome ou outro, tipo Carlos Drummond, Vinicius, etc, e querem mostrar que têm alguma espécie de familiaridade com o assunto, que você não está vindo com novidade. Esses dois se envolvem, e deve-se aproveitá-los igualmente no desenvolvimento da aula, porque é evidente que os dois têm coisas interessantes a dizer, e o mais livremente possível. O professor não deve ser uma estátua de gelo, e deve saber que pode rir do que realmente achar gozado.

Pedimos que um de cada tipo lesse um dos dois textos.[1] A constatação do óbvio foi pedida: qual é a diferença entre esses dois textos? Partimos do básico-básico. Essa experiência se repetiu em outras classes, com resultados similares, embora as diferenças sejam de altíssima importância. Todos chegaram à conclusão de que uma coisa era uma poesia, um poema e o outro era um texto, uma descrição, uma narração, ou, mais raramente, prosa. Quando perguntamos por quê, responderam que era porque um deles estava de uma forma e o outro, de outra. Não disseram que um dos textos estava em verso, mas sugeriram que a disposição de um era a de poesia, e alguns acharam bem esquisito o fato de que não havia rimas.

Quer dizer que se esse texto não estivesse recortado nas linhas não era um poema? Essa pergunta gerou certo embaraço nos alunos, que se viram numa enrascada em que eles mesmos tinham se metido. Pedimos para que notassem qual dos textos tinha menos palavras (em uma das salas isso foi notado antes da nossa sugestão, por uma garota) e por que eles achavam que isso acontecia, já que os dois textos queriam dizer o mesmo. Daí, concluíram que o de menos palavras era o poema, pois tinha de ser mais direto. Essa resposta nos deixou muito satisfeitos. Muitos chegaram mesmo a perceber que estruturas típicas da prosa, como a introdução ao assunto (Era uma moça, etc.) não ocorriam no texto poético.

Reunimos as idéias que apresentaram e demonstramos como haviam chegado ao cerne da coisa. Preferimos usar uma ou outra palavra que não conhecessem (e que se sentiram bastante à vontade para perguntar) como concisão, do que só falar o que já fizesse parte do repertório deles. Evidentemente, não se explica nada para eles como se explicaria algo para gente do primeiro ano de Letras. Constatamos que alunos tidos como bagunceiros, desordeiros ou malandros costumam ter alguma verve para ler poesia; evidentemente, não vão demonstrar essas qualidades se se der para os infelizes ler Bilac.

A leitura em voz alta é importante, e é necessário pedir isso aos alunos. Nossa experiência tem demonstrado que, se o contexto criado pelo professor for interessante, eles até mesmo se oferecem. Uma porção de alunos teve leitura acima do que esperávamos.

Nossa proposta de aula foi inseri-los no contexto próprio da literatura. De que modo? Um daqueles que inscrevemos no início do projeto. É impossível lidar com textos clássicos se o professor acha que é preciso caçar características de estilo de época num dado poema — na maioria das vezes, ruim, usado apenas porque parece fácil para a tarefa de pinçar características. Todos os alunos com quem conversamos assinalaram esse como um dos principais motivos do desinteresse pelas matérias escolares em geral: a impessoalidade completa dos assuntos tratados numa aula torna a coisa de ridícula a insuportável.

Um rapaz, considerado pivô do inferno dos professores veio, ao fim da aula (sobre parnasianismo!), nos mostrar um caderno onde escreve os poemas de amor mais deslavados do mundo, numa linguagem que ninguém conseguiria imaginar. O detalhe: nós nem sequer pedimos que os eventuais poetas se apresentassem. Os alunos respondem mecanicamente a uma aula mecânica. Mas isso realmente não significa que estão mortos do pescoço para cima. Muito pelo contrário.

 

*

 

Partimos da discussão sobre o que é poesia para uma discussão sobre a charmosa expressão arte pela arte. O intuito era ver até que ponto eles haviam entendido a alcunha pela qual o parnasianismo ficou conhecido e o quanto de liberdade e irreverência podia levá-los a considerar a expressão uma tolice. A maioria, condicionada por anos de escola acéfala, buscava reproduzir os argumentos que já tinha ouvido ou lido sobre o assunto. Deixamos bem claro que não ligávamos nada para certo e errado, mas que ligávamos bastante para o esforço pessoal de reflexão. Não queríamos a definição escolar tacanha, porque achamos que os alunos podiam ser mais espertos que os autores dos livros didáticos. E o que há nos livros é imprestável: a maioria dos adolescentes repetia arte pela arte sem ter idéia do que dizia, o que ficou patente no momento em que perguntamos que raio de coisa eles entendiam com aquilo. Desconversavam, riam, cobriam a cara ou repetiam o bordão.

Quando dissemos para ignorar o que pudesse já estar escrito e dessem a opinião que tinham a respeito, ouvimos várias opiniões interessantes: “Não, é arte pelo dinheiro”, “Não acho que isso faz sentido, arte pela arte”, “Ah, eles queriam um novo estilo”, “Tenho uma pergunta: por que eles, no Renascimento, quando vão pintar as partes íntimas sempre fazem uma coisa reta? Não tem ninguém que pintou mesmo?”, “O que acontece, na arte pela arte, é que os caras estavam isolados do mundo”. Alguns não conseguem mesmo evitar a contradição: dizem que arte pela arte significa que o autor se preocupa em “expressar” algo; mas a maioria costuma afirmar, em todas as salas em que foi apresentada a aula, que pouco importa o que o autor diz, importa a arte.

Importa a arte, querendo demonstrar que a arte vem separada do conteúdo. Então existe uma forma sem nada dentro, um vazio completo? Esse é outro momento em que os alunos titubeiam. Toda afirmação peremptória que soltam e é retomada pelo professor os faz ficar com um pé atrás. Evidentemente, quando se trata de arte, tanto o absoluto quanto o relativo estão distribuídos aleatoriamente, impossíveis de se determinar por regras ou um método de decorar. Os alunos param e pensam. Um aluno desconfia da armadilha e reclama: “Mas então o que é arte pela arte?” O professor pode muito bem dizer: “Pois é, nem eu sei.” Isso funciona porque os alunos querem que o suplício acabe e venha logo a revelação; você os deixa mais aflitos. Funciona também porque, em parte, é verdade.

Nossa atitude foi mostrar que a expressão foi criada por um filósofo (Victor Cousin, 1792-1867), pressionado, como todo crítico, entre o abrir a boca e dizer uma tolice ou ficar com ela fechada e parecer um tolo: escolheu a primeira alternativa e cunhou o termo que tenta dar contorno a uma geração de artistas que dá de ombros ao que acontece na sociedade inimiga e cuida de fabricar enfeitinhos artificiais, bem do jeito que Bilac fez questão de explicar em Profissão de Fé (na verdade, poema colado do francês Théophile Gautier, de um poema de vinte anos antes que lançara o parnasianismo na matriz, i.é., na França).

Para se ter uma idéia de como a coisa é idêntica, basta ver que Gautier tem um livro com o título sugestivo de Émaux et Camées, Esmaltes e Camafeus. Explicamos tudo isso aos alunos, inclusive para que ficasse clara a filiação da escola poética, que deve tudo aos franceses. Para concluir, foi lido o poema Profissão de Fé, mas não do modo soporífero com que costumam ser executados os poemas em sala de aula; as leituras burocráticas dos poemas (juntamente com a empostação declamatória) precisam ser banidas das escolas em respeito aos ouvidos alheios. Até no Pai Nosso diário é possível encontrar mais fervor e boa-vontade.

A leitura foi acompanhada de esclarecimentos marginais, dando conta rapidamente do vocabulário incompreensível para as massas mais um veloz atendimento quanto a referências mitológicas: isso não interfere na leitura. A quem acha que sim, basta assistir ao Cyrano de Bérgerac com Depardieu para ver como é possível inserir comentários no meio dos versos sem que você pareça uma versão ambulante da Delta-Larousse.

Lá pela vigésima estrofe um aluno boceja; boceje você também e verá que todos vão rir e prestar atenção até o fim. A cada passo onde os motivos principais da escola apareciam, chamava-se a atenção dos alunos para o fato, e foi dito mais de uma vez que o poema resumia, como numa carta de intenções, aquilo que viria a ser o movimento inteiro.

Após a leitura, muitos alunos com os quais conversamos sabiam refazer todo o trajeto dentro de suas próprias cabeças. Por quê? Porque o poema lida com associações, e não com uma elaboração abstrata e duvidosa que tenta lançar de jato uma característica no vácuo. Tudo que fica perdido na abstração de uma fórmula vazia será perdido também na cabeça do aluno; uma imagem eloqüente, jamais. E a serena deusa Forma ficou guardada na cabeça deles sendo aporrinhada por uma multidão de bárbaros (românticos medievalistas inspirados deprimidos satânicos etc), mostrando como Bilac apresentava sua versão helenística da arte e sua aversão por inspirações divinas – o que atinge o ridículo quando Coelho Neto, furioso com o tempo que passava para ele e sua turma parnasiana, se retira furiosamente de uma sala onde se debatia a nova literatura dizendo, ofendido: “Sou o último dos Helenos!”

 

*

A verificação, em todos os casos das aulas que demos, foi realizada como produção textual orientada dos alunos, ou gravação em fita cassete de entrevistas, com perguntas e respostas ou debates sobre tópicos. No caso da aula sobre o que é poesia, pedimos gentilmente que os alunos escrevessem, em grupo em algumas classes, sozinhos em outras, um poema a partir de texto previamente elaborado (tratava-se de verificar o efeito da comparação entre o parágrafo de Maupassant, de O Colar de Diamantes, e o epigrama que extraímos de lá). Os alunos deviam notar uma porção de coisas para produzir algo que prestasse, como:

 

a) a ironia, como dissemos, é elíptica; da mesma fonte da ironia vem a poesia, vêm os sonhos, etc. Freud falou sobre o tema, Ezra Pound também e mais um monte de gente;

b) o verso tem exigências próprias, tanto de prosódia quanto de “acabamento”, isto é, um verso não é uma linha qualquer recortada;

c) um poema, por ser estruturalmente diverso de um texto em prosa, e assim uma estrofe de um parágrafo, demanda que algumas palavras sejam mandadas embora na transposição da prosa para o poema, mas sem danificar o sentido.

Isso é o mínimo para se transpor a prosa para o verso. Não estamos implicando aqui que os alunos formalizassem assim sua tarefa. É normal que um jogador de futebol não saiba descrever matematicamente a parábola que seu chute precisa descrever para encobrir um goleiro adiantado na grande área; mas também é evidente que ele pode realizar isso a despeito de uma improvável erudição numérica. O professor deve medir suas expectativas calculando o alcance de suas conduções e explicações. Um aluno dificilmente adivinha algo, mas é possível conduzi-lo a conclusões que não seríamos capazes de imaginar apenas figurando em nossa mente cheia de preconceitos um adolescente em completo desmazelo e má-vontade. Tanto foi que saímos surpresos, e com boa surpresa. Vamos dar alguns exemplos. O texto básico era este:

Ele falava o tempo todo, com autoridade, de Beethoven e outros clássicos, e gostava se der fotografado junto de pianos e belos instrumentos. Dizia que era um músico dos bons, mas apenas tocava pratos na bandinha da Guarda Civil.

Texto que imita o estilo seco de composição de Maupassant, só que simplificado. A maior parte das composições dos alunos reconheceu com sucesso o modo de transposição, a linguagem econômica do poema, o desenho prosódico de um verso irônico. Uma minoria ficou aquém e a outra, além. O caso daqueles que ficaram além é curioso. Eles não têm nenhuma cultura literária (em alguns é possível perceber um estilo bem aproximado do rap), mas enriqueceram o texto com coisas que não estavam nele, demonstrando uma compreensão bastante impressionante, seja do verso, seja da ambiência maledicente do texto. Por exemplo:

Depressivo e autoritário falava de Beethoven
Julgava-se bom músico,
Gostava de exibir seus belos instrumentos
Mas na banda civil tocava apenas pratos.

 

O verso consegue o efeito de compressão das informações do original em prosa por meio da enunciação direta – vai para o espaço o início “Ele falava o tempo todo”, que é uma elaboração bastante prosaica, em favor da definição seca “Depressivo e autoritário”, invenção dos dois alunos a partir dos dados. A opção foi um quarteto, que é uma forma comum da poesia, digamos, convencional. Eles também não fugiram muito ao esquema do texto de partida, como se pode observar, mas demonstraram captar a intenção da aula de um modo completo, e a intenção da aula era bastante abrangente: eliminar preconceitos formais na definição de poesia e estabelecer as diferenças possíveis com a prosa. Outro exemplo:

 

falava o tempo todo
de Beethoven e gostava de ser fotografado
junto de belos instrumentos

músico e dos bons,
mas apenas tocava pratos
na bandinha da guarda civil

 

que desdobra o texto em dois tercetos, curiosamente, uma forma também muito praticada não só pela tradição ibérica, mas também por toda a latinidade. Menos inventivo no significado, esse poeminha ousa mais na forma. Como muitos poemas modernos, ignora as maiúsculas no início do verso; corta as informações do texto em prosa de uma maneira mais sincopada, distante, observando entretanto as mesmas leis que comentamos a respeito do anterior. Agora, um bastante divertido:

 

Falava o tempo todo
com autoridade de Beethoven
fotografados junto de pianos e instrumentos
músico dos bons, dizia ele ser
tocava pratos na cozinha da guarda civil.

 

Em que pese o português estropiado, vejam só isto: “tocava pratos na cozinha da guarda civil”! É incrível até onde essa dupla levou a ironia no poema, ultrapassando a concepção original e misturando duas noções numa única palavra, “pratos”, que deu um desfecho hilário para o infeliz personagem. Quanto ao português, se estivessem familiarizados com usos mais sutis de linguagem, como os dois pontos e o travessão (que poderia ter sido utilizado com proveito na introdução do terceiro verso), o problema estaria resolvido. É preciso ter em mente que entramos de sola numa classe que era considerada a baderna e o caos, uma classe levada através da neblina irrespirável dos livros didáticos. Mesmo assim, produziram estes textos que estamos mostrando. Esse último caso foi o único: ninguém mais transgrediu a esse ponto e com tal resultado as informações originais. Houve algumas modulações muito interessantes porém:

 

Beethoven era seu senhor
e desejava ser como ele
posando junto aos grandes instrumentos
de um verdadeiro músico.
Bom sonhador, isso é o que ele era
mas a Guarda Civil
era a sua orquestra.

 

que, devemos concordar, é bastante apreciável, apesar de não ter o mesmo pique de impacto dos outros. Remaneja com razoável liberdade os temas do texto, e dá um desfecho que, se não é tão surpreendente quanto o anterior, reforça a ironia por sugerir que o próprio personagem se engana a respeito de onde toca. A palavra “orquestra” é cuidadosamente disposta no último verso para o impacto do ridículo, prática usual entre poetas satíricos. É um poema muito bem arranjado, e os versos são divertidos. E com desfecho semelhante, temos este:

 

Contava para todos
Com a autoridade de poucos
Gostava de ser fotografado
Ao lado de instrumentos caros.

Não tinha muito dom para a música
Mas tinha seu lugar separado
Na bandinha civil
Onde era seu reinado.

Muito bem realizado do ponto de vista do verso, principalmente na segunda estrofe. Fica claro que compôs o poema tendo por base o jeito como se escreve um rap, com frases diretas, abruptas e misturando referências. A recorrência de mais uma forma comum aos brasileiros pela ascendência ibérica, os quartetos; e aqui, um dos únicos a tentar o recurso da rima – que soa bastante natural – entre reinado e separado, e sabemos que é algo de ousadia, uma vez que a rima caiu de moda a ponto de ser considerada inaceitável por algumas pessoas, incluindo poetas. Mas estamos no reino do rap.

Esse aluno também remanejou os dados do texto original, sentindo-se à vontade para escrever algo que considerasse mais seu. Cada verso tem, digamos, sua marca pessoal, a idéia que lhe deu o texto de partida. O curioso é que é um dos alunos considerados mais indisciplinados da sala. Ele se mostrou muito interessado na aula, embora, como toda sua classe e todas as outras classes em que demos as nossas caras, estivesse um tanto cético no início e tirasse barato de tudo que era dito. Aos poucos, chamado a dar sua opinião em diversas questões, seu comportamento mudou e suas intervenções, embora sempre irônicas, se focalizaram no tema da aula. Ajudou muito, confessando que os poemas parnasianos são de lascar, e brincando com as figuras que distribuímos para a sala.

 

*

 

Este foi outro ponto importante. As figuras eram reproduções de alta qualidade de quadros que compreendiam um leque de Giotto a Mondrian, e pedimos que dissessem se viam neles algo que pudessem chamar arte pela arte. Esse tipo de atividade pode ser aplicado a várias finalidades, e é uma variação de bolso da visita a museu; além disso, você divide a classe em grupo e deixa que façam a algazarra que quiserem. O professor passa de grupo em grupo para ver no que está dando. Uma garota ficou muito satisfeita de reconhecer o Nascimento de Vênus, de Botticelli; um grupo estranhou o quadro de Piet Mondrian que representa vários retratos por meio de algumas linhas paralelas e perpendiculares, no estilo que, com reduções ao essencial, seria caracteristicamente o seu – mas se deliciaram com a explicação e se puseram a querer encontrar mais e mais rostos no meio das linhas. Vários grupos gostaram de um quadro de Brueghel, o Embate entre o Carnaval e a Quaresma, onde metade dos personagens se dedica aos prazeres e metade ao comedimento, e no primeiro plano há um gordo sobre um barril se esbaldando de bebidas e carnes, como se estivesse sobre um cavalo, num duelo contra um magrelo descarnado, com poucos apetrechos, representando a frugalidade. Um garoto, vendo o gordo num barril, com uma enorme saqueira, disse: “Ah, esse é o Baco, não é?”, não era, mas o palpite foi muito bom. Outros tinham As Três Graças de Rafael Sanzio – que rendeu muitas piadas porque as três mulheres estão completamente nuas e praticamente abraçadas –, quadros de Munch, Portinari, Chagall, etc.

À nossa questão de arte pela arte, responderiam desta maneira: os que achassem que estavam em posse de um quadro que se encaixasse na definição, ergueriam para toda a classe. Curiosamente, na primeira em que se perguntou isso os alunos ergueram, sem pensar, todos os quadros modernos. “Vocês perceberam que só os quadros modernos foram levantados?” Eles associavam arte pela arte com uma linguagem que consideravam incompreensível, e mulheres nuas todo mundo entende, não entende? Isso foi algo com o que nos deparamos de surpresa, sem nunca imaginar que seria essa a reação, ou que ela pudesse ter algum padrão reconhecível. Discutimos então questões de técnica em pintura, como o estilo dos pintores e suas intenções, e essa discussão encaminhou muito bem as coisas para a conclusão que já apresentaremos.

Vamos considerar mais dois poemas:

Tocava apenas pratos na bandinha,
mas gostava de ser fotografado,
cheio de gracinhas
posava ao lado de pianos e
belos instrumentos da vizinha.

 

Esse merece menção em separado por causa da troca de sentido, além das rimas. Primeiro, as alunas resolveram inverter a ordem do poema, com um efeito muito interessante, deslocando a piada final para outra parte do texto, que reelaboraram para dar destaque a uma apimentada brincadeira sexual, que fica clara no duplo sentido do último verso (notar a rima de gracinhas e vizinha). Rimos muito com esse poema, e, portanto, o consideramos muito bom. Para concluir, vamos ver um que recriou toda a estrutura proposta:

 

Como pode?
Como pode um simples homem
tocador de pratos de uma bandinha
Da guarda civil, se achar músico dos bons?
Como
Como pode?
Como pode tirar fotos junto a
belos pianos e instrumentos,
Falar de Beethoven e outros?
Como pode?
Mas...
Será que ele pode?
Se ele pode, quem não pode?

que investe em outro tipo de construção, com a interrogativa repetida, coisa muito comum nos poemas em latim de Catulo, século I a.C. Evidente que os alunos não sabiam disso, mas essas estruturas permeiam canções populares, e todo o verso posterior. O poema se alonga e ganha um aspecto mais moderno, mais coloquial.

Houve quem nos devolvesse a folha com um texto em prosa; quem aumentasse brutalmente o texto, desconsiderando qualquer coisa que tivéssemos dito no início da aula e discutido com eles, a partir de suas próprias conclusões. Mas o importante a se reter aqui é o precedente. Parece-nos inteiramente indecente dizer que essas pessoas não têm interesse nenhum, seja na escola, na literatura, nos textos clássicos. Verificamos que conheciam quadros clássicos, que estão abertos à arte moderna que não compreendem, que sua espontaneidade interpretativa é, às vezes, muito mais sagaz que a de críticos entupidos de informação e por isso mesmo cegos para a evidência. São alunos considerados casos perdidos e que nos entregam poemas bem feitos, que nos vêm mostrar cadernos cheios de poemas, que vêm conversar conosco sobre os mais variados assuntos (quadrinhos, heavy metal, rap, Cuba, exclusão social), que reconhecem figuras mitológicas nos quadros de cinco séculos atrás.

Damos um exemplo muito específico: a um garoto que, sabe-se lá o porquê, estava sentado distante de todos em absoluto silêncio, renitente a participar da aula, foi entregue, sem identificação, a figura da Sibila de Michelangelo, dos afrescos da Capela Sistina. Dirceu se sentou ao lado do garoto e disse: “Vamos lá, você vai me dizer qualquer coisa que tenha encontrado neste quadro, não precisa dizer pra classe toda.” E o rapaz disse, então: “Ela está assustada com algo que percebe que está vindo”. Para qualquer pessoa que conheça a obra isso terá feito todo o sentido. A Sibila diz o futuro, e Michelangelo a representou com o rosto voltado para algo que só ela vê, daí o susto. Foi o que se disse a ele, o quadro foi explicado e foi possível ver sua satisfação; depois, entregou o poema e pediu que fosse lido, queria saber se o que tinha feito era bom. Um aluno que seria classificado de apático em outro esquema de aula.

A exemplo dessa aula, pudemos testar mais algumas do nosso estoque, lembrando que não estávamos à vontade para fazermos o que quiséssemos, uma vez que era imperativo dar curso ao programa que a professora estava seguindo. Demos aulas também sobre o Simbolismo, e tivemos mais outras surpresas.

Partimos de Baudelaire, das Correspondências, que os alunos receberam bem. Comentamos o ligeiro problema da tradução de Ivan Junqueira, que traduz a expressão forêts de symboles por bosque de segredos, em respeito a uma rima que precisava manter; mas isso lhe custou uma das primeiras aparições da palavra que caracterizaria o movimento posterior a Baudelaire e que o toma como ponto de partida (o manifesto é de Jean Moréas). Lemos Rimbaud, do polêmico poema Vénus Anadyomène.

Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.

Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;

A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa...

Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus
E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.

 

(Tradução de Ivo Barroso)

 

Que os alunos, muito espertos, tendo recebido uma cópia bilíngüe, resolveram ouvir o texto no original. Depois foi pedido que uma garota lesse o texto, exatamente no momento em que o coordenador pedagógico entrava na sala de aula. Ele recebeu a folha e sentou-se. A menina sentiu um desconforto diante do último verso, mas foi em frente corajosamente. O coordenador sorriu. Levamos à lousa o quadro de Botticelli, O Nascimento de Vênus, e pedimos para que comparassem.

Passou-se certo tempo, alguma discussão, até que perceberam que uma era o oposto evidente da outra. Botticelli nos oferece uma deusa, nascida do oceano, de frente para nós, de beleza impecável; Rimbaud lança diante de nós uma prostituta, erguida de uma banheira, de costas, com o corpo castigado, entre outras coisas, por uma úlcera no ânus.

Rejeição à sociedade rica e apodrecida da Europa, o desenho se faz da descrição do símbolo da derrocada, por paródia ao símbolo da beleza aos olhos da civilização. Disso partimos para o que aconteceu no Brasil, muito diferente, mas de matriz semelhante.

Um simbolista brasileiro, Cruz e Souza, explora brancos brilhantes, luzes cintilantes, etc. como lemos em Antífona; já se disse a grande besteira de que isso acontecia porque o homem era negro numa sociedade recém-saída do escravismo. Não ocorreu a esses críticos que todo branco ofuscante esmaece os contornos, dilui a marcação sólida da realidade e introduz a incerteza e o sonho (Camus muuuitos anos depois faria o personagem principal de O Estrangeiro matar por não conseguir ver, cego pela luz). Isso era meta básica dos que se chamavam simbolistas, desde Baudelaire, leitura assegurada de Cruz e Souza, que sustenta o mesmo ponto no poema citado, Antífona.

A aula foi concluída com a atividade de discussão sobre frases famosas ou palavras de ordem de, por assim dizer, “simbolistas”[2]. Utilizamos:

Antes de tudo, a música. Paul Verlaine

É preciso ser absolutamente moderno. Arthur Rimbaud

Os pássaros estão ébrios de ficar entre a espuma desconhecida e os céus. Stéphane Mallarmé

Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Charles Baudelaire

O desregramento de todos os sentidos. Arthur Rimbaud

Sou o império ao fim da decadência. Paul Verlaine

E as respostas que foram recebidas são, entre outras: “Para você sentir alguma coisa não tem regra nenhuma”, “Estava acabando aquela expressão da perfeição, eles estão buscando a perfeição em bens materiais, e que tudo que era perfeito antigamente tinha defeito na verdade”, “Ele está na dúvida se quer descobrir alguma coisa nova ou se fica no céu, aquela coisa maravilhosa. Ele não sabe para onde ele vai.”

A última resposta foi para o verso de Mallarmé, e foi dada por uma garota de dezesseis anos. Ela não havia lido o poema, não conhecia Mallarmé, mas sua resposta foi a única que se sobressaiu diante da dos outros que analisavam o mesmo verso – aliás, propositadamente difícil; queríamos saber até onde era possível contar com a perspicácia deles. O verso, do poema Brise Marine, “Brisa Marinha”, é a resposta de Mallarmé ao poema de Baudelaire que compara o poeta ao albatroz, pois, igual à ave, o poeta voa belamente nas alturas, mas aterrissa ridiculamente entre os homens. Para Mallarmé, o poeta está, na verdade, no perfeito limite, na dúvida entre experimentar uma coisa ou outra. A menina, diante de apenas um verso, foi capaz de reconstruir o sentido inicial, ainda que a palavra “ébrio” confundisse um pouco as coisas. Ela estava tímida no grupo, e só falou quando se desconfiou que seu silêncio era revelador e se perguntou a ela o que achava.

 

*

 

No mundo do ensino, a situação é desamparadora, o governo é horripilante nos três níveis do executivo, os salários nos dão medo, etc., mas é impossível ficar indiferente diante das possibilidades que os adolescentes oferecem de aprendizado. Eles respondem com simpatia e inteligência SE e unicamente SE forem instados a isso.

Vários deles fazem coisas ligadas a alguma arte: tocam no conjunto da igreja e têm seu próprio conjunto, estudam e desenham histórias em quadrinhos (encontramos três com enorme talento e um já quase profissional), escrevem poemas com alguma ambição, apreciam moda, e estavam animados com uma radionovela que gravavam com base em Dom Casmurro (descontada a insatisfação por não poderem adaptar os diálogos) etc. Como esperamos ter deixado mais do que claro, eles nos surpreenderam a toda aula, porque eram, além de tudo, considerados casos perdidos, e reagiram muito bem às nossas propostas.

Eles próprios formalizam a queixa do desinteresse que vai do diretor aos professores (excluindo o coordenador pedagógico, que faz as coisas funcionarem num certo nível e sabe o que está fazendo). A professora senta diante deles, lê o Faraco & Moura e manda que eles façam, de bico calado, o exercício da página tal. Isso não pode ser considerado aceitável, mesmo porque é prática comum na maioria dos colégios e desde há muito (quando estudávamos no colegial já se praticava essa lição de dormir).

É confortável não pôr o cérebro para trabalhar, e reclamar da preguiça dos alunos. É agradável esperar da oficialidade aquilo que se deve ensinar, e jamais questionar o modelo e os textos propostos pela sensaboria geral. O único problema é que esse é o meio mais seguro de garantir que a banalidade, a burrice, a incompreensão e outros derivados do método, sejam perpetuados sob a gentil alcunha de crise da educação.

 

Notas

 [1] O texto em prosa de Guy de Maupassant e o epigrama que foi feito a partir dele, e que será reproduzido mais adiante.

[2] Levaria muito espaço aqui discutir o problema dessas nomenclaturas viciadas. A história de literatura não deveria ser vista como um varal onde penduramos nomes com pregadores; deveria ser a comparação de linhagens estilísticas transnacionais.

  

Ler 18441 vezes

Deixe um comentário

Verifique se você digitou as informações (*) requerido onde indicado.
Basic código HTML é permitido.