(Des)conhecimentos escolares: um recorte sem linguagem

 

Ailtom Pereira Liberal 

 

Breves (e repetitivos) fragmentos da situação escolar — Impactos

Fazer estágio, preferencialmente, em escolas públicas — uma sugestão por muitos futuros professores aceita. E, claro, por mim também, ainda mais levando em consideração o fato de ter sido aluno de uma escola pública. Há em mim, é inegável, o interesse de saber como se dá o ensino de língua portuguesa em uma escola particular: conhecidos meus, que dão aulas nessas escolas, dizem encontrar dificuldades com seus alunos, dificuldades não muito diferentes das encontradas na escola pública, após minhas ponderações.

Muitas escolas públicas chamam a minha (nossa) atenção para histórias estranhas nelas desenvolvidas que dizem respeito a brigas de alunos, grupos rivais, e até morte, — sugerindo-me, assim, esta conclusão: a de que a escola perdera o encanto do conhecimento, transformando-se, infelizmente, em um palco de lamentações.

Algumas razões para a perda desse encanto são plausíveis: o espaço físico de muitas escolas (públicas e, até, particulares) é composto por salas desproporcionais e/ ou desfiguradas, laboratórios de informática e de ciências em desuso (que, se utilizados, ajudariam, e muito, a criar uma atmosfera da descoberta), grades de proteção em todas as partes da escola, materiais pedagógicos insuficientes e/ ou em falta etc.

Em outras escolas, muitas vezes, há uma rigidez disciplinar (como exigência de uniformes para entrar) sem uma ampla discussão democrática que possibilite ao aluno participar de decisões importantes que o conscientizem como sujeito histórico-cultural. Lembrando Vygotsky, o legado cultural do grupo é a base constitutiva de cada indivíduo: tal base não só resulta da educação familiar e do contexto sociopolítico, mas também de uma multiplicidade de influências no curso do desenvolvimento do indivíduo. A escola, na perspectiva vygotskiana, tem um papel fundamental para a realização do desenvolvimento da experiência culturalmente acumulada. A escola oferece, logo, a oportunidade de o indivíduo acessar informações e experiências novas e, conseqüentemente, desenvolver-se [1]. E desenvolver-se como cidadão…

Portanto, as relações sociais feitas com outras pessoas, e o respeito nessas relações, são muito importantes para o indivíduo, que sem a escola, poderia não aprender. Vygotsky

[…] chama a atenção também para o importante papel de mediador exercido por outras pessoas nos processos de formação dos conhecimentos, das habilidades de raciocínio e procedimentos comportamentais de cada sujeito. De acordo com este paradigma, o desenvolvimento individual é sempre mediado pelo outro (entendido como outras pessoas do grupo social), que indica, delimita e atribui significados à realidade[2]. (Grifos da autora)

Todos esses problemas aqui enumerados — aliás, caoticamente — e as possibilidades (não muito bem praticadas) de desenvolvimento ajudam a entender os alunos de muitas escolas públicas que criam em si, assim me parece, uma auto-depreciação. Sentem-se incapazes de prestarem os grandes vestibulares, de não estarem preparados para a situação escolar que os faça serem parte de um todo; e, estranhamente, não têm muitos modelos a serem seguidos, pois a maioria dos professores é despreparada para enfrentar a uma situação educacional de seus alunos, prejudicando consideravelmente a uma minoria bem preparada[3]. Essa maioria não os faz refletirem criticamente todo o conteúdo dado, e, claro, o papel de cada um como cidadão. 

 

Relação professor-aluno (aprofundamentos)

Uma vez ouvira de um professor de filosofia um comentário sobre a relação professor — aluno: "Alunos, fora da escola, são ótimas pessoas com quem você conversa em algumas excursões de diversão, mas se mostram péssimas pessoas com quem você lida em sala de aula". Uma verdade fácil de comprovação, lendo uma entrevista dada por um sociólogo professor:

A minha primeira surpresa, e que é fundamental, corresponde ao que os professores dizem nas suas entrevistas. Os alunos não estão "naturalmente" dispostos a fazer o papel de aluno. Dito de outra, para começar, a situação escolar é definida pelos alunos como uma situação, não de hostilidade, mas de resistência ao professor[4].

É necessário tal trecho, pois presenciei em minhas experiências de estagiário e de professor, muitos professores nervosos com os alunos que parecem não se importarem muito com a matéria dada. Muitos tentam dar lições de ética e moral na tentativa de controlar aos alunos. Geralmente, os alunos escutam essas lições, porém, não as aplicam em sua conduta em sala de aula. Outra maneira de controlar a sala é dar nota para quem tinha caderno com a matéria em ordem. Mais tarde voltarei a esse assunto.

Há, contudo, situações em que as salas ficam sob controle (até causam espanto, tamanha a concentração dos alunos). Mas a indisciplina é algo mais comum. Qual o motivo da indisciplina? Segundo uma pesquisa,

[…] o comportamento indisciplinado está diretamente relacionado a uma série de aspectos associados à ineficiência da prática pedagógica desenvolvida, tais como: propostas curriculares problemáticas e metodologias que subestimam a capacidade do aluno (assuntos pouco interessantes ou fáceis demais), cobrança excessiva da postura sentada, inadequação da organização do espaço da sala de aula e do tempo para a realização das atividades, excessiva centralização na figura do professor (visto como o único detentor do saber) e, conseqüentemente, pouco incentivo à autonomia e às interações entre os alunos, constante uso de sanções e ameaças visando ao silêncio da classe, pouco diálogo etc. [5].

Como já fora exposta a situação em que se encontra o espaço físico de muitas escolas, e a falta de discussões democráticas, não há necessidade de escrever mais sobre isso. Em relação à conduta de professores haverá mais reflexões. Por enquanto, posso dizer que alguns professores são muito respeitados nas escolas, mas não exatamente nas salas de aula. Passemos agora para as experiências por mim vivenciadas na disciplina de língua portuguesa.

 

Livros adotados para as aulas de português

Muitos livros didáticos adotados para o ensino de português usados nas escolas trabalham com poucos textos, são muito "exigentes" em exercícios gramaticais, e não apresentam diálogo com o aluno-leitor para a produção de texto. Grande parte dos professores adora utilizar esses livros para ocupar os alunos, fugindo, assim, à prática do ensino.

Vale ressaltar: analisando as atividades de produção de texto em livros didáticos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental, Maria da Graça Costa Val[6] chama a atenção para a não explicitação das condições de produção de texto até de coleções de livros recomendadas pelo MEC. Creio ser aplicável aos livros de Ensino Médio o pensamento da autora. Não há, de forma alguma, uma clara posição dialógica — dos livros — de como produzir um texto. Exemplos de produção sem explicitação das suas condições não ensinam o real valor textual.

Outro detalhe é que, na parte referente à Literatura, os livros não ajudam muitos alunos a caminharem na leitura interpretativa de trechos literários, desestimulando-os, assim, a descobrirem as possibilidades de linguagem. Tal detalhe contraria a orientação dos PCNs, que insistem em dar, com toda a razão, importância à leitura, pois possibilitam aos alunos uma mobilização de todo o seu conhecimento lingüístico. Sem leitura, o ensino de gramática da língua fica inútil, pois "[a]prender uma língua é aprender a dizer a mesma coisa de muitas formas [7]".

Contudo muitos alunos não levam seus livros para a escola. Por ser volume único, os livros de Português do Ensino Médio, por exemplo, são muito pesados, fazendo que eles fiquem inconscientemente desestimulados para estudar.

Analisando criticamente os livros, portanto, fica a impressão de que não seguem corretamente o PCNEM, que recomenda não haver uma separação drástica entre gramática e literatura. Sob a perspectiva do PCNEM, posso dizer que, sem literatura, não haveria gramática; pois, assim penso, a gramática é uma possibilidade de leitura dada a escritos de grandes autores, usados, geralmente, como exemplos de virtude de boa escrita. Claro, ao escrever, um grande escritor usou as palavras dentro de suas riquezas de possibilidades.

Livros não recomendáveis para quem gosta de trabalhar com textos em sala de aula, ainda mais levando em consideração o fato de os próprios alunos os "boicotarem".

 

Variação linguística e preconceito linguístico

Aqui conto uma experiência vivenciada como estagiário de uma escola pública.

O professor por mim observado explicava o sentido etimológico de "ema" (unidade) das palavras fonema, morfema, etc. Quando um aluno perguntou de "ema" em nome de uma família de aves pernaltas. O professor disse-lhe alguns nomes, mas um nome chamou a atenção de outro aluno: "sariema". Esse aluno perguntou ao professor se não era "seriema". O professor, felizmente, disse que era uma variedade lingüística: em Portugal, "sariema"; no Brasil, "seriema". Até aqui, tudo bem.

Em uma outra aula, porém, condenou o uso da palavra "moscar" que muitos jovens falam, dizendo que, em sua forma rizotônica, o verbo em questão conjuga-se assim: "eu musco"…; e em sua forma arrizotônica, assim: "nós moscamos"… Primeiramente, nas minhas pesquisas de dicionário, o verbo "moscar" a que o professor se referia tem o sentido de "fugir das moscas, safar-se", e não o novo sentido, gíria, que é de "aquele que está com pensamento longe"… Não se pode condenar, portanto, a forma de conjugação desse verbo, aliás, aceitável. Lembrando Haquira Osakabe

[…] a estigmatização das variedades lingüísticas revela, nesse sentido, uma atitude antilinguagem, já que a variação é nuclearmente, estruturalmente, a condição que dispõe a língua para a mudança, a substância de sua própria vitalidade[8].

Logo em seguida, o professor disse à sala como deveria se falar… Sírio Possenti discordaria dele:

Por mais distante que a linguagem do aluno esteja da variedade padrão, ela é extremamente complexa, articulada, longe de ser um falar rudimentar e pobre […]. Se a escola desconsiderar essa riqueza lingüística que a criança traz […], estará pecando pela base, desperdiçando material extremamente relevante[9].

Portanto, considerar a variação lingüística é acompanhar os detalhes interessantíssimos da língua.

Até algum tempo atrás, fala e escrita eram freqüentemente consideradas opostas, segundo Marcushi. Hoje, continuando o autor, são vistas como atividades interativas e complementares, como um conjunto de práticas sociais. A língua se funda em usos que fazemos da língua, e as variações lingüísticas são o produto resultado desses usos[10].

 

Avaliações e exercícios aplicados aos alunos

Continuando o relato como estagiário.

Uma maneira encontrada pelo professor por mim observado de controlar a indisciplina na sala de aula era, muitas vezes, dar vistos e, conseqüentemente, notas nos cadernos de alunos para ver exercícios feitos, por exemplo. Espanto meu é que, em quase todas as salas de aula (cada sala, em média, com quarenta alunos), só cinco, seis pessoas tinham caderno em ordem. Isso quer dizer que certos métodos disciplinares já não funcionam mais. Infelizmente, tal método é muito aplicado por outros professores de outras disciplinas.

As provas parecem ser outra maneira de impor disciplina. Houve uma prova aplicada aos alunos, da matéria referente à formação de palavras (mais especificamente, desinências verbais). Corrigi algumas provas de um primeiro ano do Ensino Médio (da manhã). O resultado foi desastroso. Quase todos os alunos com nota vermelha. Contudo as questões eram “decorebas”, relativas a nomenclaturas referentes a desinências verbais (radical, vogal temática, conjugação de verbos, tempos verbais, etc.). Um exemplo de pergunta: "Quais as conjugações verbais?" — pergunta aparentemente simples. Uma constatação que me chamou atenção, porém, é que a maioria dos alunos respondia corretamente. Parece ser um dado interessante: o de que os alunos dominam, de alguma forma, a matéria dada, embora desatentos.

Outro exercício, usado como reposição de nota, era redação. Só alguns alunos o faziam. Portanto, assim considero, não eram produtores de texto, senão reprodutores de atividades. Segundo alguns alunos — já que nem em todas as aulas eu estive presente — o professor não havia ensinado partes importantes de uma redação. Se seguíssemos a proposta de J. Wanderley Geraldi para a composição de uma redação ("se tenho algo a dizer/ se tenho alguma razão para dizer/ se tenho alguém para quem direi o que tenho a dizer/ se o destinatário para quem direi o que tenho a dizer se constitui como tal"), os alunos saberiam como começar a redigir.

 

Aulas de regência

O objetivo das minhas aulas de regência foi discutir textos literários em sala de aula, por haver, penso eu, a necessidade de os alunos perceberem a importância da leitura. Assim, deu a impressão, com essa forma de trabalho, de que gramática e literatura são duas coisas muito distintas, que, já expostas razões em outro momento, contrariam o PCNEM.

"Recompor a caminhada interpretativa do leitor (que, evidentemente, pode ser o professor enquanto leitor dos textos) exige atenção ao acontecimento dialógico que ocorre no interior da sala de aula[11]" — eis uma reflexão interessante de J. Wanderley Geraldi, que pôde, de alguma forma, ser comprovada por mim em sala de aula.

Enfim, busquei seguir ao PCNEM (orientações educacionais complementares), que pressupõe ser leitor (em sentido amplo) aquele que apresenta uma série de domínios, como domínio do código (verbal ou não), e suas convenções, dos mecanismos de articulação que constituem o todo significativo, e do contexto (aqui entendo como contexto sócio-histórico) em que se insere esse todo.

 

1. Análise do poema "Serenata Sintética"

Nas aulas de regência procurei trabalhar com textos literários. Contudo não eram textos fáceis, pois enganosos em seus pequenos detalhes. Parte desse meu trabalho foi inspirada na leitura que fiz de um texto de Lígia C. Leite.

Eis uma parte desse texto que me chamou atenção, citando a autora Merleau-Ponty:

Para o filósofo francês, não há um texto prévio que a linguagem simplesmente traduz, mas sentidos se produzindo no corpo da linguagem. Para ele, ainda, "as palavras ensinam seu pensamento ao eu que as pronuncia", a expressão vira um "vestígio" e a idéia não é "nunca dada na sua transparência"[12].

Portanto era, a partir da leitura acima, necessário desafiar os alunos. O primeiro texto que me parecia desafiador — e, de fato, foi desafiador — era este:

 

Serenata sintética

Lua

Morta

 

Rua

Torta

 

Tua

Porta

(Cassiano Ricardo)

Poema aparente simples, porém complexo em sua densidade condensada. Agora devo explicar o porquê de desafiador. Muitos alunos — e muitos alunos de todas as salas em que estive, até mesmo exercendo o ofício de professor — perguntaram-me se ia passar um texto longo (creio ser isso um sintoma de longas cópias alienantes a que são submetidos). Disse que o texto já estava na lousa. Espanto geral. Um texto com oito palavras (contando também as palavras do título, claro). O que esse texto quer dizer? O processo mecânico de leitura feito pelos alunos impediu a produção de sentido pelo texto.

Contudo vejo no espanto dos alunos algo de bom, pois eles se obrigaram a refletir sobre sua capacidade de leitura. Enfim, analisamos o texto passo a passo.

Disse-lhes que, para analisar o todo do texto, deveríamos ver suas partes. Comecei pelo título, buscando fazer que eles dessem o significado de cada palavra. A palavra serenata: declaração de amor feita por um homem à amada, em noite de lua cheia (esse detalhe da noite é relevante). Contudo, uma palavra acompanhada de um adjetivo: sintética. Quase ninguém soube explicar o significado desse adjetivo. Mostrei a eles que tal adjetivo vinha da palavra "síntese", explicando com um exemplo bastante elucidativo: "se um professor de vocês lhes disser para fazerem uma síntese do texto, em verdade ele estará pedindo…" — sempre havia um aluno, espantado, que dizia "resumo". Portanto os alunos percebiam, já pelo título, que apenas partes importantes da serenata seriam colocadas no poema. Ainda não era tudo. Por que "Lua/ morta"?

Alguns alunos, de algumas salas, disseram que "lua não morre". Isto é interessante: nas figuras de linguagem temos uma denominada "prosopopéia", ou "personificação" — e aí a minha explicação a eles de que havia a intenção poética de dar um atributo de ser animado, vivo, a coisas inanimadas. Claro, era ainda uma visão interpretativa simplista. A intenção minha era revelar a eles o sentido oculto da palavra "morta". Perguntei a eles se podiam responder-me alguma coisa relacionada a essa palavra. "Tristeza" fora a relação mais feita. Por que tristeza? Sabia que muitos tinham em mente o porquê da "tristeza", mas ninguém, em todas as salas em que estive, soube explicar. Aí revelei a eles que a morte é "ausência" de algo. Portanto poderíamos dizer que a lua morta é, em verdade, lua ausente. Não há lua no céu porque — leitura plausível — é Lua Nova, pois não aparece à noite.

Depois de explicar a primeira estrofe, já ficou mais fácil a segunda — embora houvesse ainda certas complexidades. Que dizer de "Rua/ torta". O nível de abstração de alguns alunos, após as primeiras leituras do poema, permitiu falarem que "torta" poderia significar "curvas". E, assim, pedi-lhes que imaginassem indo à casa de alguém primeiramente por uma rua reta e, depois, por uma rua cheia de curvas. Após imaginarem, perguntei-lhes qual a rua mais fácil para chegar a tal casa. Responderam-me, logicamente, "a rua reta". Então descobriam, assim, que a rua cheia de curvas oferece dificuldades a quem por ela anda.

Alguns alunos acharam que o sujeito (oculto) do poema não chegara ao destino. Pedi-lhes que provassem tal argumento lendo todo o poema. Não apresentando, revelei a eles o fato de, na estrofe última, aparecer o pronome possessivo (adjetivo) " tua ", de segunda pessoa. Há, assim, uma abertura de diálogo que nos revela a chegada do sujeito ao destino por ele desejado.

Também lhes mostrei o fato de que o poema fora escrito no século XX. Isto possibilita explicar a extrema concisão do texto, pois, como havia dito a eles, a literatura, de alguma forma, reflete o momento histórico: o texto parece retratar um século cada vez mais veloz em sua forma.

 

2. Análise do poema "SALDO"

Eis o poema segundo analisado em todos os primeiros anos do Ensino Médio do professor a quem observei:

 

Saldo

a torneira seca

(mas pior: a falta

de sede)

 

a luz apagada

(mas pior: o gosto

do escuro)

 

a porta fechada

(mas pior: a chave

por dentro)

(José Paulo Paes)

Outro texto curto, complexo. Como começar? Se pelo título, os alunos já associavam à conta bancária. Portanto saldo é diferença entre crédito e débito.

Após o título, o corpo do texto. A primeira coisa que lhes perguntava era se percebiam algumas características interessantes do texto. Poucos alunos diziam que uma das características por eles percebidas era a repetição do "mas pior". A partir daí começava eu a chamar a atenção para algumas características não mencionadas. "A torneira seca" é um dado de realidade.

"Não há água, portanto", ressaltava eu, vendo nos rostos dos alunos certa perplexidade com tamanha descoberta. Descoberta explicável depois, em outros versos. Contudo, o verso posterior (mas pior) parecia mostrar certa adversidade em relação ao dado anterior. Se a torneira está seca, logo concluímos que deveria haver água. Assim começávamos a ver o sentido da adversidade. Explicava eu que era pela conjunção "mas". E dava exemplos de conjunções como estes:

"Ele correu e pegou o ônibus" (1)

"Ele correu, mas não pegou o ônibus" (2).

No exemplo (1), a intenção de quem corre é pegar o ônibus. Uma ação se soma a outra ação. Portanto, a conjunção " e ", aqui no caso, é aditiva — assim explicava a eles. Já no exemplo (2), a intenção de correr para pegar o ônibus não se concretiza, ocorrendo algo contrário ao desejado. Portanto a conjunção "mas" é adversativa.

Isso tudo que fazia era para que eles pudessem aplicar alguns conceitos gramaticais ao texto em análise. Conceitos gramaticais sem o peso de nomenclaturas desnecessárias, como "oração coordenada sindética adversativa", lembrando aqui Sírio Possenti:

Espero que se concorde que essa aula de gramática, e é um tanto irrelevante se, para ministrá-la, usa-se ou não terminologia técnica. Eu sugeriria que se falasse normalmente em concordância, em verbo, em sujeito, em pronome, em plural etc., sem que a terminologia fosse cobrada, de forma que, eventualmente, ela passasse a ser dominada como decorrência de seu uso ativo, e não através de listas de definições[13].

Às vezes, para ver a reação dos alunos, falava de alguma nomenclatura gramatical, e isso fazia que os alunos ficassem levemente assustados.

Esse "mas" do texto, explicava-lhes, revela-nos uma triste aceitação das coisas — aceitação negativa, visto que os versos "a torneira seca" (não há água), "a luz apagada" (não acesa) e "a porta fechada" (não aberta), evocam a palavra "não", sem precisar o poeta escrevê-la.

Portanto os alunos viam que o texto falava de coisas negativas, seguidas de uma aceitação dessas coisas negativas. Uma informação curiosa, explicava a eles, era que o poema fora publicado em 1971, época de chumbo da ditadura militar. Mas, dizia eu, muitas pessoas não se importavam com a falta de liberdade, contentando-se em esperar acontecer o milagre econômico. E, novamente, buscava reforçar a tese de que a literatura é, de alguma forma, reflexo da realidade sócio-histórica.

 

3. Análise do poema "Poema da purificação"

"Eis um poema narrativo do mais estranho mistério", dizia eu aos meus alunos. "Fosse enigma, seria muito mais fácil interpretá-lo. Todo enigma exige decifração, e todo mistério é indecifrável, que exige apenas culto e adoração", citando eu a uma frase de J. A. Pasta Jr. "Que mistério há aqui?", perguntava-lhes.

Devo dizer que muitos acharam a esse poema "bobo", "sem graça" — parece tão simples. Muitos alunos não lêem com profundidade, e imaginação um texto. Talvez ninguém lhes tenha ensinado o ato de ler; e, claro, meu trabalho parecia inútil.

 

Poema da purificação

Depois de tantos combates

o anjo bom matou o anjo mau

e jogou seu corpo no rio.

 

As águas ficaram tintas

de um sangue que não descorava

e os peixes todos morreram.

 

Mas uma luz que ninguém soube

dizer de onde tinha vindo

apareceu para clarear o mundo,

e outro anjo pensou a ferida

do anjo batalhador.

(Carlos Drummond de Andrade)

Contextualizava, assim, o texto: dois anjos entram em constantes combates. Um é bom (todo anjo é bom — eis uma redundância), e o outro, mau (paradoxal qualidade, pois anjo mau?). Depois de muitos combates, finalmente o anjo mau é morto pelo anjo bom, e seu corpo (estranho dizer "corpo", pois anjos são tidos como "seres espirituais") jogado em um rio, — rio cujas águas ficam impuras de sangue, matando, conseqüentemente, os peixes.

Uma luz misteriosa, contudo, aparece para clarear o mundo — até então, não há descrição precisa da escuridão, pois o poema relata (presença predominante de verbos em tempo passado), ao leitor o fim de um combate. Um terceiro anjo entra na história pensando a ferida do anjo batalhador.

"Parece um poema simples? Até aqui, tudo bem. A quem, porém, se refere o 'batalhador'? (Lembremos-nos de que essa palavra — aquele que batalha, aquele que luta — pode se referir ou ao anjo bom, ou ao anjo mau). Eram dois anjos batalhadores…" Via nos alunos já uma certa inquietação…

Se "batalhador" se referir ao anjo bom, estaremos presenciando o triunfo do Bem, e o sofrimento de quem luta por esse triunfo; se ao anjo mau, estaremos presenciando, lembrando aqui o título do poema, não só o triunfo do Bem, como também a purificação de um ser pela morte e a compreensão do mais puro mistério divino. Mistério divino, e da poesia — dissera-lhes…

Usei este texto para mostrar como o poeta desconstruiu certas idéias do nosso imaginário. São frames (quadros) — "modelos globais que contêm o conhecimento comum sobre um conhecimento primário (geralmente situações estereotipadas)[14]". Assim, os anjos do poema, por exemplo, são humanizados, e não seres espirituais tão bem imaginados por nós, explicação minha aos alunos.

E, assim, provava a eles a importância de dominar a linguagem, lembrando-me de Lígia C. Leite,

[…] a linguagem não é só pensamento. A linguagem, assim entendida, não é automática, mas intencional, não mero estoque de palavras (ou regras), mas um modo de usá-las, um trabalho [15] . (Grifos da autora)

Creio terem sido produtivas as minhas aulas de regência, mesmo que em alguns alunos não tenha eu despertado interesse.

 

Conclusões, intervenções…

Algumas idéias foram por mim sugeridas a muitos professores de língua portuguesa com quem convivi, ao longo do estágio e do meu exercício de magistério. Ei-las:

1) Dar textos para serem discutidos, e interpretados, em sala de aula. Assim, possibilitaria que os alunos participassem das aulas. Nas primeiras aplicações, claro, se sentiriam a parte, mas se envolveriam nas aulas;

2) Buscar respeitar a variação lingüística de cada aluno —, muitos, em parte, não procuram trabalhar com essas variações;

3) Fazer que os alunos, adquirindo a consciência do que é texto, o produzam; e, em seguida, troquem suas redações com os outros que leram e entenderam. Se dúvidas de leitura surgirem, devem ser debatidas e, necessitando, corrigidas.

Assim, exercícios de leitura e produções de textos são importantes não só para o desenvolvimento do aprendizado dos alunos como potenciais conhecedores de toda a base cultural da nossa história, mas também para a formação de indivíduos críticos capazes de transformar a própria história.

 

Notas

[1] Cf. REGO, Teresa Cristina. "Configurações sociais e singularidades: o impacto da escola na constituição dos sujeitos". In: KOHL, Marta; SOUSA, Denise Trento R. (orgs.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea, 2002, pp. 47-76.

[2] Apud. REGO, Tereza Cristina. "A indisciplina e o processo educativo: uma análise na perspectiva vygotskiana". In: AQUINO, Júlio G. (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. 1996, p. 91.

[3] Em documento oficial, disponível pela página virtual do MEC, de análise ao PCNEM de Literatura, Haquira Osakabe e Enid Yatsuda falam — sugerindo — de precariedade de formação pedagógica dos professores de muitas faculdades particulares, falta de material pedagógico, despreparo de alunos para a situação escolar etc. Cf.: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/03Literatura.pdf.

[4] DUBET, François. "Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor". Entrevista com François Dubet. Revista Brasileira de Educação, ANPED, São Paulo, n. 5 e 6, p. 223.

[5] Apud. REGO, Tereza Cristina. "A indisciplina e o processo educativo: uma análise na perspectiva vygotskiana", op. cit., p. 101.

[6] Cf. VAL, Maria da Graça Costa. "Atividades de produção de textos escritos em livros didáticos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental". In: ROJO, Roxane & BATISTA, Antonio Augusto G. (orgs.). Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura de escrita, 2003.

[7] Cf. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996, p. 83.

[8] OSAKABE, Haquira. "Linguagem e educação". In: MARTINS, Maria Helena (org.). Questões de linguagem, 2004, pp. 8-9.

[9] POSSENTI, Sírio, op. cit, 1996, p. 83.

[10] Cf. MARCUSHI, L. Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização, 5ª edição, 2004.

[11] Cf. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem, 4ª edição, 2003.

[12] LEITE, Lígia C. M. "Gramática e literatura: desencontros e esperanças". In: GERALDI, J. Wanderley (org.). O texto na sala de aula, 3ª edição, 2004, p. 22.

[13] POSSENTI, Sírio, op. cit., 1996, p. 90.

[14] FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais, 10 ª edição, 2004, p. 65.

[15] LEITE, Lígia C., op. cit., 2004, p. 23.

 

Referências bibliográficas

GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 4ª edição, 2003.

_________. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Editora Ática, 3ª edição, 2004.

MARTINS, Maria Helena (org.). Questões de linguagem. São Paulo: Editora Contexto, 7ª edição, 2004.

MARCUSHI, L. Antonio. "Oralidade e letramento". In: Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez Editora, 5ª edição, 2004, pp. 15-43.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: ALB/ Mercado de Letras, 1996.

FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 10ª edição, 2004.

ROJO, Roxane & BATISTA, Antonio Augusto G. (org.). Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura de escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.

DUBET, François. "Quando o sociólogo quer saber o que é ser professor". Entrevista com François Dubet. Revista Brasileira de Educação, ANPED, São Paulo, n. 5 e 6, 1997, pp. 222-231.

REGO, Tereza Cristina. "A indisciplina e o processo educativo: uma análise na perspectiva vygotskiana". In: AQUINO, Júlio G. (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1996, pp. 83-101.

_________. "Configurações sociais e singularidades: o impacto da escola na constituição dos sujeitos". In: KOHL, Marta; SOUSA, Denise Trento R. (orgs.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Editora Moderna, 2002, pp. 47-76.

"Literatura". Documento disponibilizado pela página virtual do MEC: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/03Literatura.pdf. (acesso: 01/05/2006)

PCNEM.

   

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