Relatório de estágio: possibilidades de leitura das relações em sala de aula

 

Rafael Barreto do Prado

 

"Acabou vendo Joan Brossa 
Que os verbos do catalão 
Tinham coisas por detrás 
Eram só palavras não."
(João Cabral)

 

Introdução

Este trabalho é o relato e a análise da experiência de estágio da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa I. O olhar se volta à sala de aula considerando os aspectos sociais e estruturais como fatores condicionantes do aprendizado. Contudo, não deixa escapar às vistas as particularidades do conhecimento lingüístico trabalhados no curso de Letras.

A escola em cujo estágio foi realizado localiza-se na cidade de Santo André (ABC paulista), no bairro de Santa Terezinha: E. E. Carlina Caçapava de Melo.

Neste ponto do bairro, encontra-se uma micro-região comercial com padarias, mercados, bancos, grandes imobiliárias, concentrados numa movimentada avenida que contorna uma praça atrás da escola. É vizinho de muro da U.E., o teatro Conchita de Moraes, sede da Escola Livre de Teatro – iniciativa pública municipal.

Essa porção de Santo André é de classe média baixa (o que me preocupa é o significado dessa classificação, mas aceito-a por hora, abrindo mão, infelizmente, do rigor sociológico nessa passagem do texto), sofria há pouco tempo com graves problemas de enchentes. A duas quadras da escola, encontramos a Avenida do Estado, que sufoca o Rio Tamanduateí.

A escola também recebe alunos de outras localidades, como de bairros da Zona Leste paulistana, divisa entre São Paulo e Santo André. Ela possui aproximadamente 920 alunos e conta com 13 salas (incluindo duas de recursos – alunos especiais) para aulas que acontecem em três períodos; o quadro de docentes é formado por 47 membros. Foi fundada em 8 de março de 1951. A escola participa do programa “escola da família”, nos fins de semana recebe a comunidade para várias atividades esportivas (karatê, futebol de salão etc.), promove cursos de informática, artesanato e, ainda promove um serviço de orientação psicológica.

Posto isso, numa tentativa de orientar o leitor quanto a localização espaço-tempo, passemos para a organização do trabalho.

Na tentativa de ressaltar os pontos que avaliei mais importante (dentre eles, alguns devido à recorrência), dividi o trabalho em seis tópicos: “projeto para um Projeto”, que procura avaliar a proposta redigida (por mim) antes da ida ao campo de estágio e sua aplicabilidade; “O demônio da televisão: a formação da corporeidade vista na sala de aula”, relaciona a influência da televisão na questão do corpo, se baseando no livro de Alicia Fernandez (A mulher escondida na professora); “A luta de línguas”, focado na relação entre Português Padrão e o dito Não-Padrão, se valendo, além da observação, de uma aula durante a regência que tratou especificamente do tema; “Quando os alunos olham?”, aponta dois momentos em que os alunos se mostraram mais interessados na aula; “Escala Industrial: o sem sentido da escola”, contesta o número de alunos numa sala de aula e cumpre o papel de conclusão.

 

Projeto para um projeto

A construção do aprendizado em aula: confronto de conhecimentos

Numa sala de aula percebe-se a dificuldade dos alunos em relação à ortografia, ao entendimento de um exercício, à leitura de um texto etc. Isso quando é dada a oportunidade de se perceber as dificuldades, uma vez que para tal percepção faz-se necessário a aula em si. E esta, por sua vez, só acontece quando ambos os elementos – professor e aluno – se colocam à disposição (e em condições) de realizá-la[1].

São fatores fundamentais para que a aula aconteça[2]: o interesse e a atenção do aluno, sem as quais é presenciada a cena ridícula (já que ultrapassa o trágico) do professor falando às paredes ou a alguns alunos das carteiras da frente, enquanto o restante da turma direciona a atenção para outro foco – mais interessante e importante naquele momento (?). Essa é a situação vista e relatada por vários educadores na maioria das escolas do ensino público (médio e fundamental). A situação de desinteresse pode ocorrer por conta da constatação, a principio trabalhada como verdade, de que o aprendido na escola está descolado da realidade no sentido da falta de ser “útil”, “prático” (vale perguntar: pra quem e pra quê?).

Na cena ridícula, os estudantes são coagidos a ouvir a autoridade, a se prestar à atenção, donde a Escola perde seu sentido, pois deveriam se encontrar ali pessoas “interessadas”, dispostas, “tomadas por um querer” e não por um dever.

Para examinar (e, pretensiosamente, propor) algumas maneiras de solucionar tal situação: falta de interesse e atenção, este projeto pretende observar como o educador se apropria do conhecimento prévio do aluno e constrói o aprendizado da aula; levando em consideração as particularidades desse aluno e da região em cuja escola se localiza. Tal construção justifica-se se através disso for evidenciado como a “realidade”, o cotidiano desse aluno, não está descolado totalmente do conteúdo programático oficial . “Do ponto de vista da língua, devem adequar seu dialeto à bela linguagem que não é sua, nem a de seus pais, nem a de sua comunidade, mas a única oficial da escola (...)” [3]. Ao ensinar a bela linguagem, por exemplo, o professor coloca em confronto a realidade falada e coloquial com a norma culta. Para o cotidiano do aluno a manifestação da língua é outra. Assim, o conteúdo programático se “cola” no cotidiano do aluno pela negatividade, o que deveria acirrar as contradições.

Forma-se então uma encruzilhada (acaso seja efetivado o que foi dito até aqui).

As relações sociais, condicionadas pelo momento histórico, produzem um conjunto de valores. Os alunos estão imersos nesses valores, seja por conta da família, da escola, dos amigos ou das mídias de massa . “Acusam então os programas, os alunos ou os próprios colegas de profissão. Entretanto, por sua formação e por causa das exigências do contexto em que a escola está inserida, não deixam de transmitir certos valores aos alunos, dia após dia, ano após ano, através de certas práticas pedagógicas: a aprendizagem do sentimento de inferioridade, da submissão, a aprendizagem do ‘cada um por si', da competição, do respeito do status quo, da ordem estabelecida por outros, do medo, do conflito” [4]. O resultado da construção do aprendizado, dado pelo travejamento do conhecimento prévio do aluno e o dito oficial, deve corroborar com os valores produzidos historicamente e tido como pensamento dominante ou contestá-los.

*

Esse texto foi escrito antes da ida ao campo de estágio. Passemos agora às considerações após a experiência prática.

Diante disso, alguns momentos se apresentaram para a aplicação do projeto referido anteriormente. Vejamos a aula do dia 29/03 (ver anexo I):

“A correção se baseia na colocação, na lousa, das respostas corretas, que os alunos vão dizendo. Numa das questões, foi dado um poema do qual os alunos deveriam retirar substantivos.

Professora – Tá dando nome pra coisa? Ë substantivo.

Além de retirar os substantivos, os alunos deveriam separá-los em comum, próprio, abstrato, concreto, primitivo e derivado.

“A professora diz que alguns alunos ao invés de escrever detrit o, escreveram distrito s, no entanto, ela não explicou qual a diferença de significado”.

 Essa foi uma passagem da aula em que a professora poderia se valer dessa confusão dos alunos para fazer algo que a princípio não estava programado no exercício. Poderia fazer uma relação entre os detritos que parecem tomar conta do “nosso” distrito Federal.

Nesse mesmo dia temos outro exemplo:

A professora procura aproveitar todas as respostas dos alunos, no entanto, na próxima fala vemos que isso não ocorre:

(MAR – palavra primitiva)

Aluno – Pesqueiro!

Professora – Será?”

O aluno fez uma associação lógica entre mar – peixe – pesqueiro . Valeria aqui parar e comentar porque tal palavra não era derivada de mar, apesar de fazer todo sentido. Os pesqueiros costumam estar sobre o mar. Segundo a Norma Culta, pesqueiro não deriva de mar, no entanto, logicamente, essa associação é cabível.

Ainda nessa mesma aula, na 5ªA:

“Uma aluna diz: ‘Faz votação! '. A professora não diz nada.

P – Antes de passar para a nova classe de palavras...”

Ao mudar de assunto, a professora deixa passar uma oportunidade de falar sobre democracia e valorizar o que uma aluna falou.

E por fim, como exemplo das aulas de observação, temos, do dia 29/03:

“P – O que é a cabeça e o cabeça?

Alunos – A cabeça é a parte do corpo e o cabeça é o líder.

P – Isso... e o capital e a capital?

A's – O capital é o dinheiro e a capital é uma cidade importante...”

No exemplo de o capital e a capital, a professora poderia ter trabalhado melhor o significado dessas palavras. Falaria de política e de poder financeiro, podendo até relacionar com o momento em que uma aluna falou sobre votação, ou sobre detrito e distrito.

O que quero mostrar aqui são alguns momentos possíveis de interação entre um conhecimento prévio do aluno e o oficial. No entanto, devo deixar claro também as dificuldades. É impossível o professor perceber todos os movimentos numa sala de aula que abriga 40 alunos e, que mais da metade fala ao mesmo tempo. Além disso, evidenciou-se falha a proposição (minha, expressa no texto anterior à ida ao estágio) de que os alunos se interessariam mais pela aula, caso o processo de interação planejado acontecesse. Notei a dinâmica da aula pouco alterada, poucos alunos, além daqueles interessados de sempre, deram um minuto a mais de atenção, logo se dispersando.

Vejamos alguns exemplos durante a regência. Na aula do dia 03/05/06, na qual trabalhei o significado de Trabalho – Emprego – Profissão, comecei a aula fazendo com que os alunos introduzissem os elementos iniciais (ver anexo 2). Para começar a aula, procurei guiar-me através destas três perguntas:

– Do que vocês vão trabalhar? Ou Com o que vocês querem trabalhar?

– Qual o emprego vocês gostariam de ter?

– Que profissão vocês gostariam de exercer?

Das respostas que obtive, propus que alguns alunos fizessem mímica das profissões listadas. Mostrei, segundo o dicionário, a diferença de trabalho, emprego e profissão.

Com isso, procurei ligar elementos particulares aos conteúdos tidos como oficiais. Nas duas primeiras aulas (5ªA e 5ªB), avalio que houve êxito: os alunos se mostraram dispostos a falar e depois a escrever. Questionaram as significações do dicionário e as ditas em sala. Já na terceira aula, a turma estava completamente dispersa e fiquei perdido sem saber como intervir.

No dia 17/05/06, levei para a aula uma música que vários alunos gostam. Apesar de parecer contraditório, uma vez que essa música é trilha de uma telenovela a qual citarei num capítulo mais adiante (O demônio da televisão), me pareceu importante tentar realizar um movimento de superação e crítica à cultura de massa, no sentido de clarear para os alunos a estreiteza do que se ouve nessa música (ver anexo 2):

“Diante dos acontecimentos ligados ao crime organizado no Estado de São Paulo, abordei a significação das palavras rebelde, rebelar e rebelião. Questionei se haveria somente uma forma de se rebelar. Os alunos me responderam que não. Então comentei sobre a situação do Iraque e dos EUA. Questionei se a população brasileira não se revoltava, na prática, diante da insatisfação com o país, uma vez que esse sentimento antecede necessariamente uma rebelião. Segundo as significações retiradas do dicionário (ver anexo 2).”

Apesar de a sala ter participado ativamente, ter escrito e falado sobre várias situações de rebeldia, não tenho como afirmar precisamente se atingi o objetivo final.

Aliás, avaliar a efetividade desse projeto, de uma maneira rigorosa, dependeria de mais tempo em sala de aula e da criação de métodos avaliativos apropriados aos termos do mesmo.

No dia 22/05/06, com as 5ª séries e no dia 24/05/06, com as 6ª séries (ver anexo 2), discuti com os alunos a relação entre português escrito (o chamado Português Padrão) e português falado (o chamado Português-Não-Padrão). Para iniciar a aula, apresentei aos alunos o mundo lusofônico, partindo de questionar aos alunos quais países participantes da Copa do Mundo falavam a Língua Portuguesa e, apontei um fato histórico que unia tais países: excetuando Portugal, todos haviam sido colônias deste.

“A idéia dessa aula surgiu da tentativa de reaproveitar algumas atividades entregues a mim, dos alunos. Selecionei algumas palavras que não atendiam à norma culta, reproduzindo a fala cotidiana. Expus aos alunos e questionei quais mudanças poderíamos promover naquelas palavra para que atendessem à norma. Procurei mostrar a eles a questão do preconceito lingüístico e da variante social (ver anexo 2).”

Os alunos se mostraram interessados e participativos, principalmente na atividade de colocar na lousa palavras na forma falada e pensar em como ficariam segundo a norma.

 

O demônio da televisão: a formação da corporeidade vista na sala de aula

Para este capítulo, tomo como referência o livro de Alicia Fernandez – A mulher escondida na professora – em especial o capítulo “Discurso sobre o corpo”. Nesse capítulo, a autora examina como a corporeidade influencia a formação do pensamento-conhecimento, o processo da relação entre sujeito desejante e sujeito epistêmico, que atravessa o organismo e se vê representada no corpo.

Baseando-se nas três formas de relação do sujeito com o corpo, de Piera Aulagnier: i-) zonas sensoriais, ii-) poder do desejo e iii-) discurso cultural, Fernandez aponta fatos biológicos (gravidez, paternidade, maternidade assistida etc.) com suas leituras históricas (ocidentais) que demonstram aquelas formas.

Um dos pontos do texto que destaco, por se relacionar com meu estágio, é o tópico: “Como nascem os homens? Como nascem as mulheres?”, no qual o papel da televisão, com suas múltiplas imagens condiciona a vários modelos de comportamento e “porte” físico.

Na sala em que estagiei, observei uma forte admiração por uma novela “juvenil”(se assim puder classificar, esse hábito vicioso de se classificar tudo!) – Rebelde – que retrata o cotidiano de adolescentes num colégio de classe alta. Além da TV, os alunos (crianças, pré-adolescentes, enfim...) entram em contato com os modelos corporais e de comportamento dessas personagens, por meio de um álbum de figurinhas. As imagens são sensuais e contemplam o padrão de beleza branco, magro e ocidental.

A relação com o álbum é mais duradoura e presentificada, supera a fração de tempo da exibição televisiva. Os alunos andam com o álbum por todos os cantos, trocam figurinhas (cujo valor é atribuído socialmente, ou por ser a mais rara ou por ser a personagem mais bonita em relação ao gosto pessoal; de certa forma, assumem um segundo valor de troca), exibem pôster etc.

Além da influência direta de imagens externas, há também situações criadas na própria aula, como no dia 19/04/2006, numa sala da 5ª série, a professora colocou a seguinte frase na lousa, para que os alunos identificassem o substantivos e os adjetivos:

“Os meninos jogavam bola e as meninas brincavam com petecas coloridas”. (ver anexo 1)

Essa frase vai completamente ao encontro de uma construção reacionária dos gêneros, os meninos fortes e as meninas delicadas, com petecas coloridas. Os meninos jogavam , as meninas brincavam . “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN, p.36).

Noutro dia (26/04/06, na 6ª série), presenciei essas conversas (ver anexo 1):

“Enquanto a professor coloca na lousa o conteúdo a respeito de Numerais, uns alunos conversam muito, dois deles começam a se ameaçar:

Aluno - Você é homem suficiente?

Aluno - Pode vir.

Outros alunos começam a falar de um garoto que seria gay.

Aluno - Mas deixa, ele que escolheu. E se você' querer' ser mulher depois de velho.”

Na primeira interação, a masculinidade se liga à força (jogar futebol). Em contrapartida à opressão de gênero (tanto para meninos quanto para as meninas), a fala de um outro aluno defende uma suposta escolha da opção sexual.

Um exemplo de atitude positiva da professora foi no episódio do dia 05/04/06, na 5ª série (ver anexo 1):

“Após o tumulto a aula prosseguiu. Um aluno foi para o banheiro, depois de sair, alguns estudantes começaram a dizer coisas em tom de chacota insinuando que aquele menino era homossexual.

Aluna - Pára! Já zoaram ele muito o ano passado.

Professora – Gente, só porque usa brinco é bicha? Não pode usar cabelo comprido? Não é assim gente!”

Aqui a professora pára a aula e questiona os alunos sobre determinados estereótipos.

É preciso atentar a tais situações na sala de aula (quando possível, já que a aula ecoa vozes de 40 tipos) e saber que existe um acumulo já trazido de fora, o qual deveria ser negado na escola, caso tal acumulo corrobore com as tradicionais construções de gênero repressoras.

 

A luta de línguas

Tentar defender a condição legítima de uma língua falada, lógica e coerente – como quer fazer crer a si a norma culta – soa, ainda (!) para muitos (!), uma contradição em termos, quando não uma “terra de ninguém na linguagem”. Sim, porque para muitos é preciso um dono institucional, de papel passado e firma reconhecida. Querem que a língua tenha um proprietário cujo braço forte lhe imponha regras. Calam-se e cegam-se diante da inerente produção coletiva da língua. Alienar o falante de sua própria manifestação é reproduzir, em outra esfera, a alienação do trabalho na sociedade capitalista.

Por conta disso, tentei anotar momentos em que poderia haver o conflito entre o PP e o dito PNP. No dia 19/04/06 (ver anexo 1), a professora colocou na lousa o seguinte exercício:

“8-) Os homem são fortes.

a-) O que há de errado com esta frase?

b-) Como ficaria se estivesse escrita corretamente?”

Após a aula, comentei com ela a respeito da variação lingüística e do preconceito lingüístico. No dia 24/04/06 (ver anexo 1), a professora ressaltou tal questão se referindo ao mesmo exercício, agora noutra sala:

“Professora – Pros meus pais, os homem tá certo. Mas a gente precisa saber o jeito normal de falar português, porque quando formos falar com alguém que fala assim, saibamos”.

Embora ela tenha comentado sobre a variação, o preconceito ganhou cores fortes no trecho “o jeito normal”. Devemos levar em conta o que diz Fiorin: “O primeiro cuidado é, pois, não considerar a linguagem algo totalmente desvinculado da vida social nem perder de vista sua especificidade, reduzindo-a ao nível ideológico” (FIORIN, p.9). Na sala de aula há um compromisso, de certo ponto coercivo, de ensinar a norma culta. Aliás, não só na sala, professores relatam que os pais, ao verem alguma palavra “errada” sem a correção do professor, costumam reclamar. Exige-se socialmente o ensino da norma como forma hegemônica, como se todos falassem esse português, apagando as diferenças regionais, etárias e de classes.

Criticar é muito seguro. Achei coerente abordar na regência o tema. Assim foi nos dias 22 e 25 de maio, cinco aulas – três para as 6ª séries e duas para as 5ª séries (ver anexo 2).

Discuti com os alunos nessa aula a relação entre português escrito (o chamado Português Padrão) e português falado (o chamado Português-Não-Padrão). Apresentei aos alunos o mundo lusofônico, aproveitando-me dos países participantes da copa que falam língua portuguesa e, apontei um fato histórico que unia tais países: excetuando Portugal, todos haviam sido colônias daquele.

A idéia dessa aula surgiu da tentativa de reaproveitar algumas atividades entregues a mim, dos alunos. Selecionei algumas palavras que não atendiam à norma culta e reproduziam a fala. Expus aos alunos e questionei quais mudanças poderíamos promover naquelas palavras para que atendessem à norma. Procurei mostrar a eles a questão do preconceito lingüístico e da variante social. Destaquei também, que a comunicação era realizável com as palavras na forma padrão tanto quanto na forma falada.

 

Quando os alunos olham

Neste tópico pretendo destacar os momentos em que percebi, em cores fortes, um interesse mais detido dos alunos. Tais momentos se deram em dois pontos bem marcados: quando a professora narrava algo, ou um texto para aula, ou uma estória qualquer; quando ela faz a correção dos exercícios. No primeiro, os alunos ficavam em silêncio, apenas ouvindo. No segundo, participavam agitados, respondendo a quase todas as questões.

Durante a narrativa, que é feita pela professora (não presenciei uma leitura coletiva), os alunos se encontram numa posição passiva diante do conhecimento, assumem a tradicional postura do bom aluno, segundo a qual deve-se ser submisso, obediente, passivo. Tais características alojam-se melhores nas mulheres por conta da coerção social (FERNÁNDEZ, p.123-124). “Por outro lado, existe um bombardeio ideológico constante dos meios de comunicação que, por um lado, exaltam o ser violento (destrutivo) como modelo masculino positivo e, por outro lado, não permitem diferenciar esses atos agressivos destrutivos da agressividade sadia e necessária para desconstruir-se e reconstruir-se como sujeito autor da própria história” (idem, p.122).

Durante a correção, o comportamento deixa a passividade, entretanto, o que move é o número de acertos. Quem acerta mais recebe a maior nota, é primeiro, vence a competição.

Ao falar dos momentos em que os alunos estão mais participativos na aula, não posso deixar de falar de um aluno cuja presença física representou pouco a intelectual. Chamarei aqui de R. Na maior parte do tempo em que estive na escola, os comentários sobre ele foram negativos: bagunceiro, não respeita os colegas, bate nas meninas etc. Quando presenciei algum professora falando com ele, o discurso seguia a mesma linha, “você não vê o que está fazendo?”, “o que você vai ser na vida? ”, “por que você não faz as lições?”.

O aluno R é um aluno opressor na sala de aula, talvez porque reproduza o quanto é oprimido fora, ele é negro e pobre. Segundo um professor, os pais trabalham o dia todo e não se interessam (ou não têm tempo!) muito pela vida escolar do filho. O que piora a situação é o caráter sectarista de alguns professores durante as conversas no intervalo, dizendo que fingem não ver esse aluno, que já não “ligam” etc. (vale lembrar que há professores que se esforçam para manter esse aluno “dentro” da aula, criar formas de participação). Eglê Franchi destaca em seu livro uma citação de Liliane Lurçat: “A desvalorização é uma forma sutil de opressão. A opressão engendra a revolta e isso é válido também para a escola. Vivida como opressão, a desvalorização pode engendrar o ressentimento. O ressentimento acumulado contra aqueles que põem sistematicamente em destaque os lados mais fracos do outro, que o ridicularizam aos olhos dos demais e que o desprezam, transforma-se em ódio ” ( “Desvalorização e autodesvalorização na escola”. Em: Democratização do ensino: Meta ou Mito?. Org. Zaida Brandão, Rio de Janeiro; Francisco Alves: 1979, pp. 62-70). Segundo esta passagem, alguns professores estão “dando um tiro no pé”.

Na aula do dia 26 de abril (ver anexo 1), a professora começou a aula com a continuação da matéria: Numeral. Enquanto ela colocava na lousa o aluno R sentou-se a minha frente, de costas para lousa e, ficou olhando as minhas anotações. Começamos a conversar. Convenci-o a ficar ali comigo enquanto eu copiava a matéria, ele me perguntou sobre o que fazia com as anotações, ele se interessou quando disse sobre ter de digitar o trabalho. Então, me contou que já teve um computador, mas não funcionava. Era o computador do clubinho dos meninos pequenos, do qual ele era o chefe.

Ao começar a parte dos exercícios, propus que fizéssemos juntos, ele disse não, porque ele não sabia. Expliquei-lhe a matéria e fizemos juntos a resolução. Evidentemente as escolas não dispõem de um professor para cada aluno “problemático”, o que fazer então com uma sala de 40 alunos?

 

Escala industrial: o sem sentido da escola

Encerrei o tópico anterior falando sobre o número de alunos e começo este da mesma forma, pois, dos problemas que presenciei e dos que foram relatados a mim, nenhum parece ser solucionável acaso este não seja.

A questão central não é o comportamento numa sala lotada, mesmo porque, reconhecemos aqui que a passividade não é a melhor postura para um aluno. Turmas de cursinho acompanham as aulas com 70 ou 100 alunos, muitas turmas de faculdade também: silenciosos, muitas vezes aceitando o conteúdo acriticamente, dessa maneira sendo condicionados a aceitar o que vem de “cima”, ou seja, de uma autoridade dada por um título de valor legal e social, sem questionamento algum. Não é essa a formação que deve ser proporcionada aos estudantes

A forma é a cristalização do conteúdo, hoje a Escola (a Educação) se propõe a formar peças para o mercado de trabalho, em seus níveis básicos prepara para o vestibular, nos posteriores o especialista é modelado para atender às necessidades do mundo contemporâneo. Além disso, submete os alunos à ordem estabelecida e tolhe o espaço de criação e de manifestação. De um lado atende a interesses financeiros e de outros políticos[5].

A professora diz para os alunos copiarem a matéria que falta emprestando o caderno de algum aluno. Mas qual a validade disso, ou até que ponto isso contribui para o aprendizado, sendo que a maioria vai copiar de qualquer jeito apenas para ter visto. Apenas para receber uma “marca de aprovado” que capacita para prosseguir em outro nível. Desse modo sucessivamente até entrar no mundo do trabalho.

Mas, o que poderia mudar com a diminuição do número de alunos numa sala? Possibilitaria principalmente um leque de atividades comprometidas com a formação pessoal e não com uma escala industrial. O professor precisaria se aproximar dos alunos (e vice-versa), perceber as habilidades e deficiências e trabalhá-las de forma a contribuir com o aprendizado do todo. Vale lembrar aqui, que o trabalho da Eglê Franchi se deu numa turma de 16 alunos. Parece simples está fórmula, no entanto veremos que é preciso ir além.

Embora estejamos reivindicando uma nova escola, temos de reconhecer que a atual não consegue cumprir nem mesmo seu desumano projeto de mercado. Não é só a Educação. Toda organização social “burguesa” já não sustenta mais nossa realidade e, a análise desse fracasso não ultrapassa a camada superficial, por exemplo, resolver a violência investindo em segurança[6], resolver o acesso público à universidade comprando vagas em instituições particulares. Essa mesma organização social, que pretende garantir a liberdade, a diversidade, a tolerância, se vale de mecanismos de intolerância institucional para pôr ponto às discussões. Ela não satisfaz o que em tese, pretensamente, propõe. E nunca atingirá isso por conta de sua própria essência contraditória. A miséria e a violência, produtos previsíveis na base de produção capitalista, se voltarão contra ele. “E, no entanto, quando a própria existência da humanidade está em jogo, o único programa realmente praticável é o programa marxiano de reestruturação radical, ‘de cima a baixo', da totalidade das instituições sociais, das condições industriais, políticas e ideológicas da existência atual, de ‘toda maneira de ser' de homens reprimidos pelas condições alienadas e reificadas da ‘commodity society'” (MÉSZÁROS, p. 55).

Diante disso, devemos reconhecer que o problema de superlotação das salas está mal posto. Diminuir o número de alunos não alteraria a formação num sentido contestador da de mercado. Talvez, pelo contrário, capacitaria melhor, com mais cuidado. Mesmo porque, as condições dadas das infra-estruturas seriam as mesmas. O problema da sala de aula não se limita às suas fronteiras. Projetos de cunho libertário, críticos da sociedade de mercado (ou consumista) se aplicados à estrutura educacional somente, tornar-se-ão perenes. É preciso vinculá-los a projetos maiores, que se expandam à rede social por completo.

 

Notas

[1] É preciso levar em consideração antes de tudo que “... o pressuposto de que os homens precisam estar em condições de viver para ‘fazer história'. Mas para viver é preciso antes de mais nada comer e beber, morar, vestir, e ainda, algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é portanto engendrar os meios para satisfação dessas necessidades (...)”. K.MARX F.ENGELS: História. Org. Florestan Fernandes. São Paulo: Ática. 1989. (p.194).

[2] Além disso, pode-se elencar o bom preparo do professor, no âmbito individual. Sem mencionar a infraestrutura do prédio.

[3] Cf. FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis... A redação na escola. São Paulo: Martins Fontes. 1990. (p. XII)

[4] op cit. (pp.XII – XIII).

[5] “E a educação de vocês não está também determinada pela sociedade? Pelas relações sociais em cujo âmbito vocês educam, pela ingerência mais ou menos direta ou indireta da sociedade por meio da escola etc.? Os comunistas não inventam o influxo da sociedade sobre a educação; eles apenas modificam o seu caráter, eles subtraem a educação à influência da classe dominante.” (MARX e ENGELS, O manifesto do partido comunista.)

[6] Basta lembrar o último maio, dias em que a normalidade veio à tona. Os eventos que pararam a maior cidade latino-americana são as marcas da decadência do controle social imputado pelo Capital.

 

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. “Estudos das ideologias e filosofia da linguagem”. Em: Marxismo e filosofia da linguagem . Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. Col. Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. C. Cruz. Ed. Hucitec: São Paulo, 1988. (pp.31-38)

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Ed. Lucerna: Rio de Janeiro, 2003. (37ª edição, revista e ampliada).

FERNÁNDEZ, Alicia. A mulher escondida na professora. Trad. Neusa Kern Hickel. Artes Médicas: Porto Alegre, 1994.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. Ática: São Paulo, 1995. (pp.5-22).

FRANCHI, Eglê. E as crianças eram difíceis... A redação na escola. Martins Fontes: São Paulo, 1987.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Em: Estudos Avançados: Instituto de Estudos Avançados. V. 12, n.º 34, 1998.

MÉSZÁROS, István. A necessidade do controle social. Trad. Mário Duayer. Cadernos Ensaio, Ed. Ensaio: São Paulo, 1987.

 

* Este projeto contém arquivos anexos para download. Eles estão disponíveis logo abaixo, em "Baixar anexos"

   

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