Música e poesia

 

 

 Alison Paulo da Luz
Cibele Cesário da Silva
Edvane Rubim Soares
Ibis Natalia do Nascimento
Lucinara Chessa
 

  

Resumo
Partindo do pressuposto de que a música desperta o interesse do aluno e o leva a uma maior interatividade com o objeto a ser trabalhado em sala de aula, apresentamos aqui uma proposta de associação do poema à música. O foco do trabalho são os poemas, de autores e épocas variados, que, relacionados a músicas da atualidade, têm o objetivo de despertar a atenção dos alunos de 8ª série para as relações entre os diferentes contextos, a partir do trabalho comparativo. Seria uma maneira de aproximá-los do universo literário mais “adulto” e erudito, partindo de suas referências contemporâneas mais – por assim dizer – juvenis e massificadas. 

  

Introdução

 A arte não é a verdade. A arte é uma mentira de imitar a verdade da realidade.” 
(Pablo Picasso)

A literatura mais canônica requer que o estudante possa perceber o texto em suas diversas camadas de significação, que ele reflita sobre essas possibilidades e que consiga interpretar o texto a partir de seus referenciais, mas também dos referenciais oferecidos pelo professor, que certamente trará para a sala uma abordagem do texto moldada por outras leituras críticas. É um desafio motivar o aluno à fruição do poema e também inseri-lo numa perspectiva de aprendizagem, ou seja, de um saber literário que incorpore a tradição e a técnica.

 

A escolha de ambos os gêneros, poema e música, portanto, se justifica a nosso ver porque a música, estando mais próxima dos alunos, traz uma variante mais acessível da língua e da cultura, mais atraente, sedutora, num primeiro momento. Não situamos essa variante apenas num nível lexical, mas também sintática e, sobretudo, sonora, uma vez que, além dos termos familiares ao vocabulário corrente dos alunos, há uma configuração frasal em geral mais simples que a do poema, e há também o ritmo e a melodia, que falam mais diretamente à sensibilidade porque mais familiares e inscritas no universo cultural do jovem.

Assim, será possível, acreditamos, propiciar aos estudantes várias atividades de aquisição e interpretação da língua, tanto em sua modalidade oral como escrita, além dos conhecimentos referentes aos gêneros poéticos.

Na introdução do livro O ser e o tempo da poesia, de Alfredo Bosi, José Paulo Paes afirma que o “ser da poesia” é a imagem, que busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens; é o som no signo, a figura do mundo e a música dos sentimentos recuperadas via linguagem; é o ritmo da frase do discurso poético, a imagem das coisas e movimento do espírito - enquanto o “tempo da poesia” é a resposta dos poetas ao estilo capitalista e burguês de viver.

A partir de um trabalho baseado mais na espontaneidade e nas percepções, queremos nos desafiar a levar aos alunos maneiras simples de interpretar o que está obscuro atrás dos poemas e deixá-los expressar o que sentem.

Neste projeto, vamos nos deter mais em três poemas relacionados a três músicas, estimando em média três a seis horas/aulas para cada tópico, o que pode ser posto em prática em uma ou duas semanas aproximadamente, intercalando-se com os outros conteúdos de português. Os tópicos da sequência didática não serão aqui separados por aula, apenas dividiremos em Atividades, ficando a cargo do professor decidir a quantidade de aulas/hora que empregará em cada uma.

Quanto ao público-alvo, acreditamos que vale para as séries do ensino fundamental II, só variando a abordagem, mais ou menos complexa.
 
 

 

Sequência didática
 
Tópico 1
 
Atividade 1 : Leitura do poema, audição da música e comentários
 
Música: “Geração Coca-Cola” – Legião Urbana
 
Poema: “Ode ao Burguês” – Mário de Andrade[1]

 

 

O professor inicia a atividade lendo o poema com os alunos, em voz alta, em voz baixa, uma, duas, três vezes, até ele se tornar mais familiar, até ele ser “sentido”. Para a música, é sempre bom reservar um bom aparelho e pedir silêncio para que as condições da audição sejam adequadas.

Antes de qualquer análise do poema ou da música, é imprescindível que se comente[2] ambas as obras.

É importante situar o poema no momento histórico para que, mais adiante, na conclusão, possamos apresentar o movimento literário, o Modernismo. Também será a ocasião de discutir palavras e imagens estranhas, tudo devendo ser explicado pelo professor, mas partindo da percepção dos alunos, de suas dificuldades, perguntas, estranhezas. Pode-se dizer que se trata de uma “vivência” do poema, um contato maior com matéria (o assunto do poema) e com o material (a forma do poema).

Só num segundo momento é que o poema sairá da vivência dos alunos para o plano da análise do texto propriamente, situado no seu momento da história.

Alfredo Bosi (2000, p. 9) afirma:

Contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo, é inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional: uma trama em que o eu-lírico vive ora experiências novas, ora lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em cada poema.

 

 

“Ode ao Burguês” é um poema de Mário de Andrade incluído na obra Paulicéia Desvairada, publicada em 1922,  e causou muita polêmica em sua época; também, para o olhar de hoje, mostra-se bastante esclarecedor para entender os motivos que levaram autores como Mário de Andrade a participar ativamente do movimento Modernista. A música “Geração Coca-Cola” foi composta mais de meio século depois por Renato Russo e cantada pela banda Legião Urbana, que os alunos conhecem e gostam muito. A banda foi uma das mais influentes no comportamento dos jovens na década de 1980 e conquistou uma legião de fãs.

Assim como o Legião Urbana buscou pela música expressar a angústia e a revolta contra nossa sociedade, que, diziam, se deixava dominar pelos norte-americanos, Mário de Andrade em seu poema “Ode ao Burguês” expõe com sarcasmo a revolta contra o burguês explorador do seu tempo. Nesse poema, se evidenciam experiências ousadas, como versos livres, imagens audaciosas e inesperadas e uma crítica social incomum na poesia de então.

Provavelmente os alunos se sentirão mais à vontade para discorrer sobre a letra da música uma vez que ela faz parte do repertório deles, mas não se furtarão a estabelecer comparações com o poema.

Ao final desta aula introdutória, os alunos devem levar para casa a cópia escrita da poesia e da música para lerem atentamente e virem mais preparados para a próxima atividade, que será interpretativa.

 

 

Atividade 2 - Estudo do poema e da música dentro da história

A) Relação dos autores com a História

 

B) Relação da poesia e da música com a História

C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico

 

D) Semelhanças contextuais entre a música e a poesia

 

 

A) Mário de Andrade (1893-1945) era um moderno, mas um moderno diferente, não vivia citando avanços, mas realizou rupturas estruturais no modo de fazer poesia – “Somos primitivos da era moderna – o passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”. Já Renato Russo (1960-1996), o compositor da música “Geração Coca-Cola” e integrante da banda Legião Urbana incutia um caráter social a algumas de suas músicas, que chegava aos garotos muito jovens, seu público mais fervoroso. A biografia de ambos os autores pode ser pesquisada: a de Mário nos livros e na internet, a de Renato Russo sobretudo na internet. Essa pesquisa certamente trará aos alunos, por meio dos hiperlinks, conhecimentos diversos sobre os contextos desses autores e seria importante que o professor concedesse um tempo para que os alunos pudessem se manifestar a propósito dessas descobertas.

B) O livro em que se insere o poema, Paulicéia Desvairada, manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos homens. A obra em si e conseqüentemente o poema trazem à tona o contexto citadino, com suas tensões e diferenças sociais. Mário viveu em um período de grandes transformações tais como Primeira Guerra Mundial, vanguardas européias, o realinhamento e reestruturação de forças da burguesia no Brasil, revoltas das classes médias e as lutas de classe contra o poder do Estado. O modo como todas essas transformações repercutiram no poeta é único e essa identidade poética que é que se deve privilegiar no trabalho com os alunos. A banda Legião Urbana criada no início dos anos 80 movimentou toda uma geração, que ficou conhecida como “Geração Coca-Cola”, devido às letras polêmicas que retratavam a situação político-cultural dessa década; a banda conquistou multidões, chegando a formar uma verdadeira legião de fãs até hoje. Renato Russo retrata sua geração à luz da dominação globalizante. Também aqui vale a pesquisa que os alunos podem fazer.

C) O poema é uma crítica à sociedade fútil burguesa da época. O próprio título pode ser entendido como uma “brincadeira” sonora feita pelo autor: o significado de “Ode” (composição poética de caráter lírico) pode ser “traduzido” por ódio, ódio aos burgueses. Em versos livres, se contrapõe às formas fixas, mais convencionais até então; as contradições do poeta acabam por constituir uma notável multiplicação de olhares e de perspectivas sobre a cidade de São Paulo que parecem se sobrepor umas às outras dando a impressão de simultaneidade. Nota-se que a crítica de Mário não é para a cidade de São Paulo, que ele ama, e sim para os seus governantes, assim como na música, o grupo Legião Urbana critica os norte-americanos, o que deve ser entendido em termos de poder dominante e não de uma crítica ao povo.

D) Ao expressar seu ódio aos burgueses da metrópole paulistana, o poema se mostra também como uma espécie de manifesto do poeta modernista contra os conservadores que se posicionavam contra o Movimento Modernista: “Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio e nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu” (Andrade, 1974, p. 232). O mesmo movimento modernista que perturba a cristalização do lirismo, cria um lirismo difícil e incompleto, que representa as dificuldades e incompletudes do sujeito lírico na modernidade incipiente. Em “Ode ao Burguês”, assim como em toda a Paulicéia Desvairada, diante da paisagem citadina o poeta não registra simplesmente a face externa que seus olhos enxergam, mas procura em suas sensações, as impressões que a cidade deixa dentro dele.

Na canção “Geração Coca-Cola” do Legião Urbana há também esse tom de manifesto. No agressivo refrão “somos os filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ geração Coca-Cola”,  seu autor Renato Russo, alude ao “sistema” – o Regime Militar (chamando-o de Revolução) como responsável pela alienação dos jovens. Esta crítica irônica fica mais explícita nos versos que se referem à massificação da cultura norte-americana – os enlatados – como lixo da indústria cultural digerido pelos adolescentes programados desde pequenos. Um embrião de revolta é plantado nos versos dirigidos aos governantes:  “vocês vão ver/ suas crianças derrubando reis/ fazer comédia no cinema com as suas leis”.

Essas e outras considerações podem surgir espontaneamente ou vir orientadas pelo professor.

 

 

Tópico 2 

Atividade 1 – Ler o poema, ouvir a música e comentá-los  

Música: “Brasil” – Cazuza

Poema: “Epílogos” – Gregório de Matos

 

Se uma noção de poesia já estiver se formando nos alunos, procede-se a uma discussão mais “teórica” sobre aspectos do poema – verso, estrofe, versos livres, ritmo... Também situar o poema e a música em seus respectivos períodos históricos e discutir como ambos os autores traduziram o momento em que viveram, apresentando semelhanças e diferenças, pois, apesar de pertencerem a séculos distantes, é possível distinguir em ambos uma visão do Brasil que – sim – possui pontos em comum.

O poema de Gregório de Matos tem um vocabulário em desuso para o jovem de hoje, o que não significa que seja ininteligível. Mostrar isso aos alunos, as variantes históricas da língua, e levá-lo a ter contato com esse tipo de linguagem seria uma maneira de enriquecer o repertório deles e de desmistificar o que, muitas vezes, é tomado como impossível para alunos da 8ª série. Claro que não se fará uma análise profunda, considerando-se a complexidade constituinte da poesia gregoriana e os sucessivos jogos de linguagem utilizados por Cazuza. A intenção é interpretar ambos os textos de forma a trabalhar com os alunos a capacidade de extrair elementos sobre os alcances da poesia nesse trabalho comparativo.

Após a leitura do poema e audição da música, podemos começar apresentando os autores:

 

  • Gregório de Matos: poeta do século XVII (1636-1713), que viveu no período colonial no âmbito do movimento chamado de Barroco. Português, Gregório residia na Bahia, cujas questões políticas e sociais serão tema de sua poesia. Era conhecido como “Boca do Inferno” justamente pelas críticas acirradas dirigidas ao clero, nobreza, escravos, etc., ou seja, não poupava ninguém. Gregório foi o primeiro poeta brasileiro a expressar critica e sarcasticamente um sentimento nacional, característica também muito presente em “Brasil” de Cazuza.

 

  • Cazuza: poeta e músico do século XX (1958-1990), marcou o rock nacional nos anos 80. Inicialmente, pertencia ao grupo musical Barão Vermelho, posteriormente, partiu para a carreira solo. Viveu em um período de grande turbulência política, no final da ditadura militar, quando lutava pelas “Diretas Já”. Cazuza também não excluía ninguém em suas críticas. Caracterizado como um espírito irreverente, viveu intensamente, até contrair o vírus da AIDS. Assim como Gregório, expressava em suas músicas sua indignação quanto aos problemas do país, marcado pela fome, miséria, corrupção, exploração da classe dominante, etc. Suas letras falavam de dores, paixões e sofrimentos, mas foi com o disco Ideologia que Cazuza divulgou mais assuntos relacionados a questões sociais.

 

A poesia possui uma linguagem que combina arranjos verbais próprios como processos de significação pelos quais sentimento e imagem se fundem em um tempo denso, subjetivo e, ao mesmo tempo, histórico.

A música é a arte de coordenar fenômenos acústicos para produzir efeitos estéticos. Como todas as artes, a música é patrimônio comum da humanidade. Quando associada à poesia, na canção, é uma das formas mais populares de arte. Na verdade, a poesia surgiu com os gregos, simultaneamente com a música, a dança e o teatro, que buscam realizar, dentro dos limites da linguagem rítmica, uma síntese de pensamento e sensibilidade. São inúmeras, entretanto, as variantes do conceito de poesia.

 

Atividade 2 – Estudo do poema e da música dentro da história

“A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, esta coleção de objetos de não-amor. Resiste ao contínuo harmonioso pelo descontínuo gritante, resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado, e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia”.
(Carlos Drummond de Andrade)

A) Relação dos autores com a História

B) Relação da poesia e da música com a História

C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico

D) Semelhanças contextuais entre a música e a poesia

 

A) Gregório de Matos Guerra nasceu e formou-se em Direito em Portugal. Transferiu-se para o Brasil vivendo como fidalgo, porém convivendo com várias camadas da população. Conforme dito da aula anterior, o Brasil ainda estava sob o jugo português, apesar da crise que se instalava paulatinamente sobre a Colônia. O comércio colonial estava cada vez mais defasado, emergindo uma classe poderosa, ávida por dinheiro e poder, a burguesia. Esta classe agrava ainda mais essa crise e tirando o máximo de proveito dela. Gregório, apesar de pertencer à nobreza percebia os problemas da Colônia, a exploração, corrupção e suborno.

“Ao lado da economia agrícola que até então dominara, se desenvolve a mobiliária: o comércio e o crédito”[3] e, com isso, passa a haver uma “disputa” entre os proprietários rurais em crise e a burguesia crescente. Ambos pertencem à classe dominante, defendendo seus próprios interesses e explorando o povo cada vez mais pobre, ou seja, nessa disputa pelo poder, político e econômico, quem perde é a classe menos favorecida. Conforme afirmou Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, na poesia de Gregório de Matos “o que está em jogo (...) é (...) uma rija oposição estrutural entre a nobreza, que desce, e a mercancia, que sobe”.

O Brasil de Cazuza, por sua vez, saía de um longo ciclo ditatorial e vivia um clima de democracia ainda incipiente, mas suficiente para liberar as energias contidas. Cazuza desempenhou um papel importante nesse processo.

Cazuza nasceu e morreu no Rio de Janeiro, e acompanhou o período da ditadura militar e campanha para as “Diretas Já”. Com a morte de Tancredo Neves, o país passa a viver novamente na expectativa. Sobe ao poder José Sarney que “afunda” ainda mais o país, marcado pela eterna recessão política e econômica. E é nesse cenário que Cazuza comporá suas músicas.

B) “Epílogos” – Gregório de Matos - A obra poética de Gregório de Matos é composta de duas vertentes: uma satírica (composição poética que ataca de forma incisiva ou ridiculariza instituições, costumes e/ou idéias contemporâneas) e outra lírica de fundo religioso e moral. Mostrar aos alunos que o poema a ser analisado pertence à primeira vertente e é estruturado de modo a observar o jogo pergunta-resposta mais conclusão.

Lembrar que o poema se insere no sistema colonial, onde cada passo da seqüência corresponde a instituições que organizam a sociedade. Há várias vozes no poema contestando e questionando, compondo um debate. Para que os alunos percebam esse tom de debate, propor a eles a leitura alternada em voz alta.

“Brasil” – Cazuza – Uma das músicas de maior sucesso de Cazuza, “Brasil” está inserida no disco Ideologia. O Brasil encontrava-se, mais uma vez, afundado na recessão e com um presidente não eleito pelo povo após anos de ditadura militar. “Brasil” retrata de forma contundente o novo (ou velho?) cenário político que se configurava.

C) Mediante o estilo pergunta-resposta, o poeta denuncia problemas sociais. É importante observar aos alunos que muitos assuntos tratados ainda são atuais, revelando a persistência dos problemas, sobretudo, em relação à corrupção das instituições que deveriam zelar pelo bem público. Assim, os alunos podem perceber que, mesmo sendo um poema do século XVII, é possível a partir dele refletir sobre a vida de hoje, estabelecendo relações críticas entre passado e presente, para, quem sabe, projetar um futuro.

D) Conforme já foi dito anteriormente, tanto o poema quanto a música denunciam problemas sociais e políticos: corrupção, suborno e exploração da classe dominante. Contudo, no poema de Gregório temos essa denúncia de forma mais explícita se considerarmos que o eu-lírico nomeia cada instituição responsável pela degradação do país. Já em “Brasil” isso ocorre de forma indireta, pois o eu-lírico utiliza-se de metáforas para se referir a essas instituições.

Ambos deixam bem claro que o capital/dinheiro é que determina a “hora e a vez” do indivíduo: “o meu cartão de crédito é uma navalha” (“Brasil”); “Quem causa tal perdição?..... Ambição.” (“Epílogos”). O povo, alienado e ignorante, é incapaz de mudar esse quadro, aceitando a situação passivamente: “Será que é meu fim ver TV a cores na taba de um índio programada só para dizer sim?” (“Brasil”) ou em: “a pagar sem ver toda essa droga que já vem malhada antes d'eu nascer” (“Epílogos”)

Tanto em um quanto no outro temos o uso do termo “negócio”. No poema de Gregório, fica bem claro que por causa do comércio (negócio) a Bahia encontra-se em estado de decadência, porque a classe dominante rouba (socrócio) tudo que lhe pertence, fazendo com que o povo fique cada vez mais pobre (“Quem a pôs nesse socrócio?....... Negócio.”). Já em “Brasil” o eu-lírico trata de maneira indireta: “Quero ver quem paga pra gente ficar assim”, ou seja, quem nos explora para que fiquemos tão pobres e miseráveis?. Por isso, o eu-lírico pede: “Brasil, qual é o teu negócio, o nome do teu sócio?”. E quando ele diz “confia em mim” sugere que o eu-lírico que ser incluído nesse sistema a fim de se beneficiar também, mas isso só será possível através do suborno.

Tanto no poema quanto na música, o tom de pessimismo é bastante marcado, pois só através de ações ilícitas consegue-se ser alguém neste país. Na música de Cazuza, o eu-lírico vai ainda mais longe, se considerarmos que não há nenhuma “brecha” para que tal quadro mude. No poema de Gregório, há a conclusão bem clara de que os dirigentes não querem e não vão mudar o país (“A Câmara não acode?...... Não pode./ Pois não tem todo o poder?..... Não quer.”). A presença de perguntas no poema e na música supõe um tom de desafio e indignação com a situação.

Diante de tais considerações, pode-se mostrar aos alunos problemas que o Brasil carrega desde o descobrimento: a renda concentrada, a falta de acesso a bens que, entretanto, poucos desfrutam plenamente.

 

Tópico 3 

Atividade 1 – Leitura, audição, interpretação e produção de texto

Música: Homem na estrada – Racionais MC's.

Poema: Operário em construção – Vinicius de Moraes

 

O objetivo deste primeiro momento é despertar os alunos para a reflexão sobre os problemas atuais; utilizar o debate tanto para este momento como para a seqüência das próximas aulas, uma vez que este gênero possibilita o desenvolvimento da capacidade de argumentação:

Tendo posições diferentes em relação à questão colocada, porém não necessariamente contraditórias, cada participante do debate pressupõe nos outros, participantes ou ouvintes, a faculdade da razão e a vontade de encontrar através do raciocínio uma solução coletivamente aceitável para a questão. (...) O debate aparece, assim, como a construção conjunta de uma resposta complexa à questão, como instrumento de reflexão que permite a cada debatedor (e a cada ouvinte) precisar e modificar sua posição inicial (Schneuwly, Dolz, 1999, p. 12)

Além dessa qualidade intrínseca ao gênero, acreditamos que haverá maior participação dos alunos e a aula será mais dinâmica.

Ao ouvir a música, o aluno poderá reconhecer nela fatos comuns ao seu cotidiano, porém, em uma realidade “inventada ou recriada” pelo autor.

Em primeiro lugar, discute-se a biografia dos autores da música, cuja pesquisa deverá ter sido previamente solicitada aos alunos, já que são eles que conhecem e sabem como procurar as informações sobre os integrantes da banda. Cabe ao professor organizar e selecionar, para efeito do trabalho escolar, as informações que os alunos trouxerem. Por se tratar de um grupo muito popular na periferia, os alunos têm muitas informações e isso já os estimularia a emitir suas opiniões. O mesmo ocorreria com a leitura e audição (por possuir uma gravação com Vinicius de Moraes) do poema O operário em construção e, logo após este momento, fazer uma breve exposição da biografia do autor.

Para a biografia do grupo de rap Racionais, selecionamos um texto eletrônico. Clique aqui para ter acesso.

 

Atividades 2 e 3 – Produção de Texto

Como tarefa para a aula seguinte, podemos pedir que escrevam o que eles pensam de cada uma das obras. Como eles enxergam a opinião de cada autor, tomando como base o texto e a música. Claro que os alunos já devem ter uma noção de organização de um texto opinitivo. Mas lembramos também que a prática do comentário pode ser exercida a partir de uma forma textual livre. Os textos redigidos podem ser lidos na aula seguinte. Esta atividade dá chance ao professor de saber como está a expressão, a argumentação e a produção de textos dos seus alunos.

 

Atividades 4 e 5 – Análise da Música e Poesia

Nesta aula poderíamos falar sobre as origens e contextos em que foram escritas a música e a poesia.

Sobre O homem na estrada é interessante expor as origens do rap e principalmente da ramificação da qual os Racionais fazem parte: o movimento hip-hop. Não esquecer que sobre rap e hip-hop os alunos provavelmente sabem mais que o professor. Para evitar que a atividade se torne desnecessária e negativamente escolarizada (com o professor polarizando as explicações), deixar que os alunos apresentem suas considerações. O papel do professor pode ser muito importante nesse momento ao organizar as intervenções, apontar semelhanças e as diferenças entre os pontos de vista, mostrar a riqueza da diversidade das apreensões. Muitas informações podem ser obtidas em textos online. Clique aqui.

Quanto a Vinicius de Morais, devido a sua grande obra e aos diversos movimentos em que esteve envolvido, consideramos mais importante lembrar quando ele escreveu O operário em construção, cuja contextualização pode ser encontrada clicando aqui.

As diferenças entre a linguagem oral e escrita é um outro ponto que pode ser abordado, sendo bem apropriada a atividade em que os alunos transcrevem a música (comparada ao poema, é mais próxima da língua oral pelas marcas que possui) para uma forma em prosa, uma prosa poética, por exemplo, ou, ao contrário, um texto jornalístico.

E, por fim, discutir com os alunos como ocorre a distribuição das rimas e sua classificação, conforme a adotada por Said Ali (Versificação em língua portuguesa) como um primeiro passo para o estudo de recursos formais da composição poética.

 

Outras sugestões 

1.

Música: “Índios” – Legião Urbana  

Poema: “Romance I ou da Revelação do Ouro” – Cecília Meireles

O Romance I ou da Revelação do Ouro, em Romanceiro da Inconfidência, primeiro texto da obra, foca a ganância do homem branco e o papel do índio durante esse acontecimento histórico. O poema possui fortes marcas épicas, pois trata da constituição de um povo, situando-se no presente histórico. Índios , da banda Legião Urbana, expõe de maneira mais direta opapel do índio na sociedade, é uma espécie de lírica argumentativa.

Sobre o Período histórico, o professor pede que os alunos leiam a música e, em grupos de três ou quatro alunos, discutam e cheguem a uma conclusão a respeito do período histórico de que a canção trata. Se o professor considerar seus alunos ainda imaturos para desempenhar a tarefa, sugerimos que sejam oferecidas e discutidas opções de respostas. Ex: a) Independência dos EUA; b) 1929; c) os dias atuais; d) colonização do Brasil. Essa atividade servirá como base para que os alunos e adquiram noções de temporalidade (no caso, os verbos no passado da canção e os verbos no presente no poema). Também é possível lidar com as funções da linguagem, sendo as marcas de emissor e destinatário muito marcantes tanto no poema quanto na música.

Comparações que podem ser estabelecidas: ambição desregrada; a natureza envergonhada; injustiça para com os índios.

 

2. 

Música: “A Minha Alma” – O Rappa  

Poema: “Canção do Exílio” – Gonçalves Dias  

Os grupos elaborarão apresentações a partir das semelhanças, diferenças, enfim aspectos levantados a partir do estudo e comparação entre a música e o poema. Essas apresentações serão elaboradas de diferentes formas, à escolha de cada grupo: dramatização, seminário com utilização de recursos gráficos, visuais e/ou auditivos, ou ainda de acordo com a criatividade da turma pode ser sugerida a criação de paródias, tanto da música quanto do poema que serão passados aos demais colegas através de dramatizações e consequente interpretação de seu significado. Sugere-se a maior quantidade possível de atividades escritas.

 

Notas

[1] O poema “Ode ao Burguês” de Mário de Andrade e a música “Geração Coca-Cola”, do Legião Urbana, assim como todos os outros poemas e letras de música, estão anexados ao final deste trabalho.

[2] Antonio Candido, no Estudo analítico do poema, distingue três momentos no estudo do poema: comentário, análise e interpretação, sendo que, para ele, o comentário já uma importante entrada para a compreensão do poema.

[3] MATOS, Gregório. Poemas Escolhidos, Introdução de José Miguel Wisnik. Círculo do Livro, SP - p.8.

 

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. “O Movimento Modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. 5ª edição. São Paulo, Martins, 1974.

ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edusp – São Paulo, 1987.

ARENDT, Hannah. “A Crise na Educação”. In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo. Perspectiva, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. “Os Gêneros do Discurso”. In:- ---- ---. Estética da Criação Verbal. (Trad.) São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1996.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas / FFLCH-USP, 1996.

ESPÍNOLA, Adriano. “Redescoberta do Brasil”. In: Revista Cult 41. São Paulo: Editora Krao, dezembro/2000.

INTERNET. http://www.letrasdemusicas.com.br.

LAFETÁ, João Luiz Machado. “A Consciência da Linguagem”, 1930: “A Crítica e o Modernismo”. São Paulo, Duas Cidades, 1974. “A representação do sujeito lírico na Paulicéia Desvairada”. In: BOSI, Alfredo. Leitura de Poesia. São Paulo, Ática, 1996.

MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. Introdução de José Miguel Wisnik.

NICOLA, José de. Língua, Literatura & Redação. [Edição revisada e ampliada]. São Paulo: Scipione, 1998.

RONCARI, Luiz. Literatura. Dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos. SP: EdUSP/ FDE, 1995.

SCHNEUWLY, B., DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista brasileira de educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1999, nº 11.

SÓ, Pedro. Revista ShowBizz. São Paulo: Abril, Edição 145, agosto/1997.

 

* Este projeto contém arquivos anexos para download. Eles estão disponíveis logo abaixo, em "Baixar anexos".

   

Ler 98846 vezes
Mais nesta categoria: « Oficina de poesia

9 comentários

  • Link do comentário aissa zabiba amade abdul azize Domingo, 30 Junho 2013 17:24 postado por aissa zabiba amade abdul azize

    muito grata mesmo.era isso que eu tava precisando...brigadinho mesmo.

  • Link do comentário Shirlei Ribas Ristow Terça, 30 Abril 2013 11:51 postado por Shirlei Ribas Ristow

    Muito bom!!! adorei voces comentaram sobre todos os meus heróis,achei maravilhosas as explicações, foi uma ótima dica pedagogica.
    Att. Shirlei

  • Link do comentário Dan Segunda, 29 Abril 2013 12:21 postado por Dan

    Valeu... Modelos como este são impportantíssimos às aulas contemporâneas!!! Grata.

  • Link do comentário Bella Fernandes Domingo, 07 Abril 2013 13:50 postado por Bella Fernandes

    cm fazer uma parodia de acordo com uma biografia?

  • Link do comentário karine Domingo, 14 Outubro 2012 22:48 postado por karine

    Nossa muito bom mesmo eu estava procurando isso. Obrigada!

  • Link do comentário Tamiris Tayla Sexta, 31 Agosto 2012 13:58 postado por Tamiris Tayla

    Aulas como essas seriam realmente fascinantes! Parabéns!

  • Link do comentário Rosimeire Alves Quarta, 29 Agosto 2012 23:23 postado por Rosimeire Alves

    Amei esta ideia, era isso mesmo que eu estava procurando.Pois estava procurando poesia que pudesse contextualizar com música.obrigada por as sugestões.

  • Link do comentário moises Sexta, 24 Agosto 2012 13:51 postado por moises

    gente qual é a fonte da musica de Cazuza "Brasil"?

  • Link do comentário julia Segunda, 04 Junho 2012 16:17 postado por julia

    oi eu quero tanto teconheser.

Deixe um comentário

Verifique se você digitou as informações (*) requerido onde indicado.
Basic código HTML é permitido.