Um exercício do ver: a linguística

 

 Joseane Terto de Souza

 

Este trabalho desenvolve-se a partir dos estágios de observação em Metodologia do Ensino de Lingüística I e II, ministradas pelo professor Valdir Barzotto.

Neste texto, procurei refletir como duas Instituições Privadas de Ensino Superior, A e B[1], procuram ensinar aos seus discentes de Letras o que vem a ser a lingüística como ciência, num primeiro momento, em Lingüística I.

No segundo semestre, em Lingüística II, foquei minhas observações somente em uma Instituição procurando perceber como são feitas as pontes entre o conhecimento lingüístico e o ensino de Língua Portuguesa.

  

O exercício do olhar

Um dos acréscimos na formação docente da disciplina d

e Metodologia do Ensino de Lingüística é a possibilidade de passar de aluna, envolvida nas/com matérias da graduação, à posição de observadora numa sala de graduação. O exercício de observar obriga a um olhar mais crítico e a uma reflexão maior do ensino de Lingüística.

O afastamento possibilita um maior aguçamento do que é a ciência da linguagem, qual o seu papel nas salas de aula e como esse ensino permite aos graduandos refletir a sua realidade lingüística.

Neste ponto, a observação de duas universidades com propostas diferentes: Instituição A e a Instituição B, proporcionou uma reflexão mais rica.

Enquanto a primeira, “objetiva formar profissionais capacitados a atuar no campo da tradução e da interpretação”, a segunda, “organiza-se em disciplinas e atividades voltadas para a formação de docentes de língua portuguesa e de uma língua estrangeira (inglês ou espanhol)”.

Na Instituição A, observei a disciplina - Lingüística: Linguagem, Língua e Fala, totalizando 16 horas. No curso da Instituição B, observei as disciplinas: Lingüística I, Lingüística II e III, ministradas por dois professores distintos, no curso de Letras; e Lingüística II, no curso de tradução, ministrada por uma terceira professora. Totalizando nesta Instituição 30 horas.

Como proposta para o segundo semestre, procurei analisar como a realidade lingüística aparece no ensino de Língua Portuguesa, já que no primeiro semestre apenas detive às observações na forma que são transmitidos os conceitos lingüísticos.

Para que esse estudo pudesse ser mais abrangente, dentro do possível, optei por observar mais uma vez a Instituição A, agora, escolhendo as disciplinas Língua Portuguesa: Sociolingüística, 30 horas, e Língua Portuguesa: Teoria da Gramática, 10 horas. Ambas as disciplinas são ministradas pela mesma docente.

Um maior tempo dentro da mesma Instituição poderia dar maior percepção de como são/estão os conceitos lingüísticos.

Desta forma, busquei perceber como são trabalhados nas disciplinas de Língua Portuguesa os conceitos lingüísticos, primeiro em A, e posteriormente em B. 

  

As primeiras observações na Instituição A

A primeira Instituição a permitir o estágio de observação foi a Instituição A, que tem cerca de 30 anos de fundação. Posteriormente, surgiu a possibilidade de estagiar na Instituição B.

A disciplina Lingüística: Linguagem, Língua e Fala é oferecida aos alunos do 3º semestre, porém, a docente me avisou que era uma nova disciplina e estava entrando pela primeira vez na grade curricular. A aula ocorre uma vez por semana, com duração de uma hora e meia, ministrada por uma professora que foi muito receptiva, apresentando-me a sala.

O curso na Instituição é voltado para um público bem definido, o aluno de tradução/intérprete, principalmente, o de inglês, a apresentação do curso no sítio é bem clara neste sentido.

É bem focado: tradução e interpretação. Se quiser dedicar-se ao exercício do magistério, caberá ao aluno procurar uma complementação pedagógica. Todas as disciplinas do curso de inglês estão neste foco: são quatro disciplinas de lingüística, duas delas aplicadas à língua inglesa , doze à língua portuguesa e vinte quatro à língua inglesa.

Já o curso de Letras com habilitação em espanhol/português está voltado para o bacharelado e a licenciatura, mas não tive contato com este curso. A habilitação de espanhol, bacharelado e licenciatura, é apresentada como referência em sua área, além de ser “moderno e ágil”. O “ágil” pode ficar por conta dos seis (06) semestres da grade curricular. Pelo que pude perceber, a “menina dos olhos” é o curso de inglês.

Para explicar os tópicos da disciplina, são adotadas apostilas elaboradas pela docente, e enviadas por correio eletrônico aos alunos uma semana antes. Estes me enviaram todo o material que já tinha sido utilizado.

Não foi adotado nenhum livro ou mesmo capítulo de livro para essa matéria, apenas apostilas, porém, a professora sempre procura trazer indicações bibliográficas, de filmes e de artigos para os alunos.

  

As aulas

Não pude acompanhar o semestre inteiro da disciplina, iniciei quase no final do semestre, acompanhei apenas oito aulas, mas pelo que pude observar a disciplina objetiva permitir aos discentes uma reflexão do que é a sua língua, como mesmo ressalta a professora – “o que quero e que posso dar é uma bagagem para os alunos do que seja lingüística e como ela está presente constantemente no seu cotidiano. Quero que, ao verem televisão, lerem o jornal ou assistam a um filme, consigam enxergar as possibilidades de sua língua”.

A primeira aula foi continuação da semana anterior, pautada na apostila “Os estudos da linguagem e a lingüística” fundamentada no livro de Julia Kristeva – História da Linguagem, porém no rodapé há a citação de outros textos utilizados: Lições de lingüística geral, de Eugenio Coseriu; Princípios de lingüística geral, de J. Mattoso Camara Jr. e O que é lingüística, de Eni Orlando. Consultando também os dicionários de Ducrot e Todorov e o de David Crystal.

Lendo a apostila e comparando-a aos textos que a embasaram, pude perceber que a docente elaborou a apostila usando, principalmente, a primeira e a segunda parte do livro de Kristeva, e alguns tópicos d' O que é lingüística?

Pelo acompanhamento das aulas e das conversas com a professora, os trechos escolhidos para fazerem parte da apostila são os que dão uma apresentação mais geral da história da lingüística, e os aspectos mais relevantes desta história. Essa impressão parece corroborar com suas aulas.

Na sua explanação, a professora desenha uma linha do tempo (já dada na semana anterior) para relembrar o surgimento da lingüística. Lembra que para a lingüística se tornar uma ciência precisou adotar o vocabulário das ciências biológicas, isto é, de uma linguagem científica.

A professora acrescenta ainda que ao olhar qualquer objeto você fará sempre recortes conforme seu ponto de vista, de sua formação – Saussure já dizia “o ponto de vista faz o objeto”. Nenhum cientista é neutro, essa distância não é absoluta. Explica o que é a língua, as dicotomias, porque para Saussure o importante era a sincronia, algumas das metáforas de Saussure, a diferença de Saussure e Chomsky, procurando sempre exemplificar.

Para um melhor aprofundamento das questões a professora indica o livro de Eleonora Albano, Falando de ouvido – sobre aquisição de linguagem e o dicionário American Heritage que ao final apresenta uma lista de palavras provindas do indo-europeu. Destacando que indo-europeu não era uma língua falada por algum povo, mas uma ampla família lingüística.

Na segunda aula, a docente retoma as dicotomias de Saussure. Ressalta para a classe que tudo é muito superficial (durante a sua formação houve um semestre todo do “curso do pai”), é importante para os futuros profissionais um maior aprofundamento dessas questões.

Termina a aula com um exercício em grupo de seis alunos, para a professora é a melhor forma, pelo reduzido tempo, de explicar questões como o par mínimo e a distribuição.

Na terceira aula a professora explicou a aquisição da linguagem por meio da psicanálise, pela simbolização. Coloca que a primeira simbolização da criança é a presença e a ausência materna – o que é fundamental, pois a língua é feita dessa presença e ausência.

Cita os estudos de Leopold Verner, na década de 60, sobre aquisição da linguagem e a impermeabilidade à correção que a criança tem até certa idade.

Coloca também os estudos dos dêiticos de Benveniste e como isso está relacionado com a percepção da criança dela mesma e dos outros.

Retoma as questões do signo/palavras e de como está relacionado com o recorte que se faz do sistema. Lembra o documentário “Corações e mentes” que mostra o pré conceito de que os orientais não sentem dor como os ocidentais. Para contrastar essa idéia aparece uma cena de uma mãe chorando sobre o corpo do filho, e a partir dessa cena dá-se o jogo do que é pré concebido e o que é real. Você não vê porque seus olhos não querem ver.

Explica o desenho do significado e significante de Saussure e indica Os escritos de Saussure.

Lembra também que o significado tem que estar colado ao significante, exemplifica com as pessoas que cantam em outro idioma sem saber o que está cantando; na verdade essa pessoa está produzindo sons e não significados. O signo é relacional, você recorta o signo em relação ao outro, exemplo disso ocorre em frases como: cocadaboa, casasamarelas, euaprendo alguma coisa, entre outras.

Na quarta aula a apostila usada é “A teoria Saussuriana” embasada no Curso de Lingüística geral, de Saussure, mas também houve a consulta ao texto As idéias de Saussure ou em inglês Ferdinand de Saussure, de Jonathan Culler, no rodapé da apostila a professora indica que tanto a tradução como a versão em inglês encontra-se na Biblioteca da Universidade de São Paulo. A professora disponibiliza para a sala a sua xerox da versão em inglês.

Pensando na forma como foi estruturada a aula e a própria ressalva que a professora fez sobre não aprofundar na fonologia, pois há dois semestres centrados neste tema, a seleção está direcionada para os temas mais gerais do livro, de forma a dar um panorama geral do Curso e alguns conceitos fundamentais ao estudante de Letras, como as quatro dicotomias. Indica como básico para os alunos lerem do livro o capítulo “Objetivo da Lingüística”.

Retoma a escolha de Saussure pelo estudo sincrônico (pelos falantes do aqui e agora).

Para explicar o eixo sintagmático (relacionado com a semântica) e o paradigmático (organização de palavras numa frase) a docente exemplifica com uma poesia em inglês e as possibilidades de escolha, e qual o tradutor escolheu. E é um problema para o tradutor essas opções do campo semântico, pois o filtro usado será a sua língua materna.

Indica o livro Sobre a metáfora ou em inglês On Methaphor, do filósofo americano Davidson sobre o jogo de deslocamentos do significado.

A quinta aula trata das noções gerais de fonética e fonologia, e parece corroborar com as impressões sobre a escolha do que foi selecionado do livro para a apostila.

A partir de um excerto de Albano[2] explica as diferenças entre a fonética e a fonologia; a diferença da sociolingüística de hoje (trabalha com as diferenças) a de Saussure (que o importante é a semelhança).

Que somente quando se conhece a língua você sabe onde cortar o segmento ouvido (o contínuo), isto é, as palavras, e essa são de difícil definição para os lingüistas – no senso comum é cada pedaço que tem sentido integral.

Indica o filme “Victor, o menino selvagem” que trata bem a questão do contato lingüístico para a aquisição de linguagem.

Coloca ainda, que muitos procuraram à origem da linguagem na sociologia, na história, no mito, na aquisição de linguagem (por exemplo, Pinker). É uma questão muito complexa, tanto que James Joyce ao consultar Jung (por causa de sua filha esquizofrênica) lhe fala: “aonde você nada de braçada, a sua filha se afoga”. A própria Bíblia trás essa questão – “o verbo se faz carne, e habitou entre nós”.

As últimas três aulas são dedicadas a tirar dúvidas e a revisão do conteúdo por meio de questionário.

O exercício seria uma forma de o aluno ler a apostila, lembrar do que foi dado e se precisar tirar dúvidas, fazer via correio eletrônico com a professora. Ela ressalta que o questionário não é parecido com o que será cobrado na prova.

 

Algumas considerações

Se por um lado, o curso por “n” motivos (seja pela falta de tempo, pelo público-alvo, por ser na teoria uma coisa e na prática outra) não faz a adoção de livros para a disciplina, por outro lado, tem como ponto forte a formação da docente.

Suas explicações são consistentes e ela busca sempre trazer novos elementos (música, filmes, livros, artigos) para os discentes.

Percebe-se que suas explicações são direcionadas para tentar sanar essa falha do curso. Ela sempre encoraja os alunos a pesquisarem fora da sala de aula, e pelo que pude acompanhar, alguns deles acabam se sentindo tão estimulados que produzem trabalhos que chegam a ser até premiados[3].

  

Continuando o exercício do olhar, agora na Instituição B

Depois que iniciei na primeira Instituição obtive resposta que poderia iniciar o estágio no curso de Letras na Instituição B que, pelo seu tempo de existência, é considerada um curso tradicional.

A possibilidade de estagiar em três disciplinas diferentes (Lingüística I, II e III) me pareceu uma nova possibilidade de observar o ensino de lingüística.

As trinta horas observadas na Instituição se dividem em: doze horas em Lingüística I , doze em Lingüística II (duas delas no curso de Tradução) e seis horas em Lingüística III. Todas as aulas têm duração de duas horas. Cada disciplina é ministrada por um professor diferente que tem em comum a mesma formação acadêmica.

O curso de Letras está direcionado para a formação de docentes de língua portuguesa e de uma língua estrangeira (inglês ou espanhol).

Já o curso de Tradução busca formar profissionais com domínio instrumental e técnico em francês ou inglês, além de prepará-los para a elaboração e revisão de textos.

Minhas observações serão focadas no curso de Letras, já que tive contato apenas uma vez com o curso de Tradução. Optando também pelo curso de Letras, pois já observava o curso de Tradução na Instituição A.

A grade do curso de Letras, tanto de Português/Espanhol quanto de Português/Inglês, foca principalmente, a formação de docentes de língua portuguesa. Na grade há sete disciplinas de lingüística.

  

Linguística I

A disciplina de Lingüística I, segundo a docente, objetiva dar um conhecimento abrangente do que seja essa Ciência e os seus principais autores. A partir do segundo semestre haveria um aprofundamento de uma área (semântica, pragmática, sociolingüística, entre outras).

A primeira aula que assisti com a professora houve um trabalho em grupo sobre um trecho de um livro sorteado aleatoriamente. Depois de lido o excerto deveria ser apresentado para a classe (em cinco minutos) o que foi entendido. Os temas foram: palavra é signo, variação lingüística, língua e sociedade, visão de mundo, lingüística e gramática normativa.

Para a semana seguinte são pedidos os capítulos “Linguagem animal”, de Edward Lopes e “Comunicação animal e linguagem humana”, de Benveniste.

Nas duas aulas seguintes há uma discussão sobre o capítulo de Edward Lopes e Benveniste. Há ainda a explicação da diferença entre linguagem humana e comunicação animal, entre signo e índice e da dupla articulação de Malmbeg.

A professora trás sempre um material de apoio para ajudar na reflexão ou mesmo para ajudar na memorização. Da leitura desse material, os alunos fazem muitas perguntas, e as fazem até realmente acharem que compreenderam.

Os alunos querem saber se o som precede a grafia. A docente responde que não necessariamente, porque há muitas tribos ágrafas, mas há quem diga que os desenhos rupestres surgiram antes da fala.

Antes de terminar a aula a professora passa um questionário “para pensar” sobre língua, cultura e visão de mundo.

As duas semanas de aulas seguintes são para explicar as funções de linguagem de Jakobson, tendo como apoio o capítulo das funções, do livro Lingüística e comunicação .

A professora explica um pouco do contexto histórico e o porquê dessa teoria estar mais preocupada com a teoria da comunicação do que as teorias lingüísticas. Para ajudar na memorização a docente dá uma folha com um resumo das funções. Traz ainda dois exercícios para ajudar no entendimento.

Para dar um panorama geral dos autores que trabalharam com as funções da linguagem, a professora desenha uma tabela no quadro com os autores: Büchler (1934), Jakobson (1961), Dell Hynes (1968), Lyones (1977) e Brown e Yule (1983). Coloca que não irá se aprofundar nesses autores, mas que é importante saber quem são eles, e quais elementos do processo comunicativo aparece em cada teórico.

No último dia de observação, a professora convidou todos os alunos a assistirem a uma apresentação de Trabalho de Graduação Individual (TGI) de uma aluna que estagiou no Timor Leste.

Antes que a aluna iniciasse a apresentação, a professora colocou que não era um projeto para ensinar gramática, mas sim de como é possível se comunicar através da música. Comunicação é muito importante para os povos, e neste momento, essencial para o povo timorense.

Convida os alunos a se dedicarem ao estudo de sua língua materna, e a futuramente participarem do projeto que irá para Moçambique.

  

Linguística II

A disciplina de Lingüística II focou a pragmática, estudando o princípio de cooperação (máximas conversacionais) e os atos de fala. Para maior entendimento da matéria, o professor passou quatro exercícios.

Do conteúdo passado, o professor cumpre a proposta que está na página de apresentação do Curso, ou seja, volta-se para “uma formação clássica”. Como a sala não faz perguntas, não dá para saber como são recebidas essas informações.

Em Lingüística II, no curso de Tradução, não pude fazer uma maior observação, pois só assisti a uma aula, e essa era de correção de exercícios. O que pude notar é que é uma turma que quase não participa da aula.

  

Linguística III

A disciplina de Lingüística III foca o estudo da lingüística histórica e é ministrada pelo mesmo professor de Lingüística II.

O conteúdo passado foi: a mudança lingüística e os níveis de análise lingüística e as línguas vistas pela perspectiva histórica.

Para explicar a mudança sonora é desenhada uma tabela que compara o indo-europeu com o irlandês antigo, exemplificado também com o latim e o português; fala do livro A língua de Eulália, de Marcos Bagno que dá pistas sobre como ver as mudanças da língua.

Explana ainda sobre as mudanças gramaticais, analogia, mudanças semânticas (neologismo, arcaísmo e deslocamento semântico). Indica como leitura o livro de Callou Leite, Como falam os brasileiros.

Na aula de perspectiva histórica, explica a lingüística histórico-comparativa do século XIX. Dá um panorama geral, sem se aprofundar nas explicações, diz que, para um maior aprofundamento, deveria ter um semestre de historiografia lingüística.

 

Algumas considerações

Ao contrário da Instituição A, nessa há a adoção de livros, de capítulos de livros e artigos. Os professores são doutores, formados em Instituições públicas, porém não percebi uma cobrança, em Lingüística I e II, para que os alunos dessem retorno do que estavam lendo.

Quem procurou estimular um retorno do que estava sendo dado foi a professora de Lingüística I, que fazia os alunos explicarem para a sala o que tinham entendido da disciplina.

  

Buscando um novo olhar na Instituição A

No primeiro semestre, o afastamento da posição de aluna ouvinte para aluna observadora, nas disciplinas de graduação no curso de Letras, tornou possível o exercício de um olhar mais crítico e a uma maior reflexão do ensino de lingüística.

Esse afastamento foi essencial para um maior aguçamento da ciência da linguagem, o seu papel nas salas de aula e se o ensino permite aos graduandos refletir sobre o seu conhecimento lingüístico.

Como proposta para o segundo semestre, procurei analisar como essa realidade aparece no ensino de língua portuguesa, já que no semestre anterior a disciplina observada foi a de Lingüística: Linguagem, Língua e Fala. 

 

O ensino de Linguística na Língua Portuguesa

Iniciado o segundo semestre, havia a opção de fazer o estágio em uma outra Instituição de ensino ou permanecer em uma das já observadas. Optei por observar mais um semestre na Instituição A o que permitiria um estudo mais longitudinal do ensino de Lingüística.

Como proposta para o segundo semestre, procurei analisar como o conhecimento de lingüística aparece no ensino de Língua Portuguesa, tentando perceber como são trabalhados nessas disciplinas os conceitos lingüísticos.

Sendo uma das definições de lingüística[4] o “estudo científico da língua”, espera-se que as disciplinas ofereçam aos discentes a possibilidade, a partir de sua língua, de fazer ciência. Partindo desta definição foquei minhas observações no que a Instituição oferece aos seus alunos.

Ao contrário do que tinha ocorrido no semestre anterior, no qual só acompanhei só as aulas finais, por ter aberto precedentes, observei todo o semestre.

A disciplina de Língua Portuguesa: Teoria Gramatical visa, de forma geral, discutir a “tensão entre sujeito e língua”, e entre os objetivos da disciplina de Língua Portuguesa: Sociolingüística também está a discussão da “tensão entre sujeito e língua”.

  

As aulas de Língua Portuguesa: Teoria gramatical

Comecei o estágio assistindo a Língua Portuguesa: Teoria Gramatical da qual observei 10 horas, porém ao assistir Língua Portuguesa: Sociolingüística - achei que poderia (como foi) ser mais produtivo para as minhas observações uma disciplina em que houvesse trabalhos aplicados.

Na primeira aula a professora fez uma breve contextualização da história da Teoria Gramatical. Coloca que por causa da Guerra, entre o século XX e 1920, há um êxodo de cientistas para os Estados Unidos.

Entre esses cientistas estava Franz Boas que fez estudos comparativos para verificar a evolução da língua. Estudou com Sapir, porém não se destacou como o seu mestre, mas seus estudos foram importantes. Não se ligou ao grupo evolucionista da língua.

Outro cientista advindo deste êxodo foi Palov, conhecido pelos seus trabalhos de estímulo-resposta. Ganhador de um Nobel. Estava entre os cientistas da Teoria do comportamento (“Não sei o que se passa na mente”).

Essa teoria ficará vigente até 1950, com a entrada de Chomsky, chamado de mentalista. Para ele o mais importante pesquisador de estímulo-resposta foi Skinner.

A professora fala da divergência entre Skinner e Chomsky sobre o artigo “Verbal Behavior” de Skinner. Desenhando o seguinte esquema:

figura1

Na aula seguinte a professora retoma a explicação sobre o behaviorismo e sobre o que Chomsky chama de LAD ( Language Advantaged Device) – uma rede de neurônios que só os seres humanos nascem com esse dispositivo. É o que se chama de faculdade (capacidade) da linguagem, algo inato.

Para Chomsky não há nada em comum entre o homem e os animais, estes nascem com uma programação limitada.

Introduz o que vem a ser a Gramática Universal (GU): princípios gerais em todas as línguas do mundo. Por exemplo, se todas as línguas têm pronomes, mas são usados de forma diferente esses princípios irão se adaptar a língua que você fala.

A capacidade é inata, a competência é adquirida e está na gramática. Nasce-se com a capacidade para aprender qualquer língua, ao entrar em contato com uma ou duas línguas adquire-se o conhecimento destas.

O bilingüismo é a capacidade de grau. Você tem as duas competências operando e há uma língua que fica “meio” que de lado, mas está lá e o grau é diferente. O bilingüismo não é perfeito em duas línguas, você sempre fala uma melhor. A pessoa tem um comportamento lingüístico diferenciado.

Em uma outra aula a docente começou a explicar o capítulo 1, de Carlos Mioto, Florianópolis: Insular, 2000. Na verdade esse capítulo foi divido ao longo de algumas aulas.

A professora iniciou explicando a importância de se ter ciência, de se ter um objeto de estudo e uma teoria. Retoma um pouco da história da teoria gramatical, gramática gerativa (GG) e gramática universal (GU).

Na aula seguinte a professora constrói um paralelo com as explicações do físico Marcelo Gleiser, no programa “ Poeira das estrelas” do Fantástico, ao explicar o surgimento do Universo com a lingüística. A lingüística é como a física, exige um maior esforço para seu entendimento. Com um pouco de empenho é possível entender o que é um modelo teórico e um postulado.

A proposta de Chomsky foi fazer da Lingüística uma ciência como, por exemplo, a Física. Quando ele postulou que a pessoa nasce com a capacidade da linguagem (inatismo), seus estudos não comprovavam seu postulado.

Não há no conceito de Chomsky o “certo” ou “errado”, porque esses conceitos só existem na gramática normativa ou tradicional, para ele é gramatical ou agramatical (há ou não erros na sentença).

E* - João viu [cadeira a]

artigo ___

Para Chomsky só existe erro de estrutura se for estrangeiro ou tiver uma patologia. Ele não faz estudo de corpus, mas por intuição. Por isso, não é preciso uma comprovação empírica, e isto é possível, pois os estudos de física são feitos dessa forma.

Na outra aula a docente explicou o conceito de gramática, a partir da página 17 do livro de Mioto. A aula foi reforçada pelo resumo “Receita de estudo caseiro do ‘pudim de passas' da lingüística” e pelo artigo “Novos Horizontes no Estudo da Linguagem”, parte II, artigo publicado na revista DELTA, vol 13, 1997.

 

As aulas de Língua Portuguesa: Sociolingüística

A disciplina é dada aos alunos do 6º período que já viram os conceitos fundamentais de lingüística e os de teoria gramatical. Optei por observar mais estas disciplinas por terem como avaliação seminários apresentados pelos alunos sobre algum ponto da matéria dada.

Perguntei a docente qual seria o objetivo do curso, ela me respondeu que espera que ao final da disciplina os alunos percam alguns preconceitos com relação aos diferentes “falares” e fazê-los perceber que o português é muito mais rico do que é estudado nas gramáticas.

A professora explana um breve histórico da disciplina começando por relembrar os conceitos de Saussure sobre língua, as dicotomias, porque para ele o importante era a sincronia, algumas das metáforas do “pai”, a diferença de Saussure e Chomsky, procurando exemplificar.

Como procurava ver como os alunos entendem os conceitos lingüísticos e como os aplicam na língua portuguesa, procurei assistir mais as aulas de Sociolingüística, 30 horas, do que as de Teoria Gramatical.

Na segunda aula a docente explicou o “nascimento” da Sociolingüística. Começou explicando que o interesse de estudar a relação entre o social e a língua surgiu na China. Cita os principais estudiosos da relação língua e sociedade no ocidente:

Basil Bernstein – especialista inglês em sociologia da educação. Observa a diferença no uso da língua. Seus estudos partem do social. Lançou o livro Black English Vernacular (BEV).

Labov critica a separação entre o lingüístico e o social a partir deste livro de Bernstein.

William Bright – faleceu em 2006, organizou o congresso no qual nasceu a sociolingüística. Vários pesquisadores participam apresentando seus trabalhos, entre eles estavam: Labov, Dell Hymes, John Gumperz, Einar Haugen, entre outros.

O nome sociolingüística foi o nome inventado por Bright para juntar os trabalhos de sociologia e de lingüística. Ele criou o nome, mas não é o criador da matéria, o “pai” é coletivo.

Seus estudos mostraram que existiam variações e elas não eram livres, variavam conforme a classe social. A professora exemplifica usando o fonema /r/ para o caipira, para o carioca e para o paulista. Essa variação não é livre depende das regras sociais. A variação identifica a origem.

Ressalta que como o curso é de um semestre focará no trabalho de Labov para explicar a sociolingüística, pois seu trabalho definiu mais esta ciência.

Na aula seguinte a docente continua a desenhar um panorama histórico da sociolingüística. A aula se pautou no capítulo 1, “A luta por uma concepção social”, do livro de Louis-Jean Calvet, Sociolingüística: uma introdução crítica. Trad. Marcos Marcionilo, São Paulo: Parábola, 2002; e no capítulo 1 “Sociolingüística (parte I)”, do livro Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. Vol. 1. Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes (Orgs.) São Paulo: Cortez, 2001.

Acredito que a professora escolheu esses dois capítulos para dar um panorama sobre o surgimento da sociolingüística e começar introduzir a questão da variação. O decorrer da aula parece confirmar essa observação.

A outra aula foi baseada no capítulo 2, “Línguas em contato”, do livro de Louis-Jean Calvet, Sociolingüística: uma introdução crítica. Trad. Marcos Marcionilo, São Paulo: Parábola, 2002; e na parte II (do capítulo 1 de Sociolingüística) do livro Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. Vol. 1. Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes (Orgs.) São Paulo: Cortez, 2001.

Ao adotar estes capítulos parece que a professora procurava introduzir a idéia de variantes lingüísticas e sociais, línguas francas, pidgin e crioulos. O transcorrer da aula confirma essa impressão. Um dos grupos que apresentarão o seminário se interessa por este ponto do curso.

Fala sobre variante padrão ou de prestígio e variante não-padrão ou estigmatizada. Cita seu exemplo quanto chegou em “Sum Paulo”. Que fatores como idade, sexo e ocupação motivam a distinção (lexical e sintática).

Na aula seguinte a docente define os conceitos de variação e variante, e porque se ignorou a variação lingüística (antes o estudo da lingüística era considerado algo uniforme) e de como é importante ter mente que as línguas variam na hora de ensinar a língua materna.

A aula foi pautada no capítulo 1 “A sociolingüística e o fenômeno da diversidade na língua de um grupo social”, do livro Sociolingüística: os níveis da fala, de Dino Preti. Além desse capítulo, a professora deixou quatro apostilas no xerox (relacionado também as aulas anteriores).

Na aula seguinte a docente explica o problema da uniformidade lingüística a partir do capítulo 2, “A Norma e os Fatores de Unificação Lingüística na Comunidade”, do livro Sociolingüística: os níveis da fala, de Dino Preti.

Na semana seguinte a professora reuniu os cinco grupos que apresentariam os seminários para verificar como estavam os pesquisas. Para dar um parâmetro aos alunos do que ela esperava do trabalho, deixou no xerox o que foi produzido pela turma anterior: “O erro sob a mira da sociolingüística”.

A partir deste ponto, passo a observar somente as aulas de Sociolingüística em que os alunos apresentarão seminários num segundomomento.

Os temas apresentados nos seminários são: “Crioulização do português”; “Spanglish”; “Falar e escrever, eis a questão”; “A norma culta” e “A polêmica sobre os ‘estrangeirismos' no cotidiano brasileiro”.

Os temas foram escolhidos pelos alunos que já tinham algum interesse pela temática, e a partir de uma bibliografia básica indicada pela professora os alunos deveriam pensar qual a melhor forma de explicar para a sala.

De forma geral, os grupos foram atrás de outros livros e artigos para explicar o assunto, fazendo pontes com o ensino da língua materna. O grupo, por exemplo, de estrangeirismos foi ao shopping fotografar as vitrines para mostrar que 70% das vitrines não são nomes em português.

O mais interessante desses grupos não foi notar que houve um trabalho de pesquisa e uma busca por material, e sim notar como os alunos apresentam os conteúdos estudados, ou seja, de que forma eles apresentam seus valores dentro do que é ensinado.

Desses cinco grupos o que mais chamou a atenção foi justamente o que apresentou os estrangeirismos, para eles as palavras estrangeiras só entram na língua portuguesa por causa da falta de escolaridade da população que assiste à televisão.

Os meios de comunicação de massa seriam os grandes responsáveis pela falta de cultura brasileira, e os estrangeirismos são apenas reflexo da ignorância da população. Já os estudados tendo consciência da sua língua evitariam esse tipo de palavras, só usariam os estrangeirismos nas situações necessárias, como, por exemplo, no trabalho ou numa escola bilíngüe.

Dessa modo, foi muito importante assistir aos seminários porque uma coisa é ensinar a linguística, outra é a aceitação desses conteúdos. E este é o grande desafio do professor desta disciplina.

Como este aluno não teve, provavelmente, acesso nos anos escolares básicos de conceitos linguísticos, no ensino superior em Letras fica difícil que os discentes percebam a linguística como uma ferramenta de auxílio.

Devesse pensar de que forma o conteúdo linguístico pode aparecer em todos graus de escolaridade, pois se somente ensinado no ensino superior pode não auxiliar na formação do docente, criando uma impermeabilização a linguística.

 

Considerações finais

Define-se[6] lingüística como o “estudo científico da língua”, então as disciplinas de lingüística devem oferecer ao aluno de Letras a possibilidade, a partir de sua língua, de fazer ciência.

O afastamento do papel de aluna, deste ponto, possibilitou um maior aguçamento do que é a ciência da linguagem, qual o seu papel nas salas de aula e como esse ensino permite aos graduandos refletir a sua realidade lingüística.

Dessa forma, ao término do estágio considero que o objetivo do professor de lingüística deve ser semelhante ao professor de português para ILARI[7], deve “ampliar a capacidade de comunicação, expressão e integração pela linguagem da população atingida por seu trabalho (...)”.

Assim, o professor pode tentar sensibilizar o seu aluno de que a Lingüística é uma ferramenta interessante para ele, como professor de Língua Portuguesa, e não a ciência “que aceita tudo”. Uma forma de transmitir uma visão “desautomatizada” dos fatos correntes da língua.

Tendo a consciência de que os lingüistas não “aceitam tudo”, mas têm um papel político que é o de transferir os seus conhecimentos adquiridos, além de combater os que se proclamam especialistas e estão desvinculados da pesquisa científica.

Cabendo ao docente trazer a Lingüística o mais próximo da realidade dos alunos, como, por exemplo, na construção de paralelos com o seu cotidiano, ou seja:

(...) ensinar lingüística nos cursos de Letras não é passar receitas prontas para os problemas de análise sintática, nem expor magistralmente teorias e modelos prestigiosos junto à própria comunidade dos lingüistas (...). (ILARI, 1985: 11)

De forma geral, acho que os alunos das Instituições observadas são estimulados a conhecer sua realidade lingüística, mas somente um maior acompanhamento dos cursos permitiria saber se ao final da graduação o aluno adquire essa sensibilidade.

Porém, é importante termos em mente que o ensino de lingüística não deve tomá-la como apenas um objeto, da mesma forma que não se deve ver o aluno como algo que se deva ser ensinado de forma esquemática:

Faculdade > aluno > profissional/professor

É importante pensar o aluno como um todo, como alguém que lida com “a historicidade da linguagem, o sujeito e suas atividades lingüísticas e o contexto social das interações verbais”. (GERALDI, 1997: 7)

figura2

Desse modo, os cursos de “Letras precisam também assumir a agilidade suficiente para formar um profissional sensível à diversidade das situações sociais, capaz de trabalhar basicamente com a língua falada (...)”. (ILARI, 1985: 14)

 

Notas

[1] Por uma questão de sigilo, as Instituições observadas serão denominadas genericamente de Instituição A e Instituição B, assim, podendo analisá-las de forma mais isenta.

[2] Fonética é uma ciência natural que torna o som lingüístico como realidade física, enquanto a Fonologia é uma ciência social, uma vez que encara o som lingüístico como realidade semiológica.

[3] Estava presente quando o aluno foi entregar (e agradecer o incentivo da professora) o livro que continha um texto seu baseado em sociolingüística e que foi selecionado para ser publicado pela UNESCO. Este texto foi um dos cem escolhidos de 51.253 inscritos.

[4] R.L. TRASK, Dicionário de linguagem e lingüística. trad. Rodolfo Ilari; ver. técnica Ingedore Villaça Koch, Thaïs Cristófaro Silva. São Paulo: Contexto, 2004. p. 177.

[5] LAD (dispositivo de aquisição da linguagem) seria um órgão mental hipotético cuja função específica é a aquisição da primeira língua. Porém, nos últimos anos, o próprio Chomsky parece ter abandonado sua proposta de um LAD em favor de uma teoria ainda mais forte: o modelo da fixação, ou marcação, dos parâmetros.

[6] R.L. TRASK,. Dicionário de linguagem e lingüística. trad. Rodolfo Ilari; ver. técnica Ingedore Villaça Koch, Thaïs Cristófaro Silva. São Paulo: Contexto, 2004. p. 177.

[7] Rodolfo Ilari, A Lingüística e o ensino de Língua Portuguesa, 1985, p. 7.

 

Referências bibliográficas

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Lingüística. São Paulo: Scipione, 1993.

GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.

_____________. A Lingüística e o ensino de Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1985.

KRISTEVA, Julia. História da Linguagem. Lisboa: Portugal: Edições 70, 1969.

TRASK, R.L. Dicionário de linguagem e lingüística. trad. Rodolfo Ilari; ver. técnica Ingedore Villaça Koch, Thaïs Cristófaro Silva. São Paulo: Contexto, 2004.
  
   
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