Do trabalho docente alienado

 

Sérgio Rodrigo Mélega

 

Nesta presente análise pretendo desdobrar a ideia de trabalho nos gestos da professora com quem realizei o estágio, e os instrumentos por ela utilizados segundo o conceito de Scheuwly aplicados na disciplina de Língua Portuguesa.

O que pretendo demonstrar é que seguindo a ideia marxista de trabalho, podemos também retomar a ideia de trabalho alienado. Em um sentido específico, o que quero chamar de trabalho alienado não faz um paralelo total com aquilo que Marx demonstra ser o trabalho alienado na época Industrial. Pretendo encontrar um ponto de contato no fato de que se Marx, dinamizando a ideia de Hegel sobre o desenvolvimento da História, nos mostra que aquele que produz, no momento que produz, cria algo novo e também se modifica nesse mesmo momento – essa é a grande inovação em seu conceito materialista – a relação do professor também deve ser dinâmica.

O professor está alienado se na interação com os instrumentos didáticos, sejam os materiais com os quais trabalha, seja a forma como ele aborda e os retransmite, não produz algo novo para si e deixa de compreender sua função como agente que determina a realização de tarefas por parte dos alunos.

Um outro ponto que creio ser válido na minha análise é como a professora deixa transparecer, às vezes implícita e outras vezes explicitamente, o ambiente de sala de aula como um preparo ao mercado de trabalho, fazendo analogias na maneira como as coisas acontecem nessa e naquela situação, como se a escola fosse um preparo para a vida no mercado de trabalho.

Da forma em que tentarei demonstrar a seguir, seja na aplicação de um exercício gramatical, seja na abordagem de um gênero como um texto jornalístico, percebe-se a não-continuidade entre as tarefas como progressão do conhecimento dos alunos.

As tarefas realizadas em classe são objetos que definem a participação do aluno a cada aula por si só, sem dar muita relevância para o conteúdo que foi apresentado.

 

A escola está localizada num bairro de classe média da zona Sul de São Paulo. Tem dois mil e quatrocentos alunos, divididos em 3 períodos. São 57 turmas, divididas da seguinte forma:

  • 6 turmas de 1ª e 2ª séries,

  • 7 turmas de 3ª e 4ª séries,

  • 6 turmas de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental.

 

  No ensino médio são 2 turmas de 1º e 2º anos e 3 turmas de 3º anos.

Em conversa com as coordenadoras, elas disseram que essa turma extra no 3º ano se justifica pelo fato de que muitos alunos se transferem para a escola nesse ano.

Acompanhei as aulas do terceiro A e C às segundas e quintas-feiras. As turmas tinham em média 45 alunos inscritos. Nas duas turmas, porém, pouco mais de 20 alunos cursavam efetivamente o curso; diferença muito grande entre o número de matriculados e os que cursaram. Uma coordenadora me disse que esse número de desistentes, embora muito grande, é normal dentro da situação dos alunos. Muitos trabalham, acordam muito cedo e por isso não têm disposição para ir à escola.

A professora Ana1 tem 44 anos, dos quais 12 dedicados ao magistério. Ela é separada e tem uma filha. É uma pessoa enérgica, de temperamento forte e que conduz com pulso firme a sala de aula. Pode-se dizer que tem um bom relacionamento com os alunos. Como acontece em quase toda sala de aula, existem os momentos em que há muito alvoroço por parte dos alunos, mas ela sabe bem trazer a atenção deles de volta, sem muitos problemas. Cria um bom ambiente com eles por meio de brincadeiras e tem liberdade para dizer e para ouvir por parte deles algumas brincadeiras pessoais, como por exemplo alguns alunos que dizem abertamente que ela está bonita e ela, sorridente, recebe o elogio rebatendo que não é para o “bico” deles, isso também sorrindo.

Nas duas turmas nas quais acompanhei as aulas, percebi um comportamento semelhante, uma turma um pouco mais interessada que a outra, outra turma um pouco mais barulhenta, mas o que se pode perceber é que o professora determina de uma certa maneira o ambiente da classe. Em conversa com a professora, ela me disse que o período mais difícil é sempre o começo do ano, principalmente se nunca trabalhou com os alunos dessa classe. Disse também que é necessário um tempo para ganhar o respeito e impor autoridade aos alunos.

A escola está relativamente bem conservada em sua parte externa e também nos corredores externos. A biblioteca parece ser o local mais bem arrumado e organizado. As salas de aula, porém, são um pouco sujas e desorganizadas, o ambiente está quase sempre muito desarrumado e muitas carteiras estão quebradas.

Houve uma certa resistência por parte dos coordenadores para me darem acesso ao projeto pedagógico. Durante o estágio sempre ficava a promessa de encontrá-lo e mostrá-lo e por fim a coordenadora me disse que não sabia onde estava. Ela comentou que eles estavam fazendo uma reestruturação e por isso não tinha nenhuma versão na escola. O mais curioso foi que, ao comentar que eu já havia estagiado em outra escola e copiado trechos do projeto pedagógico dessa escola, ela então sugeriu que eu trouxesse a eles esse projeto para que olhassem e se utilizassem dele.

As aulas que acompanhei foram do programa chamado Projeto Dirigido, conhecido como PD. É um projeto das escolas estaduais que visa criar um contato dos alunos com as questões da atualidade, com os assuntos que estão nos meios de comunicação. O professor busca oferecer aos alunos a atualização sobre temas correntes, com o auxílio e aprendizado da própria disciplina de Português.

Pode-se dizer que a ideia traz algo de interessante. Se fosse possível ir além da primeira impressão que os alunos têm das notícias, fazendo críticas e reinterpretando os fatos que são divulgados a partir do próprio instrumento que a disciplina de português oferece, teríamos uma noção melhor de como os alunos digerem o bombardeio de informações que circula diariamente.

O guia é um material fornecido pelo Estado e elaborado pela Editora Abril.

A professora Ana teve sempre uma postura rígida em relação à questão das faltas, seja as dela as dos alunos. Ela raramente faltava, e no período em que acompanhei as aulas ela não faltou nenhuma vez. Ela estabeleceu um limite de 15 minutos para os alunos entrarem em sala de aula, e foi sempre muito rigorosa nesse aspecto. Isso sempre criava algum problema porque a porta ficava fechada e os alunos batiam na porta; ela então atendia e negava a entrada deles. Criava-se uma situação de embaraço pois alguns discutiam com ela alegando alguma justificativa para o atraso, mas raramente ela cedia.

A professora se utilizava muito de textos do Guia do Estudante, mas às vezes aleatoriamente e fazendo a escolha do texto minutos antes da aula começar, ou mesmo no início da aula. Geralmente ela pedia para que os alunos lessem os textos e fizessem uma cópia. Essa cópia era considerada como tarefa.

Ela sempre fazia chamada no final da aula. Indo de carteira em carteira, ela anotava a presença do aluno e olhava no caderno dele para se certificar que ele tinha feito a cópia do texto. Algumas vezes eles liam textos do guia e faziam uma redação sobre o assunto do texto que foi lido. Quando a proposta era uma redação ela não corrigia essas redações; somente conferia quem tinha feito e dava ponto positivo a esses alunos. Houve situações em que os alunos fizeram cópias do próprio texto lido em classe e a professora ainda que contrariada com isso, dizia que era normal, que não se podia fazer nada. Ela valorizava fundamentalmente o fato de eles terem realizado alguma tarefa.

Houve três aulas em que ela falou sobre gramática com os alunos. Nessas aulas a forma de trabalho foi um pouco diferente. Ela escreveu na lousa um texto teórico sobre coesão e coerência e nesse mesmo texto havia uma proposta de exercício com frases a serem analisadas como segue abaixo:

 

Sobre coerência textual:

 

André e Pedro são fanáticos torcedores de futebol. Apesar disso, são diferentes. Este não briga com quem torce para outro time; aquele o faz.

 

A professora explicou aos alunos a função dos pronomes demonstrativos (ainda que de forma incorreta; esse exemplo será retomado adiante). Como os alunos tinham muita dificuldade com o assunto, a professora foi trazendo explicações para níveis anteriores.

No apelo à memória, os alunos não demonstraram conhecimento e então os instrumento por parte da professora foram exemplos imaginados no momento com frases mais simples na tentativa de fazê-los “lembrar” do assunto.

A realização de tarefas constitui-se como uma das práticas mais importantes utilizadas pela professora. Em quase todas a aulas ela pedia a eles que fizessem cópias do que era escrito na lousa ou que fizessem uma “redação” sobre um texto lido em classe. Coloco redação entre aspas porque embora fosse chamada de redação, muitos alunos entregavam três ou quatro linhas sobre o tema do texto lido, sendo que alguns copiavam essas mesmas linhas do texto. Como pretendo analisar mais adiante, a professora aceitava essas “redações” como algo realizado em classe, como algo válido.

Em uma das aulas a professora utilizou máximas do empresário Bill Gates, fazendo analogia entre o mundo do trabalho e o mundo escolar. Pedindo a reflexão dos alunos para cada máxima (não constam essas máximas nos anexos).

Já em outra aula foi feito um círculo e lido um texto sobre a decadência dos Estados Unidos e também sobre a questão da imigração. A professora abriu um debate entre os alunos sobre o que fora lido.

 

Os instrumentos dos quais a professora se utilizou nas aulas foram quase em sua totalidade, textos do Guia do Estudante – editora abril 1º e 2º semestres.

Não será enfocado neste trabalho o tempo de aula que a professora despendeu com questões burocráticas (algum aviso da escola ou alguma pendência de tarefa por parte de alguns alunos). O fato é que esse tempo sempre foi muito grande em relação ao tempo total de aula. A aula geralmente começava depois dos quinze minutos de tolerância para que os alunos atrasados entrassem.

 

Trabalho Alienado

Tomando como parâmetro o conceito de Marx sobre o trabalho e o conceito de que os gestos do professor devem ser compreendidos como trabalho, como sugeriu Schnewly, o que pretendo demonstrar é que o trabalho da professora Ana foi sempre um trabalho alienado, isto é, alheio à sua própria razão de ser. Por meio de seus gestos e da forma como abordou o material utilizado em sala de aula, creio que houve um descompasso entre o que se poderia considerar como êxito o fruto desse trabalho e o resultado final obtido.

Um dos exemplos talvez seja o de que em uma das aulas ela chegou a utilizar o seguinte texto com a seguinte formulação de perguntas:

 

O homem”

De repente, uma variante trágica. Aproxima-se a seca. O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.

Entretanto não foge logo, abandonando-a teria a pouco a pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.

Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra.

Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a estóico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem número de terríveis episódios, alimenta a todo transe esperança de uma resistência impossível.

 

(Euclides da Cunha “Os Sertões”)

 

Responda:

1.Como Euclides da Cunha caracteriza o homem sertanejo?

2.Por que Buckle caracteriza como uma “anomalia”o fato de o homem não se afeiçoar nunca às calamidades naturais que o rodeiam?

3. Como Euclides da Cunha caracteriza o fenômeno da seca?

 

Ela copiou o texto todo na lousa juntamente com as questões, o que tomou um grande tempo da aula. Em seguida, nos minutos restantes, disse que eles tinham que responder às questões e entregar no final da aula sob pena de ficar com um ponto negativo aqueles que não o fizessem. Não houve discussão do texto. Houve breves comentários em cima de perguntas que alguns alunos fizeram e que a professora respondeu brevemente, sem muita clareza. Um dos alunos perguntou o significado da palavra estoico. Ela então respondeu que estoico significa corajoso.

Aqui como em outros pontos pretendo justificar a ideia de trabalho alienado, partindo da visão de que o gesto, as tarefas e o ambiente da sala de aula significam trabalho, e que se o professor não localiza o que realmente é importante nesse conjunto, o realiza como preenchimento de sua função. Me permitirei uma pequena analogia. Se o carpinteiro acredita que, por ser carpinteiro, o importante é que ele passe seu dia martelando pregos numa madeira (pois afinal todo carpinteiro faz isso), sem levar em consideração que ele, o martelo, o prego e a madeira devem gerar alguma coisa para além dessa relação, seu trabalho se torna alienado.

Ajuda-nos muito pensar no conceito de Chevallard sobre a dupla semiotização. Ao trazer um trecho de “Os Sertões” para os alunos como objeto de ensino, imagina-se que o professor tenha domínio sobre esse instrumento, o que não foi verificado no desconhecimento da professora sobre o significado da palavra estoico.

Um texto de literatura deve ter um valor de deleite ao professor, de profundo contato e entendimento. À partir disso ele tentará “equipar” o aluno com ferramentas para que ele também compreenda e se deleite com o texto.

A professora Ana é considerada uma “generala” na escola. Uma das poucas professoras que não distribui notas aos alunos se, no entendimento dela, eles não merecerem. Em quase todas as aulas ela propunha alguma atividade de “resposta” por parte dos alunos, como no caso da atividade citada recolheram-se respostas às perguntas feitas sobre o texto.

Retomando um exemplo sobre uma aula de coerência textual, cito novamente o trecho trabalhado em classe:

 

Sobre coerência textual:

 

André e Pedro são fanáticos torcedores de futebol. Apesar disso, são diferentes. Este não briga com quem torce para outro time; aquele o faz.

 

Um dos alunos perguntou-lhe a quem se referia o pronome este e a quem se referia o pronome aquele. A professora sem titubear disse ao aluno que este se referia ao André e aquele se referia ao Pedro. Numa das aulas, lendo um texto que citava os nomes dos filósofos Nietzsche e Voltaire, a professora os leu como se fossem palavras do português, o que soou estranhíssimo.

Para além desses exemplos em que pude constatar o despreparo da professora sobre a sua própria formação, desconhecendo aquilo que espera-se que o professor saiba, quero reforçar que a professora acredita ser válido obter essas tarefas dos alunos dissociando o resultado como indicador de sucesso ou não de proposta de ensino. Em boa parte do estágio trabalhamos textos onde a reflexão, tão importante ao entendimento, não foi valorizada. Pensando novamente em Chevallard, ao semiotizar o objeto, o que no caso da disciplina de português é sempre pensar sua estrutura formal, o significado de suas palavras e com isso possibilitar a interpretação, a professora abdica desse “tempo” com o texto e isso transparece em seu desconhecimento de vocabulário.

Em outro exemplo sobre gramática, temos a seguinte frase:

 

Qualquer que tivesse sido seu trabalho anterior, ele o abandonara.

 

Em discussão sobre a função do verbo, a professora disse aos alunos que o verbo tivesse era o verbo principal da frase e o verbo sido era o auxiliar.

O que tento mostrar é que escapa-se ao essencial, sempre. Há uma prática didática dissociada ao meu ver do que a deveria motivar: o aprofundamento do contato com a linguagem do texto ou, no caso da gramática, a compreensão mais pormenorizada dessa mesma linguagem.

 

A rotina

 

Seguindo a relação paralela com o mundo do trabalho, o conceito de rotina pode nos auxiliar também nesse estudo. Se não há um ponto de chegada e um ponto de saída, se não há um encadeamento entre as aulas ou mesmo um objetivo claro em uma mesma aula como pude verificar, a aula torna-se mera repetição da anterior, um vício da professora ao eleger a realização de tarefas como valor em si mesma. Ela desconsidera, assim, a sequência didática como elemento importante na obtenção de “resultados”.

Parece-me que ao lidar com os instrumentos dessa forma, ainda que de maneira inconsciente, isso era notado pelos alunos. Havia uma ou outra indagação sobre o que era dito – às vezes alguma indagação acerca do conteúdo ensinado –, entretanto a professora lidava muito bem com a institucionalização do saber. O que não foi possível descobrir foi até em que ponto ela tinha consciência dos equívocos cometidos.

Nesse ponto talvez seja inócuo julgar a boa-fé da professora. Deslocando o foco dela para a “usina” na qual ela trabalha, podemos obter mais algumas conclusões.

Há muito tempo a Escola vive uma “crise de identidade”. Ela existe para libertar os homens ou para instrumentalizá-los para a vida do comércio?

Sem me alongar em análises históricas, o que fugiria do escopo deste trabalho, podemos pensar que desde a Revolução Francesa os valores humanistas apregoados pelos burgueses foram adequados à revolução ainda mais contundente, a Revolução Industrial.

Da Europa para o Brasil, a periferia do Capitalismo – parafraseando Roberto Schwartz – a escola aqui tem a função de dar aos alunos alguma chance, uma possibilidade a mais na disputa por emprego. Fica apropriado, ainda que condenável, transformar a escola na prévia para o mundo do comércio. O problema é que isso dificilmente fica ajustado.

Como citei acima, a professora Ana em uma das atividades trouxe um texto de Bill Gates (admirado pela sua capacidade de transformar conhecimento em riqueza, sua própria riqueza), traçando um paralelo entre os dois mundos. Ela trabalha durante o dia em um departamento de Recursos Humanos, e seu discurso está cheio de referências do seu ambiente de trabalho.

Se a Escola brasileira reforça esses parâmetros para os professores, é mesmo difícil imaginar uma outra postura por parte deles.

 

 

Sérgio Rodrigo Mélega

Bacharel em Letras – Alemão/Português – pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Licenciado em educação nas habilitações referentes ao bacharelado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor de Alemão.


Referências bibliográficas

 

GOMES-SANTOS, S. N.; CHAVES, Maria Helena Rodrigues. (Universidade Federal do Pará) – O gênero seminário escolar como objeto de ensino: instrumentos didáticos nas formas do trabalho docente.

SANTOS, Theotônio. - Contraponto - O Manifesto Comunista e o marxismo como projeto. O Manifesto Comunista 150 anos depois – Karl Marx, Friedrich Engels.

 

 

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