A leitura compartilhada e o seminário como objetos privilegiados de ensino em turmas de 8ª série do Ensino Fundamental: algumas considerações sobre o ensino de Português


José Bento Cardoso Vidal Neto

 

 

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo analisar as práticas de ensino de Português observadas ao longo do estágio realizado para a disciplina Metodologia I. No conjunto de atividades propostas pela professora que acompanhamos durante o estágio, duas se mostraram bastante importantes para ela: a submissão de praticamente todos os textos escritos que circulam na sala à leitura compartilhada e a realização de seminários.

Tais práticas serão, pois, as escolhidas por nós para servir de objeto de análise no presente artigo, uma vez que se mostraram extremamente importantes na organização do curso dado pela professora.

Tentaremos aqui compreender os motivos e as convicções que levam a professora em questão a adotar e valorar intensamente tais dispositivos didáticos. Além das observações feitas ao longo das aulas, realizamos, no final do estágio, uma entrevista com a professora de aproximadamente uma hora.

Para tal empreitada analítica, lançaremos mão dos aportes teóricos propostos Bakhtin (2003), Schneuwly (2009) e Bentes (2009).

 

1. Sobre o contexto escolar

 

1.1. A escola

A escola em que realizamos estágio chama-se Escola Estadual Bandeiras1 e está localizada no centro da cidade de Taboão da Serra, cidade da Grande São Paulo, que faz limite com os bairros paulistanos de Campo Limpo e Butantã.

Em termos físicos, a escola possui dez salas de aula distribuídas em dois blocos térreos, que se juntam ao terceiro bloco, o administrativo. Essas construções estão dispostas em um grande espaço livre, bastante arborizado, cuidado e agradável, local este que é usado livremente pelos alunos nos períodos de intervalo, troca de turnos ou nas aulas vagas. Em relação a esse agradável espaço físico que a escola dispõe, cabe destacar a “construção” de um espaço ao ar livre, chamado por eles de “Praça Estação Leitura”. Esse local foi idealizado a partir da concepção de aluno que a escola definiu em seu último PPP (Plano Político Pedagógico), ou seja, o de formar um aluno “leitor do mundo”. Tal praça é um local em frente a um dos prédios de salas de aula e constitui-se por uma sequência de bancos de madeira formando um círculo. Como a escola possui a Sala de Leitura/ Biblioteca em funcionamento constante (com duas funcionárias exclusivas para essa função, acervo catalogado e aberto a empréstimo para toda a comunidade escolar), é frequente ver alunos entrarem e saírem com seus livros dessa sala e irem ler na praça de leitura ou mesmo em outros espaços da escola, como os bancos de cimento ou os bancos do refeitório.

Finalmente, em termos físicos, a escola ainda possui um laboratório de informática, uma quadra poliesportiva coberta e um anfiteatro para apresentações dos alunos.

Quanto ao perfil da comunidade escolar pode-se dizer que, de forma geral, a escola é frequentada por um público com razoável condição socioeconômica. Essa escola possui uma diretora muito comprometida com a unidade – efetiva lá há 10 anos – fazendo, então, com que seja um colégio “bem falado pela comunidade”, e bastante procurado em relação à demanda por vagas.

No que diz respeito aos níveis de ensino lá ofertados, há no período matutino e vespertino apenas Ensino Fundamental II (salas de 5ª a 8ª série, igualmente ofertadas nos dois períodos). No período noturno, a escola oferece turmas de Ensino Médio, mas apenas na modalidade de EJA (Educação de Jovens e Adultos).

 

1.2. A linguagem no contexto escolar

Como já deixamos indicado no tópico anterior, podemos dizer que no Bandeiras – forma pela qual o colégio é conhecido – há um contexto privilegiado para a circulação da linguagem, uma vez que tal ação foi pensada coletivamente e proposta como ação pedagógica. Vejamos, então, nos demais subitens, como isso ocorre no cotidiano da escola:

 

1.2.1. No espaço físico e na interação escolar

Diferentemente do que acontece em muitas escolas públicas, no Bandeiras há textos circulando pela escola inteira.

Pensemos primeiro nas salas de aula. Houve uma opção por parte da escola em organizá-las pelo sistema conhecido como “sala ambiente”. Na sala de Português em que tive acesso – a das 8ªs séries – há cartazes feitos pelos alunos e afixados nas paredes sobre “linguagem não-verbal”, “linguagem verbal” e “linguagem mista” e também sobre a “linguagem literária” e a “linguagem não-literária”. Pelo que pude apurar com a professora por mim acompanhada, não foram seus alunos que realizaram tais cartazes, mas sim alunos do período da tarde.

Nos vários corredores da escola, há abundantes cartazes sobre as mais diversas informações: divulgação das inscrições para o “Torneio Aberto de Xadrez de Taboão da Serra”, da “Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas”, da “Olimpíada Brasileira de Astronomia, Astronáutica e de Foguetes”, além dos tradicionais cartazes de cursos de inglês e espanhol de escolas da redondeza, como CCAA, Wizard e Kumon. Também há cartazes informando sobre os vestibulinhos das ETECs e a respeito da isenção de taxa de matrícula para o vestibular da UNICAMP, além de cartazes sobre a valorização da cultura indígena por ocasião do dia 19 de abril – Dia do Índio, e um cartaz dando informações sobre Tiradentes, justamente pelo feriado de 21 de abril. Há também outra série de cartazes e informes produzidos pela própria escola, como os horários das aulas, o horário de atendimentos aos pais, regimento disciplinar dos alunos, entres outros, que formam um conjunto bem completo de informações e que garantem a devida e ampla divulgação destes materiais rotineiramente enviados à escola. Infelizmente, também é comum ver em várias escolas estaduais esses materiais indo simplesmente para o lixo, deixando os alunos sem o devido acesso a essas informações que são de seu mais justo direito.

Por fim, em relação àquilo que é fixado nas paredes, chamou-nos a atenção positivamente o fato de a escola ter enquadrado e posto ao lado da sala de leitura e do refeitório um grande pôster com a “Declaração universal dos direitos da criança”, exposta em seus 10 itens. Também, positivamente nos marcou o fato de neste mesmo espaço do refeitório haver uma pequena lousa, onde a própria merendeira escreve com giz branco o cardápio do dia. Ao seu lado, há também pequenos cartazes indicando o local para despejo dos “pratos”, “talheres” e “sobras” de comida da merenda. Nesse caso, parece-nos que a linguagem foi usada com um fim bastante especial, principalmente no caso da lousa escrita pela própria merendeira, que confere um ar de carinho e preocupação com as crianças e adolescentes, além, claro, de ser funcional quanto ao esclarecimento do que eles terão como opção de comida no dia. Notei que o período de merenda transcorre tranquilamente, fazendo do espaço de refeição – mesas e bancos dispostos no refeitório – um momento de farta e saudável interação entre os alunos. Em vários intervalos, pude circular entre os alunos e notar o quanto se relacionavam neste momento, inclusive comigo, perguntando quem eu era, onde trabalhava, porque estava ali e demais assuntos que vinham “puxar” comigo.

Em relação aos demais funcionários da escola (coordenadora, inspetora, merendeira e demais funcionários de apoio), percebemos haver uma constante e agradável interação entre eles e os alunos (vi frequentemente conversas tranquilas, espontâneas e carinhosas entre eles). Aqui, cabe salientar que a professora responsável pela sala de leitura da parte da manhã, além de dar constante orientação a respeito dos livros, fornece ajuda nas pesquisas que os alunos têm de realizar. Ela também promove sorteios com os mais assíduos leitores, como o feito por ocasião da Páscoa, quando houve um sorteio de um ovo de Páscoa. Também expõe nas laterais das estantes trabalhos feitos em cartazes pelos alunos e escolhidos pelos professores como sendo os mais bem feitos.

 

1.2.2. Na documentação escolar

Tivemos acesso ao PPP e nele pudemos ver qual é o peso e a articulação que a escola dá e propõe para a língua e para as demais linguagens. O grande destaque para essa questão, a nosso ver, é a seguinte proposição:

Tendo sido priorizada a competência leitora e escritora – de ler o mundo por meio dos diferentes tipos de linguagem (escrita, áudio visual, matemática, musical científica...) –, o grupo optou por um trabalho coletivo tendo em vista os gêneros textuais como norteadores dos planos de ensino. Além do que, ficou acordado um procedimento de leitura como compromisso de todas as áreas com o letramento (competência leitora), qual seja: antes de ler qualquer tipo de texto o aluno deve se perguntar: para que vou ler este texto? E, portanto, como vou lê-lo? Com que estratégia de leitura? (PPP, da EE Bandeiras) [grifos nossos]

 

Em relação à documentação da disciplina de Português, tivemos acesso ao “Planejamento anual” da professora que acompanhamos. Lá pudemos verificar o grande destaque dado à leitura pela docente, principalmente à leitura de clássicos da literatura brasileira, como os por ela elencados: O alienista, de Machado de Assis ou Senhora, de José de Alencar, no 1º semestre, e Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida ou A hora da estrela, de Clarice Lispector, no 2º semestre.

A professora propõe em seu planejamento uma ida ao teatro para assistirem a adaptações de obras literárias. Indica, no 1º semestre, Dom casmurro, de Machado de Assis ou O cortiço, de Aluísio de Azevedo e, no 2º semestre, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida ou A cidade e as serras, de Eça de Queiroz.

Em seguida, a professora propõe o trabalho com dois gêneros diferentes – romance e teatro – com o seguinte intuito. Vejamos: “As obras lidas deverão ser distintas das peças para propiciar maior abrangência no contato com diferentes obras e autores” (planejamento da professora).

 

2. Sobre o ensino de português

 

2.1. O estágio e a professora

Realizamos as 60 horas de estágio no período de 05/04/2011 a 14/06/2011, nas terças, quartas e quintas-feiras, dias em que a professora tinha suas aulas com essas três oitavas séries. No total, foram acompanhadas por volta de 75 aulas.

A professora que acompanhamos chama-se Cibele2 e tem 36 anos. Dá aulas no Estado desde 2004, ano em que entrou via concurso público. Antes, no entanto, dava aulas em Pré-escola e em turmas de Alfabetização, já que fez o curso de Magistério, além de dar aulas de Inglês em cursos de idioma. Este período remonta, segundo a professora, de 1992 até 2004, e foi fragmentado até sua efetivação no Estado.

Em relação a sua formação acadêmica, Cibele cursou Letras – Português/Inglês, na UniFIEO (Osasco/SP), de 2000 a 2003, fez Complementação em Pedagogia, na UNIBAN, em 2006 e, atualmente, cursa Pós-Graduação lato sensu em Metodologia de Ensino de Inglês, ministrado pelo Allumini, por convênio com a Prefeitura Municipal de São Paulo, onde também dá aulas, só que apenas de Inglês. Na Prefeitura, informa que ingressou também por concurso público em 2010.

Quanto à dinâmica de interação com a professora, esta foi bastante tranquila, inclusive com a realização de uma entrevista de uma hora, para aprofundamento das conclusões a respeito do que foi observado durante o estágio. A professora sempre foi muito gentil. A interação com os alunos também se deu de forma super harmoniosa, tanto durante as aulas quanto nos momentos de intervalo. Durantes as aulas, quando a professora não estava dando aula, sempre me perguntavam algo: se poderia ajudar com a lição, porque estava ali, o que faria depois do estágio, sugestões para leitura (é uma das tarefas propostas pela escola – a leitura e o comentário em um caderno intitulado “Diário de leitura”, de um a três livros por bimestre, a serem retirados na Sala de leitura), etc.

 

2.2. O trabalho docente

 

2.2.1. Os objetos de ensino e as práticas de linguagem

Nossa observação ao longo do estágio nos mostrou que a professora Cibele privilegia fortemente dois objetos de ensino: a leitura compartilhada pelos alunos de todos os textos que circulam na sala, inclusive os enunciados dos exercícios do livro didático sobre tópicos de estudo da língua e a realização de seminários.

Quando começamos o estágio, a classe estava lendo O Alienista, de Machado de Assis e, de acordo com o planejamento, no segundo semestre, o mesmo processo de leitura aqui apresentado seria feito com um outro clássico da literatura nacional.

A leitura era realizada alternadamente e em voz alta pelos alunos que tinham sua vez definida pela professora. Percebemos que a quantidade de linhas ou de parágrafos lidos por cada um se relacionava muito com a forma pela qual este jovem realizava sua leitura: se o fazia de maneira clara, sem hesitações, em tom alto e sem erros prosódicos, o aluno permanecia com o turno por mais tempo. Caso tivesse dificuldade nos itens anteriormente apontados, a professora rapidamente promovia a troca de turno. De tempos em tempos – a cada parágrafo ou página – a professora interrompia a leitura para fazer comentários ou esclarecimentos sobre o trecho lido. O conteúdo de tais comentários era quase que exclusivamente sobre o enredo e o contexto histórico em que a obra foi escrita, em detrimento, então, de observações e explicações de ordem linguística. A nosso ver, um trabalho completo e adequado com obras literárias deve contemplar um desenvolvimento tanto de aspectos histórico-literários, quanto de aspectos linguísticos marcantes do autor e da obra analisada.

Em relação às dúvidas de significado que os alunos iam apresentando ao longo da leitura ocorreu algo a ser destacado. Ao longo da leitura, as dúvidas lexicais não eram sanadas – a professora o fazia apenas quando um aluno muito insistia –, mas quando o leitor se enganava na pronúncia de alguma palavra dificilmente escapava da correção da professora. Um exemplo disto pôde ser visto quando uma aluna teve dificuldade em ler o termo “vesicatório” (aquilo que produz vesículas) e quando finalmente conseguiu lê-lo corretamente deu uma pausa em sua leitura, como que esperasse o significado ser dado pela professora, que se limitou a falar a próxima palavra do texto: “Crispim”! Anteriormente, esta mesma aluna entoou uma interrogação em uma frase que deveria ser exclamativa e foi imediatamente corrigida pela professora.

Tal postura mostra uma valoração formalista da professora em relação ao texto, já que é de se esperar que um aluno que não saiba pronunciar direito uma palavra, muitas vezes vocábulos realmente difíceis para seu nível de escolaridade, também não saiba seu respectivo significado. Assim, poderíamos perguntar: qual aproveitamento um aluno obteria em aprender a pronunciar uma palavra que ele não sabe o que significa?

No início de abril, quando começamos, as salas já estavam na metade do livro, mais ou menos, e após os alunos terem terminado a leitura, iniciaram o processo de pesquisa para elaborarem seus seminários. Os temas foram dados pela professora e eram assuntos relacionados ao livro. São eles: 1- Sociopatia X Psicopatia, 2- Positivismo e outras teorias da época (séc. XIX), 3 – Machado de Assis: vida e obra, 4 – Sigmund Freud, 5 – Loucuras e tratamentos, 6 – Distúrbios mentais de hoje (neurológicos).

Depois de sorteados os temas entre os grupos, a professora passa a explicar como essa atividade deverá ser feita: diz que o seminário será apresentado na frente da sala, que deverão ser elaborados cartazes e que os alunos não devem se limitar a apenas imprimir coisas da Internet. Em relação ao processo de pesquisa, ocorre algo curioso em uma das salas. A professora seguia em sua explicação dizendo que o Google e a Wikipédia não são fontes de pesquisa, que se deve sempre buscar informações em locais diferentes, indicando no mínimo duas fontes. Perto de mim, no fundo da sala, um aluno diz em voz e tom moderados: “Então indique as fontes de pesquisa”. Não sei se a professora ouviu, mas não respondeu. Tirando a referência que fez ao site oficial de Machado de Assis e o da ABL, não houve maiores indicações quanto a locais e formas adequadas para que os alunos pudessem buscar informações para a pesquisa. Julgamos que esse momento e a própria atividade proposta seriam excelentes chances de ensinar (ou dar início) como se realiza, de fato, um trabalho de pesquisa.

Outra orientação que faz é que os alunos devem entregar um trabalho escrito sobre o tema do seminário. Neste momento, diz enfaticamente que “no seminário não se deve ler o trabalho escrito lá na frente, mas sim expor, explicar para os colegas aquilo que foi pesquisado”. Explica também que se pode usar, no dia, uma “colinha” com os pontos principais da exposição, caso dê “um branco na hora”.

Durante o período de estágio, presenciamos outro objeto ensinado que não os acima apresentados. Depois de encerrada a leitura do livro e enquanto não se iniciava as atividades de preparação para os seminários, a professora fez uso pela primeira vez do livro didático. A proposta era estudar um tópico de análise linguística: origem das línguas e variação linguística entre o Português do Brasil e o de Portugal.

Curiosamente, a professora lançou mão da mesma estratégia didática utilizada com O alienista, ou seja, a submissão de absolutamente todos os textos presentes no livro (título, rodapé, glossário, além dos textos principais) para leitura coletiva em voz alta. Também me causou estranheza o fato de a professora responder os exercícios oralmente com os alunos, de forma subsequente à leitura oral, não permitindo que os alunos refletissem primeiro individualmente a respeito dos exercícios propostos. Outro ponto que me chamou atenção é o fato de a professora não utilizar a lousa para nenhum tipo de registro de explicações ou mesmo de suporte ao que estaria oralmente explicando. Na verdade, esses assuntos propostos pelo livro didático foram trabalhados pela professora em tom de comentário, en passant.

Percebe-se que sua utilização foi proposta como um rápido “tampão” entre o fim de uma atividade (leitura do livro) e o início da outra (seminário), não estando, portanto, pensada e articulada dentro de uma sequência didática.

 

2.2.2. Os gestos e os instrumentos didáticos

De uma certa forma, o fato da professora propor apenas duas atividades centrais para um semestre inteiro e também o fato de suas aulas seguirem basicamente o mesmo padrão faz com que suas atitudes sejam relativamente previsíveis em relação às estratégias empregadas por ela no desenvolvimento do conteúdo. Da mesma forma, ao pensarmos em uma explanação sobre seus gestos didáticos, encontraremos a mesma constância em suas proposições didáticas.

Em função disso, se pensarmos nas definições de Schneuwly (2009) para os gestos, dois deles são mais evidentes nas ações da professora: o da regulação e o da memória didática.

A regulação é evidente durante a leitura do Alienista, momento em que a professora intervém nos erros prosódicos dos alunos. Também há regulação quando instrui e estabelece as regras para a realização dos seminários. Outra situação em que há grande regulação da professora é quando os grupos estão preparando seus trabalhos escritos em classe, momento em que a professora passa de grupo em grupo e verifica o andamento da pesquisa e do texto que os alunos já produziram para a entrega. Nessa ação, a professora corrige os erros de escrita e diz se o que foi pesquisado até agora foi suficiente e adequado ou não.

Já durante a apresentação dos seminários, praticamente não ocorre intervenção da professora. A regulação ocorre no final de todas as apresentações da classe – que se estendem por vários dias – fazendo com que os comentários da professora fiquem muitas vezes “perdidos no tempo”, já que em alguns casos retroagiam a seminários apresentados há duas semanas. Pensamos que a regulação seria mais eficaz, se a professora fizesse, caso fosse necessário, suas intervenções durante as apresentações. De qualquer forma, deveria dar ao grupo um retorno quanto aos seus acertos e erros logo após suas apresentações.

Em relação à memória didática, constantemente é usada pela professora. Aliás, como as atividades em torno da leitura do Alienista ocuparam praticamente todo o primeiro semestre, toda a sequencialidade necessária para esse “grande projeto didático” é garantida pelas constantes falas da professora em relação ao que já se fez sobre o livro e o que ainda se fará. Durante a leitura coletiva, por exemplo, a professora constantemente recordava algum ponto relativo ao enredo lido em aulas anteriores e necessário para esclarecer alguma dúvida apresentada pelos alunos naquele momento.

Também, ao longo da apresentação dos seminários, tanto alguns alunos como também a professora, relacionavam os temas das apresentações ao O alienista. Mas, de qualquer forma, precisamos aqui destacar que, em vários seminários, não houve nenhuma menção ao livro, deixando, então, a apresentação descontextualizada do objetivo maior, qual seja: aprofundar os aspectos lidos e levantados por Machado de Assis em sua obra. Nesse sentido, podemos destacar que em projetos de grande extensão como este, há a necessidade de um grande esforço para que sempre os objetivos centrais do trabalho sejam constantemente presentificados, para que assim eles possam ser vistos e entendidos pelos alunos como pequenas partes de um grande dispositivo didático proposto pela professora ou pela escola.

Finalmente, gostaríamos de trazer, ao presente trabalho, o conceito de institucionalização, proposto por Sensevy (2001) e citado no texto de Schneuwly (2009). Vejamos:

 

A institucionalização é o processo pelo qual o professor mostra aos alunos que os conhecimentos que construíram se encontram na cultura (de uma disciplina), e pelo qual os convida a se tornarem responsáveis de saber estes conhecimentos. (grifos nossos)

 

Ao pensarmos nesse conceito e também no projeto didático da professora Cibele, podemos dizer que os alunos são convidados, em especial, a partilharem de dois objetos da cultura acadêmico-escolar: a obra e a importância literária de Machado de Assis e também de outros autores clássicos da literatura brasileira (nomes e obras já aqui indicados e presentes no planejamento anual da professora) e o seminário como forma de estudo e interação com a classe.

Durante a entrevista que realizamos com a professora, ela justifica a grande importância que dá aos seminários, em função do papel que eles tiveram em sua trajetória de estudante. Diz que com eles “aprendeu muito em sua vida” e “crê que essa é uma ótima forma dos alunos estudarem”, pois “só se pode apresentar algo a alguém, depois de ter se compreendido bem o objeto em questão”. Aqui, então, se nota claramente o quanto o gênero seminário está institucionalizado no ensino brasileiro, pois, ao ouvir o relato da docente, percebe-se a transmissão e a legitimação de uma prática didática de “uma geração para a outra”.

Pelo que observamos durante o estágio e pela articulação das aulas que acima descrevemos, caracterizaremos, esquematicamente, os instrumentos didáticosmateriais e discursivos – utilizados pela professora e, consequentemente, os não utilizados.

De ordem material, chamou-nos a atenção a total ausência de uso da lousa, mesmo que para pequenos esquemas ou explicações. Também o livro didático praticamente não é usado (o livro é “inaugurado” apenas em maio e rapidamente é deixado de lado) e as apostilas do governo não são usadas pela professora, apesar de serem distribuídas aos alunos (no início de cada bimestre, os monitores da sala entregam um kit, com as apostilas de todas as matérias, de carteira em carteira).

Foram utilizados, então, do ponto de vista material, o livro O alienista (todos os alunos tinham seu exemplar, pois tal necessidade foi informada aos pais em reunião, no início do ano letivo) e, depois, quando começou o período dos seminários, os alunos utilizavam o material pesquisado fora da escola (impressões tiradas da Internet sobre o tema em análise, cópias xerox, anotações feitas de livros da biblioteca, além dos cartazes e dos trabalhos escritos que deveriam ser entregues após a apresentação do grupo).

Em relação aos instrumentos de ordem discursiva, também chamou nossa atenção a ausência total de exposição teórica por parte da professora. Suas falas estavam mais direcionadas ao processo de mediar os turnos de leitura dos alunos e de, quando necessário, tecer algum comentário a respeito do trecho lido. Se pensarmos no gênero aula expositiva, tal qual se configurou na tradição escolar, não presenciamos nenhuma ocorrência. O par pergunta e resposta, também muito comum nas práticas docentes, era utilizado pela professora, mas muito pouco. Dava-se mais como uma pergunta retórica, pois, em vários momentos, houve respostas dos alunos ou vontade de dialogar com a professora em função do estímulo gerado pela pergunta, mas a docente não se mostrava muito aberta em franquear o turno para os alunos.

 

2.2.3. As atividades e as tarefas

As atividades propostas pela professora já foram descritas e comentadas nos tópicos anteriores. Já em relação às tarefas, havia, durante o período de leitura do livro, indicação da professora quanto à leitura dos capítulos. Sempre solicitava que os alunos lessem anteriormente o capítulo objeto da aula em casa.

Quando terminaram a leitura do livro, a docente solicitou que os alunos fichassem o livro e o analisassem observando alguns aspectos de análise literária, como os relacionados aos elementos da narrativa – tempo, espaço, narrador –, além da identificação de recursos de estilo, como a metáfora e o eufemismo. Não presenciei a explicação desses assuntos pela professora, talvez tenha feito tal operação no início do ano, antes do meu estágio, mas não perguntei a nenhum aluno se ela havia explicado esses aspectos que solicitara, para que assim não parecesse que estava questionando a atividade ou mesmo a professora.

Tal atividade não foi seguida de nenhum “visto”, no entanto, ao longo do estágio, percebi que antes do início das aulas ou um pouco antes do final, a professora chamava alguns alunos para terem seus cadernos vistados. Não consegui saber exatamente o que a professora verificava nestes momentos, uma vez que eles se davam de forma não relacionada a uma tarefa específica.

Durante a entrevista que realizamos com a professora, ela comentou uma prática que adota quando passa alguma redação para a classe: a correção individualizada em sala. Chama, ao longo do período de tempo necessário (“às vezes leva uns 20 dias”, disse ela), “aluno por aluno” em sua mesa e vai corrigindo e comentando a redação na frente de seu autor. Não consegui visualizar (estava na última carteira da sala) se esse “visto” realizado pela professora seguia a mesma lógica empregada na correção das redações...

Em relação às provas, a professora mostrou-se bastante desapegada desse instrumento. Houve apenas uma, com testes sobre O alienista extraídos de provas de vestibular. Sobre tal atividade, a professora disse para as salas que valeria “bem pouquinho” e que era “mais para que eles soubessem a forma pela qual um livro, como o trabalhado em classe, poderia ser explorado em uma prova de vestibular”.

 

3. Análise de um fenômeno-tema particular relativo ao trabalho docente descrito

 

Já antecipamos uma série de análises e comentários a respeito daquilo que mais nos chamou atenção na prática docente da professora, ou seja, a importância dada por ela à leitura compartilhada e ao seminário. Considerando tais antecipações, usaremos esta seção para aprofundar alguns pontos relativos a essa opção da professora.

Em relação à leitura em voz alta, imagina-se que ao propor dentro da sala de aula uma atividade como essa - principalmente se a considerarmos como uma prática altamente privilegiada para a professora – haveria, certamente, por parte dela um especial trabalho com a questão da oralidade. Com efeito, não foi o que observamos ao longo do estágio. Vejamos, então, alguns aspectos que demonstram essa afirmação.

Não havia indisciplina nas salas, ouvindo-se, então, apenas o responsável pela leitura do trecho (ou não, pois muitos a faziam em baixíssimo tom). Eram exatamente esses alunos com dificuldades na elocução que tinham o turno rapidamente interrompido pela professora e passado para outro que pudesse realizá-la com uma melhor performance.

Essa troca dos leitores com dificuldade indica que a leitura oral proposta pela professora tinha como função apenas sociabilizar e garantir a leitura integral da obra por toda a sala, além de encaixar seus comentários a respeito dos excertos lidos. Com efeito, caso não fosse assim, seria relevante um investimento direto nesses alunos, para que pudessem, assim, ter a chance de enxergar onde estavam falhando em seu exercício oral.

Em nossa visão, já que todos os alunos possuíam o texto da obra e o ambiente era favorável em relação à disciplina, a professora poderia ter realizado um aprofundamento maior em relação a alguns aspectos da oralidade, como por exemplo, os suprassegmentais da fala.

Relativamente a tais aspectos, vale lembrar aqui as palavras de Bentes (2009, p. 3) a esse respeito. Vejamos:

Ao longo de nossos primeiros anos de vida, desenvolvemos uma série de competências que dizem respeito, entre outras coisas, à manipulação da nossa voz e de nossa fala. A aquisição de saberes relacionados aos aspectos suprassegmentais da fala (pausas, entoação, qualidade da voz, ritmo e velocidade da fala) constitutivos das práticas e dos gêneros orais é feita junto com a aquisição da língua como sistema e como prática, já que a criança aprende, desde cedo, por exemplo, que a mudança de tom de voz da mãe e/ou do pai sinaliza diferenças nas atitudes deles para com ela.

 

Nas aulas analisadas, são exatamente esses aspectos suprassegmentais que poderiam ser melhor trabalhados pela professora com os seus alunos, principalmente nos que tinham maiores dificuldades na leitura em voz alta.

Na verdade, pelo que observamos, poderia se aproveitar a presença de um gênero não tão comum aos alunos – leitura coletiva de um romance – para se desenvolver algo que se adquire no início da aprendizagem da língua materna. O emprego adequado de pausas, entoação, qualidade da voz, ritmo e velocidade da fala ao longo de uma leitura coletiva poderia ser proposta aos moldes de uma leitura dramática, como o feito em teatro, só que usando O alienista. Tal estratégia serviria, a nosso ver, para instrumentalizar os alunos a um manejo adequado do texto oral, além de dar mais vida, pulsão, à leitura do texto machadiano.

Outro aspecto que merece um exame mais apurado é o fato de a professora não esclarecer e tampouco se deter nas dúvidas de vocabulário geradas ao longo da leitura de O Alienista.

Em uma de suas aulas, a professora discorreu sobre o que pensa em relação a esse assunto. Aproveitou, na única aula em que usou o livro didático, um texto que orientava o aluno quanto à postura que devia adotar em relação ao significado de palavras desconhecidas. O excerto falava que se pode recorrer ao contexto para solucionar uma dúvida. Também dizia que se pode recorrer ao colega ou professor e, finalmente, ao glossário e ao dicionário.

Nesse momento, a professora – recorrendo à memória didática dos alunos – lembra à sala o processo vivenciado por eles ao longo da leitura do Alienista. Diz que, no início desse trabalho, eles queriam ir toda a hora ao dicionário para sanar uma dúvida e ela, então, ensinara que essa não era a forma mais adequada de se trabalhar o conhecimento das palavras, uma vez que, ainda em sua explanação, essa constante ida ao dicionário faria com que eles criassem uma espécie de “muleta”, querendo sempre consultá-lo. Finaliza sua retrospectiva reafirmando que o uso do contexto é sempre o mais adequado e é o que deve ser utilizado quando aparecerem dúvidas lexicais.

É interessante notar que, na entrevista, a professora, ao falar sobre a interação com os alunos, lembra-se daquilo que eles mesmos apontaram como sendo a principal dificuldade na leitura do livro: justamente o vocabulário!

Ela segue, na entrevista, agora narrando o ponto que avaliou como a principal vantagem do processo de leitura intermediado por ela. Em suas palavras: “O que ajudou [na compreensão das palavras desconhecidas?] o professor ter lido em classe, porque ele vai ajudando quando a coisa está crítica e também os próprios colegas vão ajudando também”.

Com efeito, não foi o que observamos durante as várias aulas em que se leu o livro (acompanhei esse processo, aproximadamente, do meio para o final da obra!) Como já descrevemos aqui, o que houve, de fato, foi uma recusa da professora em realizar também um trabalho lexical com o livro estudado. Entre as várias passagens que descrevem essa “recusa” por parte da professora – por nós registradas em um “caderno de campo” –, além da que já analisamos em relação ao termo “vesicatórios”, descreveremos, a título de conclusão, mais uma.

Houve uma troca de leitores e, neste momento, uma aluna pergunta à professora o que era “abnegado”. Como essa aluna estava sentada na primeira carteira, a professora respondeu com um tom de voz muito baixo (eu, por exemplo, não ouvi) e, como ela flexionou o corpo para responder, deu a resposta dirigida apenas a essa aluna. Os demais alunos certamente não ouviram – e creio que não era uma dúvida apenas daquela aluna. Mesmo assim, não houve preocupação da professora – tal qual ela disse em sua entrevista – de retomar e compartilhar, em voz alta, essa dúvida com o restante da sala, chamando a atenção dos alunos para seu significado. Algo como: “Pessoal, surgiu uma dúvida aqui nesta palavra. Ela significa isso. Olha só ela no trecho lido, viram como ficou? Entenderam?”.

Não discordamos, em absoluto, da importância do contexto para o trabalho de leitura e análise de textos. Também não achamos adequado que em uma leitura coletiva, a cada duas linhas, o professor se detenha em definir e dissecar termo por termo. Porém, não podemos deixar de considerar – como assim fizeram os próprios alunos, quando avaliaram suas maiores dificuldades após a conclusão da leitura do Alienista, e como foi narrado pela própria professora durante a entrevista – que a complexidade vocabular pode ser, sim, empecilho direto à compreensão de um texto e que, nesses casos, o recurso ao contexto pouco ajuda na elucidação das dúvidas ali geradas.

 

Considerações finais

A despeito dos óbices que acima tecemos, julgamos o trabalho realizado pela professora como bastante positivo. Conforme ela própria destacou em sua entrevista, esta é a primeira vez que se faz, nesta escola, a leitura integral de um “clássico” da literatura nacional. Antes de a escola conseguir que tais leituras fossem contempladas e planejadas em um âmbito geral “do grupo dos professores” – fato que por si só já é extremamente louvável – os alunos liam apenas fragmentos de textos literários presentes no livro didático, copiados na lousa ou trazidos em xerox.

Todas as ações pioneiras carecem de ajustes e revisões – até que possam encontrar sua forma ideal – e assim cremos que será com o trabalho proposto pelo grupo de professores do colégio Bandeiras. Também acreditamos que tais ajustes por parte da professora certamente servirão para eliminar alguns “ruídos” pedagógicos que são, como pretendeu mostrar o presente trabalho, minoritários em relação aos acertos.

 

 

José Bento Cardoso Vidal Neto

Professor Titular Efetivo de Língua Portuguesa, na EE Comendador Miguel Maluhy, da Rede Estadual de Educação de São Paulo. Mestre em Letras, pela FFLCH-USP (2010). Bacharel em Letras/ Português, pela FFLCH-USP (2006) e Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, pela FMU/FIAM (1998).

 

 

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. (Volochinov, V. N.). Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 261 – 306.

BENTES, A. C. Linguagem oral no espaço escolar: rediscutindo o lugar das práticas e dos gêneros orais na escola. In: ROJO, Roxane; RANGEL, Egon. (Org.). Explorando o ensino: Língua Portuguesa. 1. ed. Brasília: Ministério da Educação, 2009. v. 1.

SCHNEUWLY, B. Le travail enseignant. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (Orgs). Des objets enseignés en classe de français – Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes, FR: Presses Universitaires de Rennes, 2009, p. 29-43. Traduzido por Sandoval Nonato Gomes Santos. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2011 [Uso restrito].

 

 

 

 

 

1 O nome da escola foi trocado por um fictício para assim manter o anonimato do local em que realizei o estágio.

2 Nome fictício.

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1 Comentário

  • Link do comentário Anacély de Sousa Julião Quinta, 24 Outubro 2013 13:47 postado por Anacély de Sousa Julião

    Excelentíssimo Professor Neto de Português.
    A pessoa que mais insistiu em dar "murro em ponta de faca"...

    Um homem que foi fundamental na formação do meu caráter.

    Sinto sua falta professor...
    Além de ser um grande amigo.

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